domingo, fevereiro 25, 2007

"Shining" de Stephen King

O Hotel Overlook apresenta-se, inicialmente, como o escape emocional de que Jack Torrance necessitava para conferir uma amplitude diferente à sua vida. Atormentado por uma agressão cometida contra o filho e por uma outra protagonizada contra um aluno da escola onde leccionava (tendo como consequência o seu despedimento), Jack é envolvido por estes fantasmas que povoam a sua história pessoal mais recente, deparando-se, de igual modo, com sombras provenientes de um passado mais remoto que, traiçoeiramente, se apoderam do seu pensamento e o obrigam a recuar a uma infância repleta de imagens da violência de um pai alcoólico. A procura de uma segunda oportunidade, de uma restauração de si perante si e perante os outros que lhe permitisse recuperar da vida decadente a que o álcool o remetera, este o objectivo de Torrance, disposto a manter o Hotel Overlook em perfeitas condições durante o rigoroso Inverno nas montanhas do Colorado e, em paralelo, a escrever a sua peça de teatro por forma a tentar o relançamento da sua actividade de escritor.
A família Torrance, composta por Jack, Wendy e o filho de ambos, Danny, desloca-se, então, para o histórico Overlook onde passarão a temporada de Inverno sitiados pela neve que, em breve, começaria a tombar até cortar todos os acessos possíveis ao Hotel e negando aos seus temporários habitantes a evasão do espaço a que se encontravam confinados.
Em plena prossecução dos seus deveres de encarregado do Hotel, Jack depara-se, na cave, com um manancial de escritos, recortes de jornais e fotografias referentes ao passado conhecido e desconhecido do Overlook. Assim, gradativamente aguçado, primeiro pela curiosidade do escritor que encontrou bom material de escrita, e depois pelo apelo e fascínio, cada vez mais intensos, que o passado sombrio do Hotel exercia sobre ele, assistimos à transformação progressiva da personagem em sentido inverso à sua intenção primeira. Jack não tem acesso a álcool no Hotel, no entanto, com a contaminação crescente das memórias atrozes do mesmo sobre si, Torrance é dominado pelas sombras que habitam o Overlook, deixando-se embriagar pelo poder maligno que do Hotel emana.
O rasto do mal é perceptível aos olhos de Jack mas, sobretudo aos de Danny que, mesmo antes do Hotel fechar, é alertado pelo cozinheiro chefe, Halloran, dos perigos que aquele Hotel encerrava e de que ele e outros poucos iluminados (como Danny) se teriam apercebido. Danny detém o poder da reverberação, de ver para além do visível e é mediante este dom, que não consegue controlar, que Danny sente o Overlook como um organismo vivo pronto a devorá-lo e à restante família. As visões de Danny mostram-lhe a soberania de destruição do Hotel ao longo dos anos através, por exemplo, do mítico quarto 217 onde uma hóspede se suicidara e cuja presença ainda se faz sentir na violência da comunicação que enceta com Danny.
O Hotel quer apoderar-se da fortaleza de espírito de Danny através da fraqueza de espírito do pai, instigando-o a cometer o derradeiro sacrifício em nome de uma lealdade duvidosa para com o “verdadeiro gerente” do Hotel. A cartada última deste mal é colocar no caminho de Jack, Delbert Grady, um antigo encarregado do Hotel que matara as duas filhas e a mulher e de seguida se suicidara. Grady fala-lhe no “correctivo” que tem que aplicar à mulher demasiado interferente e ao filho demasiado impertinente e Jack lança-se numa caçada à própria família. A sua transfiguração de presa para caçador nunca é absoluta, porque Torrance é prisioneiro das memórias terríveis do Overlook e vendera a sua alma a um mal abstracto nunca identificado com clareza.
A destruição purificadora do Hotel pelo fogo, não deixa de ser irónica porque é através da explosão da caldeira, cujo cuidado Jack descurara (subjugado como estava pela loucura), que se verifica o incêndio. Ou seja, trata-se quase de uma autodestruição na medida em que, na procura desenfreada de submeter Danny ao mal, o próprio mal, incorporado por Jack, se descuida na manutenção daquilo que o permite continuar a subsistir.

sábado, fevereiro 17, 2007

"A Senhora dos Açores" de Romana Petri

O aquém do além azul. Mundos paralelos amalgamados, um pacto de união na aprendizagem, um percurso a céu aberto para abrir um trilho interior.
O título do livro desconcerta pelo que contém de dádiva e de egoísmo, pela fusão conseguida e de cujo conseguimento não estava certa, um meio para atingir um fim, a surpreendente forma de construção de uma identidade inconsistente, impalpável e invisível como os segredos segredados pelas figuras fantasmais da ilha e em flagrante contraste com os nomes dos cúmplices da travessia em quase todos os capítulos desfiados.
Tal duplicidade no nome atribuído à obra, não poderia deixar de estar em sintonia com o próprio conteúdo de «A Senhora dos Açores» já que é, em simultâneo, um panegírico às mulheres açoreanas, divinizadas na sua simplicidade redentora e à italiana, narradora e protagonista da história, elevada por ela mesma a um patamar se não divino, pelo menos semidivino, na espécie de martírio da sua Via Sacra.
O nome desmascara sempre uma franja de personalidade, liberta, permite resvalar da página uma sugestão de pessoa, ainda que incorrecta ou precipitada, um indício de Ser que, enquanto leitores, pretendemos (re)conhecer. E é deste (re)conhecimento que nos socorremos, é dele que partimos, é ele que nos orienta nos meandros do enredo, na psicologia específica da personagem. Simplesmente, esta personagem sem nome, narradora da sua própria aventura de descoberta de si e de descoberta dos outros como veículo para chegar a si, não se apresenta, cai na página somente como uma mulher de uma terra distante que surgiu distante, numa fase inicial, ao meu olhar de leitora.
Começo por não a compreender, falta-lhe força vital, um não sei quê que habilita a personagem de romance a andar pelo seu pé, a discorrer uma existência independente e não orfã. Se ela “morre” antes de concluída a leitura, ou algo não está bem ou estamos perante uma estratégia literária a deslindar. E assim vislumbrei-lhe uma motivação crescente que foi assim como um brilhozinho nos olhos da personagem, brilhozinho esse que, naturalmente, não vi, mas bem senti. A motivação advém dos outros, dos que têm nome e identidade com fibra, dos que a contaminam com aquilo que procura: o conhecimento das coisas simples. Busca o molde de si nas gentes da terra, na própria terra, é gradativamente talhada pelos que se cruzam no seu caminho num processo pessoal equiparável ao fenómeno mais lato da própria ilha que decidiu habitar: no esvaziamento adivinha-se o ressurgimento. É uma esperança que resiste. Os Açores são uma concha, oca, como a mulher perdida nessa inquietude serena que, não obstante, a avassala, oca pela indefinição eternamente flutuante de quem a povoa, é a gente de fora que vem de dentro e os fantasmas vivos ou mortos, que são a essência da ilha. Os vivos proporcionam excursos aos reinos impalpáveis da morte com contornos de fantástico, uma quase não-morte pelo que detém de festivo, de real, de subsistente. E parece esse mundo ter-se tecido em torno da fragilidade sedenta do sobressalto interior que um encontro indesejado ou improvável consigo traz que a estrangeira possui, competindo-lhe avaliar do grau de pureza das realidades extremas que com ela esbarram como que recomendadas pelos amigos, mentores do seu ritual de (re)iniciação à vida. Tudo é uma imensa segunda oportunidade, uma viagem ao centro daquela terra e ao centro da mulher extraviada da sua rota. A não-revelação inicial prende-se com a ausência de auto-conhecimento.
Há uma negação do Ser porque há um desconhecimento do Ser.
Desembarca nos Açores com o fito único de se instalar numa casa com vista para o mar, como se no mar se pudesse reencontrar, mulher perdida de si. É no mar, mas também nos sabores e cheiros e silhuetas, na restauração do primarismo esquecido algures na frequência das urbes onde as velhas tradições e as velhas sensações a custo sobrevivem que repousa a verdade essencial por isso a ruralidade ainda palpitante dos Açores começa por colidir com a nebulosidade das ideias pré-concebidas de alguém dominado pelo medo do outro. A estrangeira receia o nativo, mas o nativo recebe-a em sua casa, acolhe-a sem perguntas e ensina-a a viver do que existe aqui e agora.
A pureza dos bons envergonha quem não acredita.
Da dádiva renasce o ego, da multiplicidade emerge a unidade, o paraíso perdido, agora reencontrado através dos outros. É desta relação de dependência que germina um conceito de personagem a cujo crescimento assistimos. E é tão bom crer na possibilidade de reforma do Ser.

sábado, fevereiro 10, 2007

"A Submissa e Outras Histórias" - "Sonho de um Homem Ridículo" de Fiodor Dostoievski

Um homem decidido a morrer. Um homem decidido a não amparar a menina que lhe roga ajuda.
Compra uma arma e adormece no cadeirão onde, esperava, o encontrassem morto por sua própria mão no dia seguinte.
Um sonho. O sonho da perfeição humana, do paraíso perdido, corrompido pelo protagonista desta história de redenção. Ele fantasia ser o autor de toda a indignidade humana e essa perspectiva invectiva-o a amar a vida mais que nunca. A querer viver para pregar, para ensinar, a querer passar a mensagem que a ele em sonhos havia sido transmitida. Nunca é tarde para o arrependimento, o caminho da salvação é um percurso interior, um percurso de livre-arbítrio fruto da nossa insatisfação.

"A Submissa e Outras Histórias" - "A Submissa, História Fantástica" de Fiodor Dostoievski

Uma história simples de contornos complexos é o ponto de partida para o relato entrecortado por convulsões de dor incrédula de um marido viúvo há poucas horas.
Desonrado aos olhos dos seus pares (enquanto militar, recusara-se a travar um duelo) e para sempre marcado por esta nódoa na sua existência, refizera a sua vida depois de receber uma inesperada herança. Estabelecera-se como penhorista e apaixonara-se pela jovem de 15 anos que semana após semana se desfazia de tudo o que a recordava da família mais próxima já desaparecida. Propõe-lhe casamento ao saber que as tias a empurravam para um outro homem para benefício próprio.
Apesar de a amar, este é um homem traumatizado pela rejeição e, como tal, oculta a mancha que assombra o seu passado (e o presente, claro) para que, uma vez tendo conhecimento do porquê da recusa de bater-se em duelo, pudesse a mulher ser a primeira a considerar a sua atitude honrosa e não cobarde. No entanto, uma rigidez permanente, um autoritarismo injustificado, provocam o inverso da inicial submissão daquela mulher tão jovem e, contudo, tão madura na percepção da rejeição de que ela própria se sentia vítima. Ela rebela-se, envolve-se com outro homem, descobre a verdade pela boca do inimigo visceral do marido e no fim, perante a complacência de um marido vencido, ajoelhado a seus pés como perante um altar sagrado, a menina tornada mulher, adoece perante a sua incapacidade de submissão. E o que restava a uma mulher não submissa no tempo em que decorre a história? A heroína precipita-se de uma janela e deixa um vazio, apenas um vazio de silêncios no coração insubmisso de um homem que também foi contra as convenções do seu tempo. O abismo esteve próximo para ele numa primeira fase. Foi salvo. Mas a fuga foi momentânea. O destino encontrou-o e enlaçou-o com a aparição e desaparecimento do anjo que jazia morto na mesa da casa comum.

sábado, fevereiro 03, 2007

"A Submissa e Outras Histórias" – "A Centenária" de Fiodor Dostoievski

O encontro casual com uma mulher de 104 anos que fazia o percurso para casa de familiares parando de soleira em soleira de porta para repousar, despoleta num homem o interesse em saber se a velha senhora chegara de facto ao seu destino e qual o seu destino depois disso.
Realidade e ficção confundem-se, enleiam-se e o leitor aborda o fruto da imaginação daquele homem como se da realidade se tratasse. E porquê? Porque é uma realidade provável e porque há encontros com os quais nos queremos voltar a encontrar, nem que seja no desencontro ou ponto de encontro do mundo sensível com o ininteligível. A fronteira entre ficção e realidade é tão ténue que o fim da pobre centenária, foi aquele que o autor de improviso lhe deu.

"A Submissa e Outras Histórias" – "O Mujique Marei" de Fiodor Dostoievski

Num dado momento da sua queda, um homem nobre de nascimento e agora prisioneiro na Sibéria, recorda-se do momento em que mais amado e protegido se sentira na vida, um momento irrepetível em que um dos servos da gleba da sua família o tratara como a um filho.
Observava-o a lavrar os campos quando ouviu alguém gritar que vinha ali um lobo; o narrador, agarrara-se ao Mujique e este demonstrara aquilo que é designado nas páginas lidas como “instinto maternal” pois, embora soube-se que ali não havia lobos, compadecera-se de tal forma do seu pequeno amo que, nos confins do mundo palpável e nos confins da sua alma, aquele Homem preso a grilhetas, escapara dos muros frios do presídio e encontrara o caminho de casa. Estava em casa.

"A Submissa e Outras Histórias" – "Menino numa Festa de Natal" de Fiodor Dostoievski

O conto mais curto desta colectânea é também o mais impressionante pela dureza e realismo empregues na descrição da existência miserável de uma criança que acompanha a mãe da aldeia natal até à cidade grande em busca de uma vida melhor. A mãe adoece e a criança vê-se à mercê do ambiente que a rodeia, o Inverno russo e aqueles que a rodeiam.
É mal agasalhado e mal nutrido que o menino sai à rua depois de compreender que a mãe sucumbira à doença (embora subsista uma certa ambiguidade nesta situação: quando a criança se aproxima do catre em que está prostrada a mãe e a sente fria pensa, antes de mais, nas condições em que viviam, ou seja, está fria porque está frio).
É Natal e toda a gente é bem vinda em todo o lado menos o menino que, sozinho no mundo, não encontra paz em vida. Recolhido num cantinho de lenha, finalmente quente, adormece para sempre e sonha a sua própria eternidade, uma festa de Natal só de crianças órfãs, acolhidas com tudo aquilo a que uma criança devia ter direito.
A vertente social e sobretudo humana é colocada em primeiro plano nesta história de dimensões mínimas e, contudo, tão grandiosa de conteúdo.

"A Submissa e Outras Histórias" – "Bobok, Cadernos de uma Certa Pessoa" de Fiodor Dostoievski

Queria distrair-se, foi parar a um funeral. Este é um começo intrigante, após uma introdução em que ficamos a saber que o protagonista dos acontecimentos que se seguem (protagonista no que concerne ao que nos é por ele transmitido, o narrador é mero espectador e ouvinte de factos sucedidos durante o seu limbo psicológico e fruto da sua condição instável?) não está numa fase favorável da sua vida.
A tertúlia de que é testemunha (sugestionada com certeza pela presença naquele “lugarzinho”) assenta numa animada troca de palavras entre os defuntos enterrados em algumas das sepulturas daquele cemitério. Provenientes de vários quadrantes da sociedade russa, revelam todas as suas fraquezas, frustrações, ilusões e imoralidade tal como quando eram vivos. Mais uma vez, o autor concentra a sua energia literária na crítica aos costumes da sociedade na qual se integra, transformando o conto na não-história de um ausente que nunca chegamos a saber de quem se trata, Bobok. É um nome que surge da boca de um fantasma, nome não corporizado por alguém, símbolo do delírio da personagem que assiste à parada grotesca de espectros que se divertem no e com o cenário da morte. Bobok é quase como se fosse o despertar do sonho, a palavra que separa o narrador do mundo real do mundo dos mortos a que a sua mente imaginosa o conduzira.