domingo, setembro 23, 2007

"Ratos e Homens" de John Steinbeck

Steinbeck, John, Ratos e Homens (Of Mice and Men), Editora Livros do Brasil, Tradução de Erico Veríssimo, 2007.

Na América rural dos anos 30, movimentam-se personagens que ocupam os degraus mais baixos de uma sociedade profundamente desigual. É nesta América escondida que os trabalhadores sazonais vagueiam de terra em terra em busca de sonhos distantes, dificilmente realizáveis. É numa América díspar, de oportunidades infinitas para alguns e trabalho quase escravo para outros, uma América composta por ratos e por homens, pela massa trabalhadora que aspira a algo mais e pelos que a subjugam, desejando apenas mantê-la longe do patamar seguinte, é neste país, nesta época que nos surgem George e Lennie, dois ratos-homens que percorrem o país juntos à procura do trabalho que lhes permita juntar o dinheiro necessário para comprarem um pedaço de terra para cultivar e animais para criar. Esse o seu sonho.
Encontramos os dois companheiros em plena fuga devido a um equívoco provocado por Lennie: possuidor de uma força física invejável, Lennie tem um atraso intelectual que lhe não permite discernir entre o que está certo e o que está errado. George é o guardião da integridade do grupo, salvando a sua coesão graças a uma capacidade de reacção rápida, perfeito avaliador do não-entendimento dos outros face à diferença de Lennie. Não é possível explicar um mal-entendido quando tudo aponta para a culpabilidade de um simples de espírito forte como um touro. Ele é, pré-determinadamente, considerado culpado, um proscrito mental sem direito a defesa ou argumentação plausível. Só lhes resta a fuga. E é dela que se socorre George na sua frieza calorosa de protector daquela cândida criança grande, sem compreensão que alcance que simples actos perdoáveis a uma criança, não lhe são aceites a ele.
Obcecado pela posse da terra e de animais de que pudesse tratar (sobretudo coelhos …), Lennie acaba por contaminar George com o seu entusiasmo pueril, apesar deste verbalizar amiúde a sua irritação pelo facto de Lennie lhes arranjar sempre problemas com a sua excessiva inocência. Chegados a um novo trabalho, logo George percebe que têm de se manter afastados da mulher do filho do patrão. E o seu presságio quanto ao papel que aquela mulher iria exercer nas suas vidas, confirma-se da pior forma possível. Em pânico, assustado, Lennie sufoca a jovem e foge (como era hábito nos momentos maus) para um local previamente combinado com o companheiro de viagem. Assim que George compreende os factos apresentados, dirige-se ao local e mantendo no amigo a ilusão de que tudo está bem, de que nada há a perdoar, fala-lhe suavemente sobre o seu sonho comum e dá-lhe um tiro mantendo essa ideia de felicidade nunca concretizada mas suficiente para Lennie no momento da sua morte. Perante o iminente linchamento de Lennie, o gesto de George é um acto de misericórdia, a piedade que só um amigo podia demonstrar.
E nunca mais fugiram.

domingo, setembro 16, 2007

"1791 - O Último Ano de Mozart" de H. C. Robbins Landon

A versão mais divulgada ao leigo interessado da vida e obra de Mozart é aquela com que nos deparamos no excepcional filme de Milos Forman “Amadeus”. Assim sendo, iniciei a minha leitura de “1791 – O Último Ano de Mozart” com algumas ideias pré-concebidas apesar de adivinhar o toque de exacerbação romanceada que aquela representação da vida do compositor encerrava.
H. C. Robbins Landon é um reputado estudioso de Wolfgang Amadeus Mozart guiando-nos nesta sua obra, ao último ano de vida de um dos génios maiores da música de sempre elaborando persistentes referências aos aspectos mais debatidos e relevantes da sua vida como sejam as circunstâncias da sua morte, a composição do Requiem ou o verdadeiro papel da mulher Constanze na sua vida. Tudo confluindo no fatídico ano que assiste à sua prematura morte.
António Salieri, Kapellmeister e compositor de ópera da corte imperial, nutria, parece inegável, uma imensa inveja face ao talento de Mozart; também sabemos que o sentimento prevalecente do nosso retratado em relação a Salieri era de frieza e indiferença e é do nosso conhecimento que o compositor italiano, no leito de morte, confessara a seu filho que envenenara Mozart. Por muito que se tratasse de um delírio de moribundo corroído por alguma espécie de culpa “menor”, a verdade é que esta versão foi a mais difundida e ainda hoje permanece como provável. Uma outra teoria aflorada é a da conspiração maçónica relacionada com a composição de “A Flauta Mágica”, ópera repleta de menções e símbolos maçónicos a que os seus companheiros de loja, bem como toda a estrutura da maçonaria, não terão considerado como particularmente apropriado. Robbins Landon rejeita estas teses de morte não natural de Mozart e apresenta ao leitor um estudo espantoso da autoria de Peter J. Davies sobre o historial clínico de Mozart ao longo de toda a sua vida (e pode-se dizer que foi acidentada no que à saúde diz respeito) e a conclusão final é a de que Mozart morreu do seguinte: “Infecção por estreptococos, síndroma de Shonlein-Henoch, insuficiência renal, flebetomias, hemorragia cerebral e broncopneumonia terminal.”. Temos, então, uma abordagem racional e perfeitamente fundamentada, comprovando a morte natural do compositor austríaco.
H. C. Robbins Landon dedica igualmente muitas páginas à árdua composição de obras como “A Flauta Mágica”, “A Clemência de Tito” e, sobretudo, o “Requiem” cuja história envolta em mistério até há pouco tempo, originou as mais fantasiosas suposições para as quais o próprio Mozart terá contribuído. Sabia-se que num certo dia um desconhecido batera à porta da casa dos Mozart e encomendara o Requiem a mando de alguém que preferia permanecer na sombra pelo valor que Mozart pedisse. Trabalhou dia e noite até à exaustão e, a dado momento, convenceu-se, de que estava a compor o Requiem para si próprio, a morte materializara-se naquele mensageiro para o conduzir a ela através da sua derradeira obra inacabada. Hoje sabemos que a encomenda fora feita por um nobre que perdera a jovem esposa e desejava eternizar a dolorosa perda a que fora sujeito em todos os aniversários da sua morte através dessa composição exclusiva.
Robbins Landon analisa também a figura e personalidade de Constanze Mozart. Denegrida ao longo de séculos, o autor tenta reabilitá-la publicando cartas e auscultando acções protagonizadas por Constanze indiciadoras de sagacidade, inteligência e um profundo instinto de sobrevivência.

domingo, setembro 09, 2007

"O Senhor Ventura" de Miguel Torga

A Senhora Professora Marília, minha muito querida, única e insubstituível Professora primária, é transmontana. Recordo-me dela como uma mulher de quarenta e tal anos com um cabelo castanho claro muito bem arranjado, sempre vestida com aquela bata branca que a tornava mais angelical a nossos olhos.
Estaríamos talvez na 2ª.Classe quando a Senhora Professora Marília nos começou a falar de Miguel Torga. Dizia-nos que também ele provinha de Trás-os-Montes como ela e certo dia, pegou num livrinho que tinha entre mãos e leu-nos um conto de nome “Natal”. Ouvir aquela história tão bem escrita por Torga e tão bem contada pela minha Professora, deixou uma marca que nunca se apagou em mim. Terá sido o meu primeiro despertar consciente para o mundo da literatura. Passaram-se anos e já no Liceu, através de uma Professora de Português também única e insubstituível, chegaram-me ecos desse autor que tão boas recordações me trazia. E ler por mim o conto “Natal” foi uma experiência comovente, no fundo, a menina curiosa que, sentada na sua carteira de madeira ouvia atenta e reverentemente a sua Professora, estava dentro de mim mas a assumir posição activa na leitura.
Hoje trago-vos Miguel Torga mas através de “O Senhor Ventura”, um belíssimo conto realista que, forçosamente, aguça a nossa noção de Portugalidade. Embora a personagem Senhor Ventura seja quase um cidadão do mundo pela constante necessidade de mudança que experimenta (é um viajante inveterado que calcorreia e se fixa em terras tão remotas como a China), não deixa de retornar ao ponto de origem, o seu Alentejo dourado ao qual volta munido de mais um sonho (mais um entre os muitos que o acompanharam) e no qual acaba por morrer.
Ele é Português e sê-lo e assumi-lo em qualquer parte do mundo, apesar da adversidade, dos amores falhados, da irreparável perda de um amigo, é algo que jorra da obra e nos contamina com a mensagem de que a fuga às origens é sempre temporária, nunca definitiva.