domingo, março 30, 2008

"O Mistério da Estrada de Sintra" de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão

Queiroz, Eça de, Ortigão, Ramalho, O Mistério da Estrada de Sintra, Livros do Brasil, 2007.

É através de um conjunto de cartas enviadas a um Redactor do Diário de Notícias escritas pelos intervenientes nos acontecimentos ocorridos em vários palcos (sendo que um deles, e o primeiro a ser-nos apresentado é, justamente, a estrada de Sintra) que o leitor se vê enredado numa história policial densa que culmina com a morte de um homem.
Dois amigos regressavam a Lisboa pela estrada de Sintra quando são abordados por um grupo de homens mascarados que os retêm, vendam-nos e conduzem-nos a uma casa onde jaz numa poltrona um homem morto. Um dos raptados é médico e os homens pretendiam apenas a confirmação do óbito, no entanto, a primeira reacção dos homens interceptados é de estarem perante um bando de malfeitores. Contudo, à medida que a noite decorre, os dois amigos conversam com os homens que os mantêm presos, sobretudo com o mascarado alto, e concluem que se trata de pessoas sem qualquer envolvimento naquela morte.

O início da obra é o desfecho da história (ou quase…), mas a carta do mascarado alto, leva-nos a uma viagem a Malta na companhia do Conde e Condessa de W. sua prima. Sabemos pelo seu relato que a Condessa, apesar da sua delicada beleza e espírito, sofrer de uma imensa solidão, alheia às aventuras extraconjugais do Conde mas sentindo essa distância imposta pelo marido.
Em Malta, o mascarado alto e primo da Condessa trava conhecimento com o Capitão Rytmel, inglês de passagem em Malta e que é apresentado à Condessa com o intuito de colmatar a sua solidão e tédio, por ser alguém passível de suscitar o interesse da infeliz Condessa.
E o interesse suscitado excede as expectativas, encontrando o amor crescente da portuguesa e do inglês, vários obstáculos à sua concretização. O facto de ela ser casada mas também o aparecimento de uma personagem verdadeiramente trágica: Cármen Puebla. Uma espanhola que havia sido amante de Rytmel e que se faz acompanhar de seu marido D. Nicazio. Cármen é o oposto da Condessa, tipicamente mediterrânica na aparência, uma mulher extrovertida com suficiente à vontade para estar só na companhia de um punhado de soldados ingleses. Ao perceber o interesse de Rytmel na Condessa de W., Cármen demonstra que não havia esquecido o inglês, pondo em prática um plano movido pelo ciúme para impedir a concretização do intento de ambos: A fuga.

Cármen é destruída pelo amor a Rytmel e a Condessa de W., arrebatada pelo ciúme, pela desconfiança que a distância origina, termina o que Cármen começara e acaba retirada num Convento Carmelita, morta para o mundo.

Esta é a história de dois homens que encenaram um crime e os seus contornos, apaixonando Lisboa com os desenvolvimentos publicados pelo Diário de Notícias e fazendo crer os leitores que acompanharam avidamente o desenrolar da mesma, de que se tratava de um crime real.
O tom confessional com que as cartas são escritas, facilitou, com toda a certeza, a crença na veracidade dos eventos descritos.


domingo, março 23, 2008

"O Livro do Deslumbramento" de Lord Dunsany

Dunsany, Lord, O Livro do Deslumbramento (The Book of Wonder), Saída de Emergência, Tradução de Marta Oliveira, Ana Margarida Canelas, Susana Clara, José Manuel Lopes, 2007.

A editora Saída de Emergência reuniu num só volume “O Livro do Deslumbramento” e “O Novo Livro do Deslumbramento” materializando, assim, a própria vontade de interligação e continuidade do autor expressa no epílogo de “O Livro do Deslumbramento”: Aqui acaba o décimo quarto episódio do Livro do Deslumbramento e o relato das Crónicas das Pequenas Aventuras na Orla do Mundo. Despeço-me dos meus leitores. Mas talvez nos encontremos outra vez, pois ainda ficou por contar como os duendes roubaram as fadas, a vingança das mesmas, e até como tudo isso perturbou o sono dos deuses. Ficou também por contar como o Rei de Ool insultou os trovadores, julgando que estaria a salvo, no meio dos seus muitos arqueiros e centenas de alabardeiros; como os trovadores se instalaram, pela calada da noite, nas torres do rei e, por debaixo das suas ameias, à luz da Lua, e o ridicularizaram para todo o sempre com os seus cantares. Mas para isso, terei primeiro de regressar à Orla do Mundo. Atenção, as caravanas partem.

Lord Dunsany criou um mundo paralelo que situa numa região designada de Orla do Mundo e as histórias narradas, ocorridas nesse espaço distante e desconhecido, são quase sempre transmitidas por via oral através do relato sonhador ou ébrio de viajantes e marinheiros em alguma taberna à beira mar, contadas como se de uma realidade com roupagem de lenda se tratasse. E o nosso narrador, sempre pronto para ouvir as façanha fantásticas de homens comuns transmutados em figuras temíveis e respeitadas ou os feitos assombrosos de piratas terríveis e ameaçadores convertidos em homens passíveis de suscitar a admiração do leitor, conta-nos as aventuras dos que ousaram quebrar com a normalidade de uma vida banal, que partiram em busca de transformar o irreal em algo concreto.

Destaco a inabalável vontade do Capitão Shard, personagem que nos é apresentada no “Livro do Deslumbramento” e que é retomada no “Novo Livro do Deslumbramento” a bordo do seu navio pirata, o Desperate Lark, perseguido, acossado, navegando por mar e terra, resistindo à instabilidade que a sua posição de comando lhe conferia mediante o sucesso ou insucesso da fuga que empreendera.

O deslumbramento aqui significa não só o espanto perante as inúmeras possibilidades da vontade humana ou sobre-humana, mas também o propósito último de todos estes seres. Conquistar esse estado de esplendor, de ofuscação ante a beleza do fim domado, eis o objectivo da grande viagem delineada pelas personagens de Lord Dunsany.

domingo, março 16, 2008

"A Infanta e o Pintor" de Jean-Daniel Baltassat

Baltassat, Jean-Daniel, A Infanta e o Pintor (Le Valet de Peinture), Quetzal Editores, Tradução de Inês Castro, 2005.

A distância desagua no mistério.
E no século XV europeu, as alianças políticas consolidadas através do casamento, socorriam-se da habilidade dos mestres da pintura como Jan Van Eyck para traçarem as formas e feições das mulheres a desposar por um qualquer herdeiro de casa real. E à bruma sucedia-se o palpável e dava-se início à douta avaliação dos homens. E as futuras esposas, moeda de troca dos desígnios maiores dos omnipotentes homens, reduziam-se à sua pequenez, submetiam-se à interpretação variável do pintor, por sua vez dependente do seu mecenas. O seu gesto, a sua disposição, a dureza ou leveza que os traços da sua face declarassem, o olhar frio ou terno que da tela emanasse, tudo dependia do exame do intérprete fiel à sua missão de relato da verdade.

O Duque Filipe de Borgonha, viúvo e afamado pelo seu espírito libertino, incumbe Mestre Johannes de viajar até Lisboa com dois legados por si nomeados afim de se impor o interesse do Duque em desposar a Infanta D. Isabel, filha de D. João I, Mestre de Avis. É evidente que do sucesso de tal empresa, dependia o retrato que Van Eyck pintasse da Princesa.
A Infanta é um enigma para Filipe. Tem trinta e dois anos e permanece solteira. Interessa ao Duque saber porque nunca se casou D. Isabel e o estado em que se encontra decorridos trinta e dois anos de existência. Quer que da obra de Van Eyck transpareçam todas as respostas às suas muitas interrogações. Será bela ou destituída de beleza? Será de carácter submisso ou rebelde? Será ainda donzela? O retrato terá de possuir a transparência que permita, de um relance, desvendar a verdade acerca da Infanta de Portugal, mas o Duque quer apoderar-se igualmente das impressões que o pintor lhe irá transmitir e que possam não estar expressas no quadro.

Acompanhamos a viagem de Mestre Johannes ladeado pelos dois enviados diplomáticos do Duque Filipe, Messire André e Messire Baudoin, bem como do pajem Makhiel que Van Eyck julga tratar-se de um espião instruído por Monsenhor Filipe para controlar a conduta do pintor.
A atribulada jornada prolongou-se por mais de dois meses e quando, finalmente, entraram em Lisboa, após privações de toda a ordem, a Infanta encontrava-se longe da capital.
Os emissários de Filipe entreviram nesta ausência alguma indiferença de D. Isabel à pretensão de Monsenhor, uma espécie de desafio que se sabe breve, mas saboroso pelas ondas de cólera que provocaria.

Van Eyck instala-se no Palácio Real de Sintra, exortado por D. Duarte, o herdeiro do trono português, enquanto a filha do Rei não regressasse do Palácio de Faro, sua residência de Inverno, o que só sucederia por altura da Festa de S. Lázaro.

E eis que a Infanta retorna coberta por um denso véu que lhe esconde a face, entrevendo-se apenas as mãos alvas e jovens que fascinam, desde logo, o pintor.
D. Isabel oculta-se quase em absoluto e deseja fazê-lo durante tanto tempo quanto for possível. Inicia-se o duelo entre o dever e a rejeição momentânea em ceder à obrigação. Ela recusa ser tratada como uma peça de comércio entre nações. Opina, mostra-se arguta e profundamente consciente do seu destino incontornável enquanto mulher. Envia uma aia trajando o seu mais belo vestido para que Van Eyck pinte primeiro o corpo e só depois o rosto que desnudará quando assim o deliberar perante si própria.
Desaparece durante semanas, deixando o pintor entregue a um corpo sem rosto, adivinhando, no entanto, no mesmo, a inscrição de uma personalidade indomável. A Infanta de Portugal é alma e coração muito antes se materializar na tão ansiada fronte que Borgonha espera desvendar os labirintos obscuros da vida de uma mulher diferente.

Quando finalmente descobre o rosto e Van Eyck o pinta, aprovado por toda a baronia portuguesa publicamente, D. Isabel, em privado, pede-lhe um retrato mais sincero, sem omissões da passagem do tempo e roga-lhe que possa olhar Monsenhor Filipe nos olhos mesmo antes de ser sua esposa. O desafio último. Poder encarar o pretendente de igual para igual, aquele que dizia que existia Deus e depois existia ele, subjugado perante o olhar honesto e íntegro daquela que parecia querer dizer que também ela existia.
E Johannes Van Eyck ilumina ainda mais a beleza da Infanta por meio da verdade absoluta. A luz de coragem que sobre ela recai, arreda as sombras do dever a cumprir.

domingo, março 09, 2008

"O Remorso de Baltazar Serapião" de Valter Hugo Mãe

Mãe, Valter Hugo, O Remorso de Baltazar Serapião, Círculo de Leitores, 2007.

A história do Amor ferino entre Ermesinda e Baltazar decorre na Idade Média portuguesa, no reinado de D. Dinis, numa obscura terra sem nome dominada por um senhor feudal todo-poderoso, D. Afonso, reclamante da presença das mais jovens e belas mulheres do feudo na casa grande.
A família Serapião, à qual Baltazar pertence, tinha como única posse uma vaca, a Sarga, elemento indissociável do núcleo familiar dos Serapião. Tendo o pai de Baltazar o nome cristão de Afonso, à semelhança do seu senhor, equivalência esta insustentável, havia sido rebaptizado de O Sarga naquela que se tornara uma durável ligação estabelecida entre os Serapião e o animal, quase como se a diferença entre uns e outra fosse remota ou mesmo inexistente. Apesar de já depreciados desta forma, juntava-se ainda a convicção popular de que Baltazar e aldegundes eram produto da relação bestial entre o pai e a Sarga, naquilo que era uma forma pouco subtil de colocar repetidamente os Serapião ao nível de um animal de curral.
Perante a animosidade crescente das gentes em relação aos Sarga, a proximidade com o animal assume contornos reais tendo como base a rejeição, o preconceito, a superstição populares que votam aquela família à condição de proscritos do povoado.
Banidos pelos do seu próprio meio, desterrados da terra que também era a sua, intentam, em vão, um recomeço algures onde não tenha chegado notícia da sua existência e do que a condicionava mas, a crendice das pessoas com que se cruzam e deles em relação a eles próprios, força-os a renderem-se à sua condição de bestas e, sobretudo, à condição de amaldiçoados por atraírem tudo o que era nefasto para onde quer que se dirigissem.

Ermesinda é repetidamente chamada à casa grande e o marido interroga-a do que D. Afonso lhe queria. A comovente submissão de Ermesinda (comovente porque a protecção de Baltazar é tudo o que a move) revela-se no seu silêncio que trespassa o coração de Baltazar não de dúvidas, mas de certezas. E cada momento mudo da mulher corresponde a uma agressão física do marido. Ermesinda é progressivamente privada da sua honra extra-muros e da sua integridade física intra-muros. E o seu silêncio não é mais do que a conservação da honra de Baltazar. Ela sabe que a sua já não pode ser resgatada. A não verbalização do interdito, torna-o dúbio e mesmo irreal para uma mulher encurralada que ama o marido até ao fim.

O sofrimento das personagens femininas nesta obra de Valter Hugo Mãe é inclassificável pela violência psicológica e física de que são vítimas. A ausência física ou mental (como no caso da Teresa Diaba) é a única salvação possível para estas mulheres à mercê do paternalismo doentio destes homens, do seu saber tudo, da sua convicção nos benefícios de uma “educação” pela força.

À força de a querer só para si, Baltazar deforma a mulher faseadamente, transformando-a num corpo irregular marcado pela sua ira, incapaz de aplicar a sua raiva na origem do mal que o assola. O seu egotismo é aviltante, preocupado que está na ofensa à sua pessoa, olvida o eclipse gradual da mulher com quem casara. A outrora bela Ermesinda.
Baltazar abdica da sua humanidade por não a vislumbrar em si nem nos outros. Parece não se reconhecer como Homem, despojado de alma, ferido de ciúme. Ermesinda cai, vítima da sua inércia e Baltazar, aos olhos de quem o vê/lê, é bem o retrato do Homem-besta. E tudo o que lhe resta no fim do seu percurso é a vaca com que desde sempre a família fora associada. Lado a lado. O paralelo que o povo ignorante criara entre o animal e a família Serapião, materializara-se numa realidade de violência em que a redenção não tem lugar e em que o remorso desponta com a morte, com o sacrifício dos inocentes e a queda impiedosa dos culpados. O acto mais irreflectido de Baltazar é o momento da justiça possível. O castigo divino recai sobre ele na forma do vazio absoluto. A solidão.

domingo, março 02, 2008

"Porque Adoecemos?" de Darian Leader e David Corfield

Leader, Darian, Corfield, David, Porque Adoecemos? (Why do People Get Ill?), Bizâncio, Tradução de Maria Carvalho, 2007.

A doença. Eis o tema central da obra “Porque Adoecemos?” de Darian Leader e David Corfield. Contudo, apesar da seriedade que o assunto analisado abarca, este é um livro escrito de forma acessível, sem recorrer a linguagem apenas compreensível por profissionais da área da saúde, tornando-se, como tal, numa leitura suficientemente inteligível para todos.
Trata-se de um estudo ou, melhor dizendo, uma amálgama de reflexões cientificamente fundamentadas que apontam, não tanto para conclusões peremptórias unilaterais, mas para considerações de elevado interesse sobre as várias causas que se escondem por trás das mais diversas doenças, sempre apresentando exemplos de casos reais. Os autores insistem sobretudo nas motivações psicológicas que originam inúmeros tipos de doenças, ou seja, para além das questões genéticas e ambientais e da predisposição natural, existem factores psicológicos, muitas vezes inconscientes, enterrados no lugar mais escuro e profundo do nosso Ser que, mediante algumas técnicas da psicanálise, são passíveis de ser descobertos, contribuindo para uma leitura mais abrangente e sólida do problema físico que aflige um determinado sujeito.
A impessoalidade que muitos doentes pressentem por parte da medicina convencional, tem arrastado grandes massas a experimentar medicinas alternativas. O distanciamento crescente da relação médico/doente, a par dos frios excessos burocráticos, conduzem os pacientes a buscar opções mais humanizadas, sobretudo, buscam não só a cura como procuram ser ouvidos.
A desumanização da classe médica é focada nesta obra que salienta, acima de tudo, os traumas, pressões e estilos de vida presentes no subconsciente de todos, revelando-se apenas em alguns e despoletando a doença, ocasionalmente, em outros.
Um livro de interesse para todos os que procuram perceber as complexas e misteriosas relações entre corpo e mente.