domingo, agosto 31, 2008

"O Pavilhão das Peónias" de Lisa See

See, Lisa, O Pavilhão das Peónias (Peony in Love), Bizâncio, Tradução de Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito, 2008.

Peónia, filha de um destacado funcionário da Corte do imperador Kangxi, tem dezasseis anos e prepara-se para casar com o filho do melhor amigo do pai. Nunca o vira, conforme, aliás, ditava a tradição. Os noivos só se vislumbrariam quando já fossem marido e mulher, no leito conjugal, no momento em que o denso véu carmesim que cobria a face da nubente fosse retirado pelo esposo.

O seu aniversário, nesse derradeiro ano como mulher solteira, é assinalado com a representação de uma ópera muito apreciada por Peónia, precisamente “O Pavilhão das Peónias” de Tang Xianzu, o cântico de uma mulher que morre de amor e que provocara nas jovens donzelas enclausuradas nos imensos complexos luxuosos das suas famílias, o desencadear de emoções nunca vividas, de um mal de amor por vezes abstracto, uma febre que tornara a obra, aos olhos dos pais zelosos de raparigas casadoiras, objecto proibido.
As jovens eram mantidas dentro dos altos muros distantes do mundo exterior, longe de olhares indiscretos que as pudessem cativar e, no entanto, aquela obra diabólica, quando lida por donzelas de imaginação fértil com o destino traçado pela família, provocava o pior dos desfechos.

Apesar das tragédias ocorridas, o pai de Peónia não resiste a proporcionar à filha que ele julgava imune a tais assomos, o prazer último de lhe trazer a ópera a casa, inserida nos festejos prévios do casamento que se realizaria dali a escassos meses. A despedida perfeita para a filha única.

A resignação de Peónia à deliberação da família em casá-la com um desconhecido, altera-se no decorrer da apresentação de “O Pavilhão das Peónias”. As mulheres da casa, assistem à ópera encenada pelo pai, por detrás de um biombo, no entanto, por entre as frestas, Peónia observa um jovem de cabelo muito negro e liso que a faz reflectir na sua condição de mulher que não pode amar quem quer, mas quem lhe é imposto.
Perturbada pela ideia insuportável de se ver casada com alguém que lhe causa repulsa, Peónia dirige-se ao jardim onde o jovem que vira na assistência masculina da ópera aparece. É o primeiro de alguns encontros transgressivos entre duas pessoas que compreendem a infeliz condição de ambos estarem prometidos e da impossibilidade de concretização do amor que nascera naquele jardim.

Peónia é castigada ao serem detectadas as suas fugas para o jardim. São-lhe retirados os livros que tanto amava, sobretudo “O Pavilhão das Peónias” cuja influência negativa, segundo a amarga mãe, já se abatia sobre a jovem. Por fim, sem o seu amor, sem a companhia de um livro, sem o seu nome de baptismo, retirados todos os elementos constitutivos da sua identidade, encerrada no quarto, condenada a casar com alguém que não conhecia, Peónia deixa de comer. A sua pele torna-se translúcida à medida que o momento do seu desaparecimento se aproxima.

O fim é o começo de uma peregrinação que durará longos anos durante os quais Peónia descobre insondáveis segredos de família e protege o seu bem-amado da influência perversa de uma rival obcecada com a posse do destinatário do amor de Peónia.

Ela converte-se num anjo que vela pelo seu amor até encontrar o caminho para a sua eterna morada.

sábado, agosto 23, 2008

"O Terceiro Passo" de Christopher Priest

Priest, Christopher, O Terceiro Passo (The Prestige), Saída de Emergência, Tradução de Isabel C. Penteado, 2006.

“O Terceiro Passo” é muito mais do que uma história de dois mágicos rivais que se perseguem e que vivem obcecados com a evolução artística de cada um.

É uma narrativa de duplicidade, de desdobramento, de tragédia, de vingança, de cumplicidade e de divergência.
É um canto de amor às artes mágicas tendo como protagonistas dois sôfregos seguidores do ilusionismo, dispostos a dedicarem todos os recursos físicos e morais ao objectivo dual de evoluírem artisticamente e de se sobreporem e esmagarem mutuamente.

A introdução no espectáculo de um dos mágicos de um truque impossível provoca a admiração do rival que procura encontrar uma explicação racional para o que acabara de assistir. É compelido a investigar a vida pessoal do inimigo e conclui que o artifício que presenciara era resultado de verdadeira magia ou ciência.
Atravessa um oceano para encomendar uma máquina que o rival de Edison, Tesla, exilado e derrotado pela fama daquele outro, poderia construir, uma máquina que o teletransportaria para um local previamente escolhido, tornando-se no novo Homem transportado.

A simplicidade do truque de Borden, converte-se em Angier numa culpa sem remorso, numa eternidade retalhada e construída com base no permanente nascimento, morte e renascimento do mágico. Ele passa a dispor da vida humana que cria todas as noites com omnipotência desafiadora e perde noção de humanidade.

A moralidade, a amoralidade, a dualidade bem/ mal, a revelação de que a verdadeira magia está na preparação do espectador e na aparição do elemento ausente, tudo se conjuga para que os dois homens sejam confrontados com decisões determinantes para a sua salvação ou perdição. Eles são responsáveis pelo seu destino. Eles são o resultado das suas escolhas.

E um deles é um anjo caído.

Obra inigualável pela inteligência do enredo, profundidade e subtis variações na psique das personagens, recriação do ambiente nas salas de espectáculo da Londres vitoriana e escrita absolutamente cativante. A combinação de todos os factores atrás enumerados traduziu-se numa leitura relâmpago que mesmo na última linha, mesmo depois do ponto final derradeiro, deixou a leitora abandonada a uma perplexidade atribuível à imensidão literária que este livro alcança.