domingo, maio 31, 2009

"Jane Eyre" de Charlotte Brontë

Brontë, Charlotte, Jane Eyre, Difel, Tradução de João Gaspar Simões, 2004.

Ler “Jane Eyre” é penetrar num universo cindereliano mas de contornos mais intrincados, mais espinhosos.
A história da menina órfã entregue aos cuidados de uma tia detestável e mais tarde a uma escola onde encontra, finalmente, o afecto por que tanto ansiara, sofre mutações várias ao longo da narrativa.

A solidão absoluta da criança e da jovem, termina, numa primeira fase quando chega ao colégio de crianças carenciadas que até atingir a idade adulta será a sua casa.
Mais tarde, quando responde a um anúncio de jornal para uma colocação como preceptora numa grande casa de família e se reúne a essas pessoas que a recebem de forma hospitaleira, sente-se, em definitivo, em casa.

Quando o Senhor de Thornfield Hall regressa à sua propriedade encontra em Jane uma mestra bem diferente do que estava à espera. A sua humildade temperada de um espírito de intensidade e genuinidade raraos prendem, de imediato, a atenção do patrão que dificilmente tolera uma noite sem a requestar para uma interessante troca de ideias.

A solidão é cada vez mais um conceito indistinto tanto para Jane como para Mr. Rochester.

Contudo, o idílio que Jane vivia é abruptamente interrompido pela partida de Rochester por um período de várias semanas. Perdida, cumpre as suas tarefas de professora da pequena Adéle e pensa sem cessar na possível união de duas casas ricas de que Mrs. Fairfax, a governanta de Thornfield lhe falara. Descrevera-lhe a beleza de Miss Ingram, a prometida, e Jane via-se ao espelho mais desengraçada que nunca. Penitencia-se sem cessar por ter idealizado o afecto sincero e desinteressado de Mr. Rochester e compreendia que o seu sonho esbarrava na crueza de convenção social.

Restava-lhe aguardar pelo regresso do patrão e pelo anúncio de um casamento por conveniência útil às pretensões sociais de ambos.

A comitiva de convidados de Mr. Rochester chega a Thornfield Hall e ao vislumbrar a aparência elegante de Miss Ingram, conforma-se com a sua sorte adversa e com a breve partida para uma outra casa a que jamais conseguiria chamar de lar. O seu destino estava traçado e Mr. Rochester nunca faria parte desse futuro de reencontro com a solidão que a esperava.

A montagem deste cenário e a introdução de uma personagem verdadeiramente reveladora, a cigana, conduzem o leitor rumo às reais intenções de Edward Rochester e julgamos que, por fim, a pobre heroína não deverá enfrentar quaisquer outras provações.

Mas mais um obstáculo se atravessa no seu caminho de forma inesperada e o choque emocional impele-a a partir sem rumo, a vaguear como mendiga de terra em terra.

Para além de se tratar de um clássico da literatura mundial, recomendo “Jane Eyre” por ser uma obra plena de uma sensibilidade excepcional repleta de nuances no fio narrativo como só uma grande escritora saberia manobrar.

sábado, maio 23, 2009

"O Anel de Basalto" de Mário Cláudio

Cláudio, Mário, O Anel de Basalto, Dom Quixote, 2000.
O tempo é de milagres. Uma sucessão de nascimentos anunciados por anjos ou sábios monges budistas completa o círculo que as velhas profecias de regresso do Encoberto há muito vaticinavam: a missão próxima dos iluminados no mundo português visando a libertação do Rei dos calabouços da morte.

É necessário percorrer longes míticos, estabelecer alianças de casamento, viver rodeado de sociedades diversas para encerrar o anel de fogo revelador do trono de pedra firme em que o reino de Portugal postaria o seu Rei há muito desaparecido.

A ideia de um Quinto Império erguido pelos grandes nomes do passado português, coadjuvados por sábios de todo o mundo e por dois contemporâneos nascidos em circunstâncias extra-ordinárias é o ponto nuclear desta narrativa. Um segredo milenar comungado por um grupo restrito de privilegiados é a sarça ardente no coração dos que lideram a mudança prenunciada. A estratégia de regresso do Rei abarca elementos sobrenaturais, viagens fantásticas, elos inimagináveis entre civilizações distantes unidas pelo propósito comum de ressuscitar o Salvador de Portugal, do mundo.

Esta utopia, alimentada pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa (só para referir os mais destacados intérpretes da ideia), continua a produzir entre nós uma literatura ficcional de grande interesse porque de homenagem a um espírito português que perdura (nem que seja num prisma meramente filosófico) e que nos empurra para as tormentas da realidade, para o desconhecido habitado por Adamastores ameaçadores com a esperança dos exercitados na eterna restauração. Levantados do chão…

domingo, maio 10, 2009

"A Vida de Sonho de Sukhanov" de Olga Grushin

Grushin, Olga, A Vida de Sonho de Sukhanov (The Dream Life of Sukhanov), Bizâncio, Tradução de Francisco Agarez, 2007.

A salvação de um homem pela arte, eis uma das problemáticas abordadas no universo de realismo mágico que Olga Grushin nos apresenta com este seu “A Vida de Sonho de Sukhanov”.
Anatoly Sukhanov é um microcosmo da sociedade russa dos últimos sessenta anos, representando em simultâneo o que de mais nobre e o que de mais deplorável subjaz na sombra desse período da história do seu país.

Enquanto jovem, a sua ideologia artística centra-se nos movimentos nascentes com os quais se identifica e segue o seu impulso criativo rumo à criação de um estilo próprio, nunca renegando contudo os grandes mestres russos proscritos por não pintarem arte para o povo. Sukhanov tinha uma vida artística dupla: onde leccionava, expunha a arte oficial, aquela que lhe era exigida pelo poder político (infiltrado em todas as vertentes da sociedade) e em casa, escondia o seu pequeno mundo de verdade artística, imune à influência desviante da arte partidária. No apartamento onde vivia com a mãe, as asas recolhidas durante o dia, abriam-se à imensidão de liberdade que o aguardava em cada nova obra.

Quando conhece Nina Malinina, filha de um conceituado pintor arregimentado na ordem estabelecida, a sua arte é transformada pelo aparecimento da musa mas, com o tempo, com o resvalar das certezas que o haviam tornado homem e pintor, com as dificuldades e incapacidade de ser o que de si era esperado pela sereia que povoava a sua realidade, Anatoly cede ao apelo dos vencedores, instala-se como seguidor daqueles que tanto desprezara, torna-se ele próprio um manipulador de mentes, contribuindo para o “bem comum”.

Os vinte anos de escuridão que se seguem são ilusoriamente felizes preenchidos de feitos ilusoriamente significativos.
Até que um dia, pequenos acontecimentos simples, plenos de casualidade, desencadeiam em Anatoly Sukhanov as recordações do que havia sido, de quem havia feito parte da sua vida e eis que a caixa empoeirada que enterrara no seu coração se abria e ele penetrava no seu interior como Alice na toca do coelho. Revisita todos os momentos desse passado que julgava perdido e compreende que a renegação de valores em que tão resolutamente acreditava o conduzira ao estado de confusão e perda de identidade em que se encontrava.

Sukhanov empreende uma viagem de sonho na sua vida de pesadelo e, ao vaguear nos recessos mais esconsos da sua alma vê, finalmente, a luz
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domingo, maio 03, 2009

"O Retrato" de Nikolai Gógol

Gógol, Nikolai, O Retrato, Edições Quasi, Tradução de Tatiana Carmo, 2008.

Na primeira parte desta narrativa tecida de elementos que reconhecemos como integrantes de um mundo estranho a que comummente designamos de fantástico, conhecemos Tchartkov, um jovem e pobre pintor fiel à sua arte, aos seus ideais artísticos e humanos que entrelaça de forma genuína nas suas telas fora de moda a sua concepção de arte, fugindo aos cânones da época de forma a manter-se no caminho da verdade, mesmo que para tal seja despejado da sua humilde habitação, passe fome e frio ou não tenha dinheiro suficiente para tintas e, consequentemente, para pintar com a regularidade que lhe permitiria viver, ainda que com as dificuldades naturais de um pintor não eleito pelos eleitos da sociedade, da sua pintura.

Tchartkov entra na lojinha de quadros do mercado de Chukine Dvor, uma espécie de montra para as classes mais desfavorecidas poderem apreciar obras de fácil pincelada mas ainda assim inacessíveis aos seus bolsos. Entra porque no meio de tanta ausência de arte, poderia encontrar algo de realmente precioso. Entra porque um inexplicável apelo o incita a perscrutar aquelas obras enfadonhas uma a uma. A sua ambição oculta já havia sido pressentida pelos olhos ardentes do “… velho com um rosto cor do bronze, de maçãs do rosto salientes, mirrado;…” cujo olhar, captado com uma “meticulosidade diligente” brilhava com um vigor tal que parecia destruir a “harmonia com a sua estranha vida”. O velho ali representado com trajes asiáticos parecia conhecer a alma de cada transeunte que se detinha na loja ou reconhecê-las como se com elas já se tivesse cruzado e soubesse o que almejavam da vida. O pintor pobre compra o quadro por vinte copeques, todo o dinheiro que tinha. Perturba-o e, no entanto, regateia o preço com o vendedor e leva-o para casa.

A transformação que a posse do quadro despoleta na sua vida é a negação de tudo quanto sempre defendera. O quadro ganha literalmente vida e é oferecida uma nova vida a Tchartkov, uma nova vida encerrada numa bolsa com moedas de ouro. Mas a sua alma é arrebatada por um mal sem nome, é perdida num torvelinho de confusão identitária. Ele já não sabe quem é. Só sabe o que tem.

Na segunda parte de “O Retrato” deparamo-nos com o nefasto quadro a ser leiloado e alguém de entre os licitadores reclamar o direito de contar uma história que lhe daria prioridade na aquisição da obra. E assim conhecemos a história do retratado e a história do homem que o pintou e que não foi capaz de terminar a obra graças à influência negativa que o homem oriental, um conhecido usurário de S. Petersburgo, exercia sobre ele.

Fica implícito que o homem nunca identificado pelo nome, exigia, em troca do dinheiro que emprestava, algo de absolutamente interdito, e a pintura do retrato era uma forma de a intervenção nefasta na vida das pessoas que consigo contactavam nunca cessar, mesmo depois de morto. O consentimento dos desesperados era a seiva de que se alimentava para continuar o seu trabalho de propagação do fado negro destinado aos atormentados pela vida.