A inexactidão periférica, atributo ímpar de um quadro de grandes dimensões de autoria desconhecida (apesar de a família Nabasco, na pessoa de Maria Rosa, alegar que se tratava de “A Ronda da Noite” original de Rembrandt), alimenta o projecto de realidade dos Nabasco, em cuja posse a obra estaria há várias gerações.
A ambiguidade do quadro proporciona, sobretudo a Martinho Nabasco, uma possibilidade de acompanhamento do movimento da “Ronda” em concordância com as manifestações da sua vida, da família e das pessoas a ela ligadas, tudo através de um feixe de influências em que a luz e a obscuridade se interligam e deleitam com a instabilidade própria de um prematuro dia de primavera. A “Ronda” entra no “espaço” de Martinho como cenário oscilante das suas decisões, medos, aventuras, avanços, recuos, desamores (nunca amores), até se tornar, de forma definitiva, no “espaço” propriamente dito, no qual, para além da Companhia do Capitão Cocq e de Saskia, também Martinho (debilmente) se movimenta.
A duplicidade de planos na tela do Mestre Holandês, bem como o grau de importância de cada um, impele-nos a questionar o intuito verdadeiro da “Ronda” (se é que havia, de facto, uma intenção interpretativa…). A Companhia do Capitão Cocq desloca-se demoradamente na preparação de um qualquer evento não decifrável, mas tão só imaginável. Movem-se estes homens num primeiro plano enganador, um primeiro plano coberto por um manto negro de estaticidade (como que para reter o absoluto do momento), toldado por uma vaga necessidade, pretextando, anunciando apenas o não alinhamento de uma criança no contexto apresentado, uma criança que atravessa a multidão de homens de armas com desembaraço, com segurança e com um imperscrutável meio sorriso no rosto desirmanado. Ela surge num aparente segundo plano, hipótese imediatamente dissipada ante a percepção de que uma aura de luz a envolve num abraço dourado que a dilata na tela, convertendo-a no centro da mesma. Um ponto de luz móvel numa noite escura. E desta cintilação acompanhada de símbolos misteriosos (porque associados a uma figura de criança – a galinha e a pistola à cinta) emana poder, um poder estranhamente superior ao poder bélico que a rodeia; talvez seja o poder da inocência sobre o coração dos homens ou talvez seja o poder de uma memória persistente, inamovível… É uma força celestial, uma força que reside e resiste para além deste mundo mas que, ocasionalmente a ele desce como que para o recordar da sua nulidade perante o Tudo que desconhece.
Saskia flutua na “Ronda da Noite”, faz a sua ronda de Anjo no âmago do constante ímpeto guerreiro do Ser-Humano. A sua mera presença, luminosa, é uma censura não velada à cristalização daquele instante da natureza humana. É o conhecimento do Homem que o vigia na vigília de Saskia, o olho omnipresente de Deus.
A obsessão que a “Ronda da Noite” constitui para Martinho Nabasco vai para além do sentimento de posse que uma obsessão comporta. O estudo, a observação compulsiva da obra transportam-no para a explicação de uma vida, tendo por base a insidiosa obra de Rembrandt. Esquecida, mutilada, relegada para um plano secundário nos haveres dos Nabasco, Martinho e a Avó, Maria Rosa, reabilitam a “Ronda”, apresentam-na à luz do dia como a mais preciosa relíquia da família.
Tal como a pequena Saskia, as mulheres da vida de Martinho não se detiveram na tela, deslizaram para lá do fotograma em que ele as mantinha como peças de museu numa passividade de voyeur.
A obra é por fim destruída pela fúria ciumenta de uma mulher e o “mapa” da vida de Martinho Nabasco desaparece; dos veios sinuosos, das rugas, das marcas que o delimitavam e que apontavam um futuro, restam somente sombras dificilmente adivinháveis da cifra da vida de Martinho, despojo de perplexidades.
A conversão da “Ronda” em imagens desfocadas, espelha-se no desvanecer lento e apagado de Martinho (como os homens do Capitão Cocq na “Ronda”, vagarosos e sem brilho) em contraposição com as mulheres que consigo se cruzaram, estrelas que iluminavam a sua memória como Saskia a “Ronda”.
E Martinho morre na antecâmara de uma ronda nocturna sem regresso, vencido pela fragilidade que é a realidade.
A ambiguidade do quadro proporciona, sobretudo a Martinho Nabasco, uma possibilidade de acompanhamento do movimento da “Ronda” em concordância com as manifestações da sua vida, da família e das pessoas a ela ligadas, tudo através de um feixe de influências em que a luz e a obscuridade se interligam e deleitam com a instabilidade própria de um prematuro dia de primavera. A “Ronda” entra no “espaço” de Martinho como cenário oscilante das suas decisões, medos, aventuras, avanços, recuos, desamores (nunca amores), até se tornar, de forma definitiva, no “espaço” propriamente dito, no qual, para além da Companhia do Capitão Cocq e de Saskia, também Martinho (debilmente) se movimenta.
A duplicidade de planos na tela do Mestre Holandês, bem como o grau de importância de cada um, impele-nos a questionar o intuito verdadeiro da “Ronda” (se é que havia, de facto, uma intenção interpretativa…). A Companhia do Capitão Cocq desloca-se demoradamente na preparação de um qualquer evento não decifrável, mas tão só imaginável. Movem-se estes homens num primeiro plano enganador, um primeiro plano coberto por um manto negro de estaticidade (como que para reter o absoluto do momento), toldado por uma vaga necessidade, pretextando, anunciando apenas o não alinhamento de uma criança no contexto apresentado, uma criança que atravessa a multidão de homens de armas com desembaraço, com segurança e com um imperscrutável meio sorriso no rosto desirmanado. Ela surge num aparente segundo plano, hipótese imediatamente dissipada ante a percepção de que uma aura de luz a envolve num abraço dourado que a dilata na tela, convertendo-a no centro da mesma. Um ponto de luz móvel numa noite escura. E desta cintilação acompanhada de símbolos misteriosos (porque associados a uma figura de criança – a galinha e a pistola à cinta) emana poder, um poder estranhamente superior ao poder bélico que a rodeia; talvez seja o poder da inocência sobre o coração dos homens ou talvez seja o poder de uma memória persistente, inamovível… É uma força celestial, uma força que reside e resiste para além deste mundo mas que, ocasionalmente a ele desce como que para o recordar da sua nulidade perante o Tudo que desconhece.
Saskia flutua na “Ronda da Noite”, faz a sua ronda de Anjo no âmago do constante ímpeto guerreiro do Ser-Humano. A sua mera presença, luminosa, é uma censura não velada à cristalização daquele instante da natureza humana. É o conhecimento do Homem que o vigia na vigília de Saskia, o olho omnipresente de Deus.
A obsessão que a “Ronda da Noite” constitui para Martinho Nabasco vai para além do sentimento de posse que uma obsessão comporta. O estudo, a observação compulsiva da obra transportam-no para a explicação de uma vida, tendo por base a insidiosa obra de Rembrandt. Esquecida, mutilada, relegada para um plano secundário nos haveres dos Nabasco, Martinho e a Avó, Maria Rosa, reabilitam a “Ronda”, apresentam-na à luz do dia como a mais preciosa relíquia da família.
Tal como a pequena Saskia, as mulheres da vida de Martinho não se detiveram na tela, deslizaram para lá do fotograma em que ele as mantinha como peças de museu numa passividade de voyeur.
A obra é por fim destruída pela fúria ciumenta de uma mulher e o “mapa” da vida de Martinho Nabasco desaparece; dos veios sinuosos, das rugas, das marcas que o delimitavam e que apontavam um futuro, restam somente sombras dificilmente adivinháveis da cifra da vida de Martinho, despojo de perplexidades.
A conversão da “Ronda” em imagens desfocadas, espelha-se no desvanecer lento e apagado de Martinho (como os homens do Capitão Cocq na “Ronda”, vagarosos e sem brilho) em contraposição com as mulheres que consigo se cruzaram, estrelas que iluminavam a sua memória como Saskia a “Ronda”.
E Martinho morre na antecâmara de uma ronda nocturna sem regresso, vencido pela fragilidade que é a realidade.