sexta-feira, abril 10, 2009

"O Físico Prodigioso" de Jorge de Sena

Sena, Jorge de, O Físico Prodigioso, Edições Asa, 2005.

Como o próprio autor confessa nas notas finais que acompanham a minha edição de "O Físico Prodigioso", a novela baseou-se em dois “exemplos” do Orto do Esposo, livro moralístico-religioso da primeira metade do século XV: o do homem com poderes mágicos de cura através do seu sangue virgem, e o do homem que não conseguiam enforcar porque o diabo o levantava no ar.
Trata-se de um “conto” de imortalidade e de invisibilidade asseguradas pela posse de um barrete mágico e pela presença protectora do próprio diabo que retira prazer da mera observação das movimentações humanas (mas sempre com o seu quê de “maravilha”; e utilizo aqui a palavra maravilha no sentido com que a encontramos nos livros de cavalaria – acontecimento inverosímil) do protagonista cujo nome é por ele mesmo considerado acessório e assim ocultado.

Contudo, a contemplação do físico pelo diabo tem o seu custo: a alma vazada do jovem inicia-se na agonia de tudo ter. Desta forma, uma “rebelião” interior irrompe e interrompe a até então intocável plenitude de imortal de que gozava. É assim o seu zelo e não um diabo insatisfeito que o arrasta para um calabouço da inquisição onde permanecerá longos anos perdendo o viço que o caracterizara, mas transmitindo-o a outros por meio de uma obra de contaminação digna do seu patrono. Curioso é que o diabo, apesar da degradação física do seu protegido, não cessa de o amar salvando-o, inclusivamente, da provação última, a morte.

É uma novela que julgo “recuperar” o conceito de “aventura” tal qual exposto nos seus contornos essenciais nos livros de cavalaria. O absurdo, a tentação, a linha ténue que por vezes demarca o mal do bem, surgem no caminho do donzel apresentado sob uma luz aqui e ali semelhante à que ilumina um Galaaz, mas com uma diferença fundamental: Galaaz, o herói casto da “Demanda do Santo Graal”, serve Deus; o físico prodigioso é um escolhido do demónio (e assume várias formas ao longo do livro, identificando-se no entanto sempre pela referência à audição súbita de um “riso casquinado”). Ambos prisioneiros, embora de forças antagónicas.

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