segunda-feira, novembro 09, 2009

Temporariamente suspenso

Caros Seguidores do À Margem,

Como já terão reparado, o blogue não é actualizado há algum tempo... Deste modo, cumpre-me anunciar-vos que suspendo temporariamente a actividade desenvolvida no mesmo e inicio um projecto um pouco mais abrangente e que melhor se adequa ao actual momento que atravesso... Poderão continuar a seguir o "meu rasto" em http://tintapermanenteblog.blogspot.com/.

Quanto ao À Margem, voltaremos a encontrar-nos por aqui em breve...

domingo, agosto 30, 2009

"O Rapaz do Pijama às Riscas" John Boyne

Boyne, John, O Rapaz do Pijama às Riscas (The boy in the striped pyjamas), Asa, Tradução de Cecília Faria e Olívia Santos, 2009.

Numa história de contornos simples John Boyne consegue infiltrar o leitor no mundo em mudança de Bruno, uma criança dividida entre o universo protector que conhece e o exterior pleno de sombras indefiníveis por explorar e realidades paralelas em colisão com os ideais nazis representados pelo pai, recém-nomeado comandante de um campo de concentração.

As mutações sofridas na vida de Bruno entrecruzam-se com a própria metamorfose do Mundo face ao avanço megalómano nazi e o desmoronar da vida que sempre conhecera em Berlim coincide com a derrocada do Mundo livre.

O pequeno Bruno reúne em si a gravidade do despojamento violento com que o Mundo é sacudido, sobretudo o Mundo Judeu Europeu e os Mundos distintos não tolerados pela nova cultura “ariana” de perfeição.

Isolado na prisão sombria que constitui a nova casa da família, junto ao campo que o pai comanda, Bruno explora os bosques que circundam “Acho-Vil” e depara-se com um local vedado com arame farpado.
Ao aproximar-se vê que se encontra sentado junto à vedação um rapazinho de aspecto frágil, vestido com um estranho pijama às riscas. Shmuel e Bruno tornam-se amigos. Ambos fugitivos da casa que os adultos lhes impuseram. Unidos pela inocência, pelo total alheamento face à realidade de horrores que os rodeia, materializada pelos fumos que se erguem ao céu, a evasão possível.

Recomendo este livro porque já li muitas páginas de ficção e não ficção sobre o tema e encontrei nesta pequena obra originalidade na abordagem e na construção narrativa, provando que este é um tema inesgotável com desenlaces sempre passíveis de surpreender mesmo o leitor mais experimentado.

domingo, agosto 16, 2009

"O Rei de Ferro" de Maurice Druon

Druon, Maurice, O Rei de Ferro (Le Roi de Fer), GótiItálicoca, tradução de Helena Ramos, 2006.

Terminado que está este primeiro volume dos sete que constituem a saga “Os Reis Malditos” de Maurice Druon, fica o desejo de continuar a acompanhar as desditas dos reis amaldiçoados por Jacques de Molay, o Grão-Mestre da Sagrada Ordem dos Cavaleiros do Templo, naquele dia 14 de Março de 1314 quando a morte pela fogueira estava iminente após um processo de condenação fraudulento que retivera de Molay encarcerado durante sete anos até à execução final.

Agradou-me a forma como o autor humanizou as personagens históricas intervenientes nestes últimos anos do reinado de Filipe, o Belo, bem como as intrigas palacianas em que a corte francesa nesta primeira metade do século XIV se viu envolvida.

A frieza do Rei de França aqui retratado é lendária mas nesta aproximação, neste zoom com que Maurice Druon nos presenteia, deparamo-nos com pormenores de emoção de grande interesse e que vão desde a consciência de que a filha Isabel, Rainha de Inglaterra, daria uma mais adequada sucessora do que qualquer um dos três filhos, até ao terror final, à íntima certeza de que a maldição de Jacques de Molay de que os seus carrascos em breve seriam pó, se concretizara com uma precisão indubitável.

Em menos de 1 ano, os algozes do Grão-Mestre estavam, também eles, mortos em circunstâncias pouco claras deixando um reino a algumas gerações de ser levantada a desgraça que se abateria sobre as cabeças reais que se seguiam. Que venham os próximos volumes!

domingo, junho 21, 2009

"A Rainha de Sabá" de Marek Halter

Halter, Marek, A Rainha de Sabá (La Reine de Saba), Bizâncio, Tradução de António Carlos Carvalho, 2009.

Os acontecimentos reais e míticos que rodeiam a figura da Rainha de Sabá, preenchem esta obra de Marek Halter, um romance biográfico sobre uma mulher de carácter forte e capacidade de liderança irreprimível num mundo dominado pelos homens.

Makêda, Rainha de Sabá, desde cedo demonstra inclinação política para enfrentar os inimigos do Reino de forma implacável e corajosa. Contudo, a par desta ferocidade cruel dirigida aos usurpadores da união construída pelo pai, Makêda revela-se possuidora de uma predisposição humana que comove os seus mais próximos conselheiros e o povo do seu Reino.

Conhecemos, assim, a menina antes de se tornar mulher e Rainha e acompanhamos essa transição natural operada para que, chegado o momento da subida ao trono de Sabá, tal responsabilidade fosse encarada como a continuidade dos preceitos que sempre haviam regido a educação da futura Rainha e o governo do Reino que herdara por morte do pai.

A perseguição e extermínio dos assassinos do Rei comandam a vida de Makêda nos primeiros tempos do seu reinado, mas uma vez saciada essa sede de vingança e estabilizada a vida conturbada do Reino com a morte dos agitadores, a Rainha de Sabá dedica-se à consolidação das trocas comerciais já existentes e ao alargamento desses intercâmbios a outros reinos distantes que se dão a conhecer como foi o caso do Reino de Judá e Israel, governado pelo Rei Salomão, que envia uma delegação para contactos comerciais a Sabá.
Os mensageiros de Salomão exaltam as qualidades humanas e políticas do seu soberano e Makêda sente-se impelida a retribuir a visita indo a Jerusalém pessoalmente para conhecer esse Rei tão sábio e sensível, com um carácter tão contrário aos costumes por vezes selváticos que imperavam à época.

Esta viagem ao mundo de Makêda, Rainha de Sabá, é também um encontro entre uma mulher e um homem e os mundos distantes e próximos que habitam, dois soberanos unidos debaixo do mesmo céu de inteligência e amor.

domingo, maio 31, 2009

"Jane Eyre" de Charlotte Brontë

Brontë, Charlotte, Jane Eyre, Difel, Tradução de João Gaspar Simões, 2004.

Ler “Jane Eyre” é penetrar num universo cindereliano mas de contornos mais intrincados, mais espinhosos.
A história da menina órfã entregue aos cuidados de uma tia detestável e mais tarde a uma escola onde encontra, finalmente, o afecto por que tanto ansiara, sofre mutações várias ao longo da narrativa.

A solidão absoluta da criança e da jovem, termina, numa primeira fase quando chega ao colégio de crianças carenciadas que até atingir a idade adulta será a sua casa.
Mais tarde, quando responde a um anúncio de jornal para uma colocação como preceptora numa grande casa de família e se reúne a essas pessoas que a recebem de forma hospitaleira, sente-se, em definitivo, em casa.

Quando o Senhor de Thornfield Hall regressa à sua propriedade encontra em Jane uma mestra bem diferente do que estava à espera. A sua humildade temperada de um espírito de intensidade e genuinidade raraos prendem, de imediato, a atenção do patrão que dificilmente tolera uma noite sem a requestar para uma interessante troca de ideias.

A solidão é cada vez mais um conceito indistinto tanto para Jane como para Mr. Rochester.

Contudo, o idílio que Jane vivia é abruptamente interrompido pela partida de Rochester por um período de várias semanas. Perdida, cumpre as suas tarefas de professora da pequena Adéle e pensa sem cessar na possível união de duas casas ricas de que Mrs. Fairfax, a governanta de Thornfield lhe falara. Descrevera-lhe a beleza de Miss Ingram, a prometida, e Jane via-se ao espelho mais desengraçada que nunca. Penitencia-se sem cessar por ter idealizado o afecto sincero e desinteressado de Mr. Rochester e compreendia que o seu sonho esbarrava na crueza de convenção social.

Restava-lhe aguardar pelo regresso do patrão e pelo anúncio de um casamento por conveniência útil às pretensões sociais de ambos.

A comitiva de convidados de Mr. Rochester chega a Thornfield Hall e ao vislumbrar a aparência elegante de Miss Ingram, conforma-se com a sua sorte adversa e com a breve partida para uma outra casa a que jamais conseguiria chamar de lar. O seu destino estava traçado e Mr. Rochester nunca faria parte desse futuro de reencontro com a solidão que a esperava.

A montagem deste cenário e a introdução de uma personagem verdadeiramente reveladora, a cigana, conduzem o leitor rumo às reais intenções de Edward Rochester e julgamos que, por fim, a pobre heroína não deverá enfrentar quaisquer outras provações.

Mas mais um obstáculo se atravessa no seu caminho de forma inesperada e o choque emocional impele-a a partir sem rumo, a vaguear como mendiga de terra em terra.

Para além de se tratar de um clássico da literatura mundial, recomendo “Jane Eyre” por ser uma obra plena de uma sensibilidade excepcional repleta de nuances no fio narrativo como só uma grande escritora saberia manobrar.

sábado, maio 23, 2009

"O Anel de Basalto" de Mário Cláudio

Cláudio, Mário, O Anel de Basalto, Dom Quixote, 2000.
O tempo é de milagres. Uma sucessão de nascimentos anunciados por anjos ou sábios monges budistas completa o círculo que as velhas profecias de regresso do Encoberto há muito vaticinavam: a missão próxima dos iluminados no mundo português visando a libertação do Rei dos calabouços da morte.

É necessário percorrer longes míticos, estabelecer alianças de casamento, viver rodeado de sociedades diversas para encerrar o anel de fogo revelador do trono de pedra firme em que o reino de Portugal postaria o seu Rei há muito desaparecido.

A ideia de um Quinto Império erguido pelos grandes nomes do passado português, coadjuvados por sábios de todo o mundo e por dois contemporâneos nascidos em circunstâncias extra-ordinárias é o ponto nuclear desta narrativa. Um segredo milenar comungado por um grupo restrito de privilegiados é a sarça ardente no coração dos que lideram a mudança prenunciada. A estratégia de regresso do Rei abarca elementos sobrenaturais, viagens fantásticas, elos inimagináveis entre civilizações distantes unidas pelo propósito comum de ressuscitar o Salvador de Portugal, do mundo.

Esta utopia, alimentada pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa (só para referir os mais destacados intérpretes da ideia), continua a produzir entre nós uma literatura ficcional de grande interesse porque de homenagem a um espírito português que perdura (nem que seja num prisma meramente filosófico) e que nos empurra para as tormentas da realidade, para o desconhecido habitado por Adamastores ameaçadores com a esperança dos exercitados na eterna restauração. Levantados do chão…

domingo, maio 10, 2009

"A Vida de Sonho de Sukhanov" de Olga Grushin

Grushin, Olga, A Vida de Sonho de Sukhanov (The Dream Life of Sukhanov), Bizâncio, Tradução de Francisco Agarez, 2007.

A salvação de um homem pela arte, eis uma das problemáticas abordadas no universo de realismo mágico que Olga Grushin nos apresenta com este seu “A Vida de Sonho de Sukhanov”.
Anatoly Sukhanov é um microcosmo da sociedade russa dos últimos sessenta anos, representando em simultâneo o que de mais nobre e o que de mais deplorável subjaz na sombra desse período da história do seu país.

Enquanto jovem, a sua ideologia artística centra-se nos movimentos nascentes com os quais se identifica e segue o seu impulso criativo rumo à criação de um estilo próprio, nunca renegando contudo os grandes mestres russos proscritos por não pintarem arte para o povo. Sukhanov tinha uma vida artística dupla: onde leccionava, expunha a arte oficial, aquela que lhe era exigida pelo poder político (infiltrado em todas as vertentes da sociedade) e em casa, escondia o seu pequeno mundo de verdade artística, imune à influência desviante da arte partidária. No apartamento onde vivia com a mãe, as asas recolhidas durante o dia, abriam-se à imensidão de liberdade que o aguardava em cada nova obra.

Quando conhece Nina Malinina, filha de um conceituado pintor arregimentado na ordem estabelecida, a sua arte é transformada pelo aparecimento da musa mas, com o tempo, com o resvalar das certezas que o haviam tornado homem e pintor, com as dificuldades e incapacidade de ser o que de si era esperado pela sereia que povoava a sua realidade, Anatoly cede ao apelo dos vencedores, instala-se como seguidor daqueles que tanto desprezara, torna-se ele próprio um manipulador de mentes, contribuindo para o “bem comum”.

Os vinte anos de escuridão que se seguem são ilusoriamente felizes preenchidos de feitos ilusoriamente significativos.
Até que um dia, pequenos acontecimentos simples, plenos de casualidade, desencadeiam em Anatoly Sukhanov as recordações do que havia sido, de quem havia feito parte da sua vida e eis que a caixa empoeirada que enterrara no seu coração se abria e ele penetrava no seu interior como Alice na toca do coelho. Revisita todos os momentos desse passado que julgava perdido e compreende que a renegação de valores em que tão resolutamente acreditava o conduzira ao estado de confusão e perda de identidade em que se encontrava.

Sukhanov empreende uma viagem de sonho na sua vida de pesadelo e, ao vaguear nos recessos mais esconsos da sua alma vê, finalmente, a luz
.

domingo, maio 03, 2009

"O Retrato" de Nikolai Gógol

Gógol, Nikolai, O Retrato, Edições Quasi, Tradução de Tatiana Carmo, 2008.

Na primeira parte desta narrativa tecida de elementos que reconhecemos como integrantes de um mundo estranho a que comummente designamos de fantástico, conhecemos Tchartkov, um jovem e pobre pintor fiel à sua arte, aos seus ideais artísticos e humanos que entrelaça de forma genuína nas suas telas fora de moda a sua concepção de arte, fugindo aos cânones da época de forma a manter-se no caminho da verdade, mesmo que para tal seja despejado da sua humilde habitação, passe fome e frio ou não tenha dinheiro suficiente para tintas e, consequentemente, para pintar com a regularidade que lhe permitiria viver, ainda que com as dificuldades naturais de um pintor não eleito pelos eleitos da sociedade, da sua pintura.

Tchartkov entra na lojinha de quadros do mercado de Chukine Dvor, uma espécie de montra para as classes mais desfavorecidas poderem apreciar obras de fácil pincelada mas ainda assim inacessíveis aos seus bolsos. Entra porque no meio de tanta ausência de arte, poderia encontrar algo de realmente precioso. Entra porque um inexplicável apelo o incita a perscrutar aquelas obras enfadonhas uma a uma. A sua ambição oculta já havia sido pressentida pelos olhos ardentes do “… velho com um rosto cor do bronze, de maçãs do rosto salientes, mirrado;…” cujo olhar, captado com uma “meticulosidade diligente” brilhava com um vigor tal que parecia destruir a “harmonia com a sua estranha vida”. O velho ali representado com trajes asiáticos parecia conhecer a alma de cada transeunte que se detinha na loja ou reconhecê-las como se com elas já se tivesse cruzado e soubesse o que almejavam da vida. O pintor pobre compra o quadro por vinte copeques, todo o dinheiro que tinha. Perturba-o e, no entanto, regateia o preço com o vendedor e leva-o para casa.

A transformação que a posse do quadro despoleta na sua vida é a negação de tudo quanto sempre defendera. O quadro ganha literalmente vida e é oferecida uma nova vida a Tchartkov, uma nova vida encerrada numa bolsa com moedas de ouro. Mas a sua alma é arrebatada por um mal sem nome, é perdida num torvelinho de confusão identitária. Ele já não sabe quem é. Só sabe o que tem.

Na segunda parte de “O Retrato” deparamo-nos com o nefasto quadro a ser leiloado e alguém de entre os licitadores reclamar o direito de contar uma história que lhe daria prioridade na aquisição da obra. E assim conhecemos a história do retratado e a história do homem que o pintou e que não foi capaz de terminar a obra graças à influência negativa que o homem oriental, um conhecido usurário de S. Petersburgo, exercia sobre ele.

Fica implícito que o homem nunca identificado pelo nome, exigia, em troca do dinheiro que emprestava, algo de absolutamente interdito, e a pintura do retrato era uma forma de a intervenção nefasta na vida das pessoas que consigo contactavam nunca cessar, mesmo depois de morto. O consentimento dos desesperados era a seiva de que se alimentava para continuar o seu trabalho de propagação do fado negro destinado aos atormentados pela vida.

domingo, abril 26, 2009

"Património" de Philip Roth

Roth, Philip, Património (Patrimony), Dom Quixote, Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, 2008.

Philip Roth narra o declínio físico do pai, Herman Roth, que sucumbe gradualmente ao avanço de um tumor cerebral mas não se limita a descrever essa queda do homem que conhecera vigoroso e enérgico de forma factual e inócua: o ocaso da vida do pai obriga-o a reflectir sobre a sua existência enquanto filho outrora e agora.

Essa evolução do ser pai e a progressão da noção de filho perpassa toda a obra mas não como algo que perturbe o autor, que o desmotive perante a naturalidade da realidade regressiva de papéis assumidos. Tudo se resume a uma aceitação clara dos factos da vida (nos quais se inclui a morte), mas o debate interno do filho que assiste à degradação das capacidades de um pai moribundo que acompanha desde o primeiro momento, sobrepõe-se a esse acolhimento da fatalidade.

Herman Roth recorre à memória para se agarrar à vida e a memória funciona, de facto, como um poderoso instrumento que desbrava o caminho desconhecido que o aguarda. Uma forma de ultrapassar o medo ou simplesmente de se sentir rodeado do mundo de pessoas e situações que sempre conheceu.

E o património, o legado, os destroços de uma vida já desaparecida, resume-se ao tempo que passámos junto dessa presença já fisicamente oculta, os tempos partilhados de felicidade ou sofrimento, levar um pai ao colo para a cama depois de lhe ter dado banho e pensar que há cinquenta anos atrás quem necessitava de ser acarinhado e protegido era o filho. Património é abraçar em absoluto o ser-se filho.

sábado, abril 18, 2009

"A Feiticeira de Florença" de Salman Rushdie

Rushdie, Salman, A Feiticeira de Florença (The Enchantress of Florence), Dom Quixote, Tradução de J. Teixeira de Aguilar, 2008.

Ocidente e Oriente. Florença e o Indostão. O príncipe Lourenço de Médicis, Senhor da volátil cidade europeia e Akbar, o Imperador da remota terra exótica onde a fantasia reinava e uma Rainha invisível era a preferida do Rei.
Um viajante louro auto-denominando-se como Mogor dell’Amore, chega à grande capital do Reino de Indostão como enviado de Isabel I de Inglaterra, após ter pilhado os aposentos onde o verdadeiro Embaixador guardava o documento numa passagem breve mas profícua por um navio de piratas escoceses.
Inventou um conteúdo irreal para a missiva, atingindo o intento de se aproximar do Imperador. E quando a sua vida é ameaçada pela desconfiança que floresce na corte de Akbar e se vê enclausurado numa masmorra e mais tarde frente a frente com um elefante enraivecido, disposto a espezinhá-lo como um verme que desafiara o Reis dos Reis com histórias que o apontavam como tio do soberano, Mogor dell’Amore socorre-se de expedientes vários e acalma a fúria do animal destinado a executar a vontade do Senhor de Indostão.

Algo semelhante a um milagre sucedera e o Rei, rendido ao poder obscuro do pálido desconhecido, ouve a história composta por várias narrativas distintas com o objectivo último de revelar a origem verdadeira do forasteiro. Sangue real afirmara ele possuir. Filho de Qara Köz, a Dama Olhos Negros, irmã de Baber, pai de Akbar, Senhora de uma vida aventurosa e de uma beleza rara que enfeitiçava os homens e mitigava a inveja das mulheres.

A vida desta mulher que se atrevera a retirar o véu e que se fazia acompanhar pela sua serva, a “espelho” por ser tão surpreendentemente idêntica à ama, é contada em paralelo com a vida de três amigos florentinos que acabarão por se ver enredados na história de aclamação e queda da Feiticeira de Florença que de “Santa” se converte em “bruxa” após uma noite passada com Lourenço II de Médicis e morte rápida do Senhor de Florença. Ela embruxara-o, dizia o povo, lançara-lhe feitiço mortal. E a Dama Olhos Negros, zelara apenas pelo regresso do seu amado Argalia ao deitar-se com Lourenço. A cidade já ansiava pelo cheiro a carne humana queimada que as fogueiras exalavam nos tempos áureos da cristandade. A explicação da justiça era sobrenatural.

Tudo se conjuga de forma a que quase no fim das suas vidas, os três amigos se reúnam novamente e, apesar dos diferentes caminhos por que haviam optado, a fraternidade entre almas unidas pela amizade nunca fora olvidada.

sexta-feira, abril 10, 2009

"O Físico Prodigioso" de Jorge de Sena

Sena, Jorge de, O Físico Prodigioso, Edições Asa, 2005.

Como o próprio autor confessa nas notas finais que acompanham a minha edição de "O Físico Prodigioso", a novela baseou-se em dois “exemplos” do Orto do Esposo, livro moralístico-religioso da primeira metade do século XV: o do homem com poderes mágicos de cura através do seu sangue virgem, e o do homem que não conseguiam enforcar porque o diabo o levantava no ar.
Trata-se de um “conto” de imortalidade e de invisibilidade asseguradas pela posse de um barrete mágico e pela presença protectora do próprio diabo que retira prazer da mera observação das movimentações humanas (mas sempre com o seu quê de “maravilha”; e utilizo aqui a palavra maravilha no sentido com que a encontramos nos livros de cavalaria – acontecimento inverosímil) do protagonista cujo nome é por ele mesmo considerado acessório e assim ocultado.

Contudo, a contemplação do físico pelo diabo tem o seu custo: a alma vazada do jovem inicia-se na agonia de tudo ter. Desta forma, uma “rebelião” interior irrompe e interrompe a até então intocável plenitude de imortal de que gozava. É assim o seu zelo e não um diabo insatisfeito que o arrasta para um calabouço da inquisição onde permanecerá longos anos perdendo o viço que o caracterizara, mas transmitindo-o a outros por meio de uma obra de contaminação digna do seu patrono. Curioso é que o diabo, apesar da degradação física do seu protegido, não cessa de o amar salvando-o, inclusivamente, da provação última, a morte.

É uma novela que julgo “recuperar” o conceito de “aventura” tal qual exposto nos seus contornos essenciais nos livros de cavalaria. O absurdo, a tentação, a linha ténue que por vezes demarca o mal do bem, surgem no caminho do donzel apresentado sob uma luz aqui e ali semelhante à que ilumina um Galaaz, mas com uma diferença fundamental: Galaaz, o herói casto da “Demanda do Santo Graal”, serve Deus; o físico prodigioso é um escolhido do demónio (e assume várias formas ao longo do livro, identificando-se no entanto sempre pela referência à audição súbita de um “riso casquinado”). Ambos prisioneiros, embora de forças antagónicas.

domingo, abril 05, 2009

"A Última Estação" de Jay Parini

Parini, Jay, A Última Estação (The Last Station), Editorial Presença, Tradução de Maria de Almeida, 2007.

Jay Parini escreve este “A Última Estação” após uma aturada pesquisa histórica que teve como principal fonte os diários de Lev Tolstói e do círculo de familiares e seguidores que o acompanharam no último ano de vida.
O autor convida-nos a assumir uma postura voyeurista ao partilhar a sua visão de “primeira fila” dos acontecimentos que decorreram nesse ano de 1910. E o leitor segue-o de bom grado ora integrando o grupo de tolstoianos mais próximos do maior autor russo do seu tempo, ora como observador da atitude rígida e persecutória da mulher de Tolstói, Sófia Andréevna.
As duas facções digladiam-se ferozmente e no meio deparamo-nos com um Tolstói ansioso por encontrar a paz absoluta em Iássnaia Poliána, a propriedade e casa da família onde o autor nascera e vivera quase toda a sua vida. Mas Iássnaia Poliana é o palco de sofrimento do velho Conde Tolstói onde Sófia Andréevna não o poupa, expondo a quem quisesse ouvir o conteúdo dos diários do marido, devastada por um ciúme doentio de Tchertkov, o mais amado dos discípulos de Tolstói. A suspeita das relações existentes entre os dois homens, dilacera-a e a desconfiança face às reais intenções de Tchertkov motiva-a na cruzada de humilhação que empreende contra o marido e na propagação dos seus medos, temendo sobretudo que a proximidade entre os dois homens trouxesse dissabores para a família após a morte de Tolstói e revelação do testamento.

Os últimos anos de vida de Tolstói são marcados por uma perspectiva marcadamente religiosa e social que o autor tenta aplicar à sua vida. Ele não quer ser o Conde Tolstói, mas somente Lev Nikoláevitch. Ele não quer viver rodeado de luxo, nem ceder a impulsos sexuais. Ele não quer conviver sob o jugo opressivo de uma mulher castradora, que lhe retira a paz tão desejada e lhe proíbe visitar e ser visitado pelo seu mais querido amigo. Ele quer fugir. Desaparecer.

Lemos as impressões de Sacha, a filha que vive em Iássnaia Poliána e que ajuda o pai no seu trabalho, sabemos que considera a mãe alguém profundamente teatral e egoísta, encenando achaques e mais tarde tentativas de suicídio para prender o marido na sua prisão dourada; temos acesso aos pensamentos de Bulgákov, o Secretário de Tolstói nesse último ano, reverente admirador do mestre que começa por sentir pena de Sófia Andréevna, mas acaba por pressentir a dimensão da paranóia da companheira de quarenta e oito anos de Tolstói; conhecemos a aversão que Tchertkov tem por Sófia e as suas maquinações para ter acesso ao mestre contornando o controle cerrado de Sófia Andréevna, o legado de Tolstói não seria pertença da família Tolstói mas do povo russo que ele tanto amava; as impressões do Dr. Makovítski, o médico pessoal, a propósito da saúde cada vez mais periclitante de Lev Nikoláevitch, os seus receios que a influência funesta de Sófia se revelasse, no fim, fatal; da própria mulher de Tolstói que manifesta todo o seu amor pelo marido e a necessidade em impedir a todo o custo o golpe que Tchertkov planeia; por fim, sabemos o que o próprio Tolstói pensa sobre este mundo que ameaça desabar sobre si. Urge evitar que o fim sobrevenha sem que encontre a paz.

E assim parte na companhia de Makovítski, com as sombras da noite como silenciosas cúmplices. A sua fragilidade física agudiza-se durante a fuga e atinge o auge ao chegarem à estação de Astápovo, a última estação, a última paragem antes da morte de Lev Nikoláevitch. Sacha pressente-o antes de todos ao dizer que parecia que tinham chegado ao fim do mundo. Era realmente o desfecho da busca aventurosa de liberdade neste mundo. Aproximava-se a maior aventura de todas e Tolstói acolheu-a com um sorriso nos lábios.

Que livro magnífico!

domingo, março 29, 2009

"O Quadro" de Nina Schuyler

Schuyler, Nina, O Quadro (The Painting), Bizâncio, Tradução de Maria do Carmo Figueira, 2006.

“O Quadro” de Nina Schuyler é não só a história de quatro vidas que se cruzam em pontos distantes do mundo no ano de 1870 sem que desse elo que os une tenham consciência, como também a história do cenário de transformações sociais e culturais inerentes ao período Meiji no Japão e à guerra franco-prussiana em França.

A ligação entre as quatro personagens sucede quando Ayoshi, a mulher de Hayashi, um proeminente oleiro e comerciante japonês com uma deformidade nos pés causada por um fogo que matara a sua família quando criança, coloca, secretamente, um quadro por si pintado na caixa de artefactos a enviar para venda em França. Esse quadro, um entre vários que Ayoshi pintara para eternizar o seu amor perdido por Urashi, um Ainu de quem engravidara antes de se casar com Hayashi, revela a intimidade dos amantes e imortaliza esse amor intocável representado de forma comovente e hipnotizante. Quando Jorgen, um mutilado dinamarquês da guerra franco-prussiana e armazenista numa empresa que se dedica ao comércio de produtos raros, abre a caixa e se depara com o quadro que não consta da lista de artigos enviados, apodera-se dele para mais tarde o vender. Natalia, a meia-irmã do dono da empresa, entra no mundo escuro de Jorgen com a sua determinação em salvar a França e alista-se nas fileiras do exército francês, almejando tornar-se uma exímia atiradora. A perda de um irmão ferido na guerra aproxima-a desse lado negro a que Jorgen não consegue fugir desde que fugira da mulher que amara e engravidara na Dinamarca.

É com relutância que Ayoshi aceita inicialmente a presença da sua “voz da consciência”, Sato, um velho amigo de infância ocidentalizado que conhece toda a extensão do seu sofrimento, e mais tarde a protecção que o marido concede a um monge budista que escapara a um massacre do exército na montanha. Mas é este monge jovem que nunca conhecera a vida fora do reduto do mosteiro que permite a Ayoshi reencontrar um sentido para a sua vida suspensa desde que uma curandeira lhe “arrancara as entranhas”.
Perpetuar a imagem do seu amado era a sua missão de vida mas, quando o monge Enri rasga um dos quadros em que figuram os amantes e ritualiza essa morte simbólica num cântico fúnebre budista, Ayoshi agradece-lhe a libertação mas espera o impossível do monge cujo destino não se entrelaçaria ao seu.
A proibição de realização de cerimónias budistas é quebrada pelo monge e todos partem, menos Hayashi que aguarda ser, finalmente, consumido pelo fogo purificador que o incapacitara há tantos anos.

Jorgen tenta convencer Natalia a não partir para a frente de combate, mas a sua vontade férrea supera qualquer súplica, mesmo a de alguém que perdera uma perna nessa guerra a que ela tanto desejava aderir. E como podia ele censurá-la? O seu maior desejo era comprar uma prótese e voltar para a frente de batalha. O custo da perna artificial obrigava-o a vender o quadro a que tanto se afeiçoara. De cada vez que o observava, parecia encontrar novos pormenores, quase como se o quadro se modificasse à medida que o próprio Jorgen se transformava por influência de Natalia. Ele já não era indiferente à vida.
Quando vende o quadro, fá-lo com a esperança de a nova perna lhe permitir ir ao encontro de Natalia e acorre ao consultório do médico inglês que entretanto, havia sido preso como espião.
Perante a impossibilidade de marchar rumo a Natalia, Jorgen recupera o quadro gastando todas as suas economias e sobe para um balão a gás de carvão cheio de correspondência militar e pessoal. Toda Paris cerca o balão, a esperança dos suplicantes e a sua própria de encontrar Natalia sobrevoando os céus, parece impelir o engenho a encontrar o caminho do amor.

Este é um livro de afectos superiores e de como os recomeços são sempre realizáveis. Indispensável.

domingo, março 22, 2009

"História da Beleza" de Georges Vigarello

Vigarello, Georges, História da Beleza (Histoire de la Beauté), Teorema, Tradução de Paula Reis, 2005.

Georges Vigarello sistematiza neste estudo histórico/sociológico a evolução da ideia de beleza da Renascença à actualidade detendo-se sobretudo na noção de beleza feminina, explorada ao longo dos séculos de forma tão diversa tanto pela palavra escrita como pelas artes pictóricas e oscilando ao sabor de gostos e contextos sociais/históricos díspares.

É curiosa a hierarquização do corpo na descrição do modelo de beleza no século XVI, a compartimentação das partes que constituem o todo feminino e a omissão dessa mesma soma, remetendo a delineação ao essencial, ou seja, a uma beleza revelada no “triunfo do alto”. A pesagem do belo efectuava-se por meio da avaliação da qualidade do busto e dos olhos, assim como através do temperamento e moralidade que esses traços físicos escondiam. A mulher era a maneira, o ar, a graça, tudo reunido num ser uno radiante, criado por Deus para ser exemplo de idealidade.

No século XVII vingam as denominadas beleza expressiva e beleza experimentada. Pede-se uma beleza mais natural, mais harmoniosa, mais plena de significado, mais individualizada mas em simultâneo mais atreita à escolha do penteado ou da cor do rosto. É o inicio da correcção do volátil conceito. A modificação, o retoque é possível

O século XIX apresenta-nos uma mulher mais activa, mais capaz e determinada a mostrar-se. Surge igualmente um mercado do embelezamento, ou seja, técnicas e meios de corrigir formas, adiar o aparecimento de incómodos físicos, artifícios que protelassem a “decadência”.

No século XX as formas femininas tendem a adelgaçar-se, a aproximar-se cada vez mais das figuras das “stars” do cinema que são exemplo estético e intelectual. Mulheres, contudo, ainda dependentes no inicio do século XX dos seus homens. Mas é uma tendência que se dilui e se consome na certeza da independência da mulher no período pós segunda guerra mundial. Ela é o que quer ser. A moda serve o seu propósito de se sentir bem na sua pele, bem como os mecanismos de correcção colocados ao seu dispor. O consumo proporciona a receita para uma manutenção de um ideal. O cânone colectivo esboroa-se. Nasce a amálgama de inclinações em que hoje nos situamos.

A leitura deste livro confirma e consolida a percepção histórica e sociológica que tínhamos deste longo caminho de exigências internas e externas a que as mulheres estiveram sujeitas desde a renascença até à presente data. Compila e dinamiza novos dados através de fontes tais como as primeiras revistas femininas surgidas no século XIX e as primeiras cartas de leitoras dessas publicações, a voz das mulheres ouvida pela primeira vez. Os seus desejos e exigências como melhor forma de conhecer/estudar uma época em que o que elas dizem começa a ser relevante. Nem que seja só para outras mulheres.

domingo, março 15, 2009

"Desconhecidos" de Taichi Yamada

Yamada, Taichi, Desconhecidos (Ljin-Tachi Tono Natsu), Civilização Editora, Tradução de Helena Serrano, 2006.

Hideo vive num Japão contemporâneo impessoal. Descobre que habita um imenso bloco de apartamentos que, durante a noite, se esvazia a ponto de nele só permanecerem duas almas solitárias nessas horas nocturnas: O próprio Hideo e uma mulher atormentada por uma deformidade física chamada Kei.

A vida pessoal de Hideo sofrera recentemente o golpe de um divórcio apetecido e descobria os primeiros passos de um percurso que desenvolveria sozinho. Não esperava importar-se com o facto de um amigo lhe confessar que iria cortejar a sua ex-mulher, pressentindo nessa manifestação uma pequena traição.
No silêncio do condomínio deserto, ele reflecte sobre as implicações que o conhecimento da relação entre o amigo e a mulher com quem estivera casado quase vinte anos teria na amizade de ambos quando ouve alguém bater-lhe à porta. Um gesto tão íntimo e deslocado do contexto de retiro e isolamento que o mausoléu em que estava encerrado simbolizava.
Demasiado ocupado com os pensamentos de ruptura com o círculo de pessoas que lhe eram mais próximas, Hideo enxota da forma mais diplomática possível a mulher que pernoita no prédio tal como ele. Ele compreende que a presença de Kei à sua porta é um pedido de ajuda, um último recurso para sobreviver a mais uma noite de reclusão que se adivinha e, no entanto, egoisticamente, volta-se para si e repele aquela mulher que não conhece de lado nenhum mas cuja súplica no olhar ele não ignora.
Ao fechar a porta, Hideo tem a perfeita noção de que terá cometido um erro e que algo perturbava Kei de forma tão excessiva que lhe ocorre que aquela poderia ser a primeira e última vez que falaria com ela.

A nova vida por que optara deixa-o nostálgico da infância que vivera numa pequena cidade não muito longe da grande cidade. E faz uma incursão a esse local que já quase não reconhece. É confrontado com o seu passado de privação ao encontrar duas pessoas que são a cópia fiel do pai e da mãe mortos num acidente de viação. Reúne-se sucessivamente aos dois (des)conhecidos numa tentativa de retomar a vida interrompida algumas décadas atrás e os três assumem essa convivência como natural até Kei, a quem Hideo pede desculpa pela sua falta de hospitalidade no dia seguinte e com quem desenvolve uma relação amorosa, reparar no seu envelhecimento acelerado de que ele próprio não se consegue aperceber ao olhar para o espelho.

Ao contar a Kei que visita regularmente os pais mortos há mais de trinta anos, esta parece não estranhar a história de fantasmas relatada e parte do princípio que as duas assombrações sugam a vida do filho para se manterem nesta dimensão. Aconselha-o a deixá-los partir, a despedir-se deles para sempre. E assim faz. Contudo, a rapidez com que os traços físicos de Hideo decaem continua e a descoberta de que é vítima de uma vingança sobrenatural sobrevém-lhe.

Esta obra é mais um exemplo da rara criatividade dos japoneses na forma como olham o mundo dos mortos a partir de uma perspectiva pulsante de vida. Um livro de enganos, uma história de fantasmas, de interditos e de palavras não ditas. Uma história de amor entre pais e filhos que ultrapassa a barreira do plausível. E uma história de vidas em potência, de vidas não concretizadas.

domingo, março 08, 2009

"A Festa de Anos" de Panos Karnezis

Karnezis, Panos, A Festa de Anos (The Birthday Party), Bizâncio, Tradução de Irene Guimarães, 2009.

Marco Timoleon é um dos homens mais ricos do mundo.
Todas as suas conquistas ancoravam num inelutável faro para os negócios e numa persistência sobre-humana que o empurrava a tocar resolutamente às portas que encontrava fechadas à sua passagem. Cessava de insistir quando o que almejava já era seu.

É organizada por si uma festa de anos para celebrar o vigésimo quinto aniversário da filha mas, na verdade, esta celebração esconde uma maquinação do milionário para conduzir a filha a uma tomada de posição que vá ao encontro das pretensões do pai. A festa de anos é a desculpa encontrada por Marco para suavizar a decisão que induziria Sofia a tomar.

Contudo, a perspicácia da filha (mesclada com desequilíbrios próprios de quem tivera uma vida familiar marcada pela morte misteriosa e prematura da mãe e pelos acessos de fúria do pai) põe à prova a lendária tenacidade de Marco Timoleon bem como a lealdade do amante e biógrafo do pai.

Ela consegue desnudar a alma de cada um. Só à beira do abismo eles se lhe revelam tal qual são e Sofia bebe a verdade com a sofreguidão dos desesperados.

Esta pobre menina rica e o seu pai poderoso que julga poder esmagar o mundo com o que representa e sobretudo ter absoluto controlo sobre as mulheres da sua vida demonstrando uma crueldade inexplicável para com quem o ama, fez-me vir à memória a história real de Onassis com tudo que teve de glorioso e espantoso, mas também com a denegação daquilo que era mais certo e seguro e precioso na sua vida sendo o exemplo da relação com Maria Callas o mais manifesto.

O estratagema de Timoleon para, mais uma vez, sair vencedor numa querela familiar em que a sua afirmação como o patriarca dominador é posta em causa, fracassa ante o rumo que os acontecimentos no dia da festa de anos na ilha privada de Marco seguem.

A manipulação de pessoas que pratica com a habilidade fácil de alguém que tem como hábito atropelar a vontade do outro, é evidente nesta personagem que Panos Karnezis trabalha com minúcia surpreendente naquilo que é a história de vida de um homem destinado a perder todos aqueles que ama e que num último esforço e rebate de consciência inédito nele, evita a destruição definitiva da sua família. Bem a tempo de viver, finalmente, em paz.

domingo, março 01, 2009

"Amor e Saltos Altos" de Sinéad Moriarty

Moriarty, Sinéad, Amor e Saltos Altos (In My Sister’s Shoes), Mercado de Letras, Tradução Colectiva, 2008.

O livro sobre o qual hoje aqui deixo o meu testemunho, “Amor e Saltos Altos” de Sinéad Moriarty, toca, com uma linguagem ligeira e algum humor, questões pertinentes que se levantam a quem está na faixa dos trinta anos e se vê confrontado com a necessidade de delimitação de prioridades na sua vida.

A perspectiva a que temos acesso é a de uma mulher de precisamente trinta anos, Kate O’Brien, que persegue o seu sonho de se tornar uma profissional dos media londrinos, longe da sua Irlanda natal à qual regressa poucas vezes por ano e por curtos espaços de tempo. Kate prepara-se para finalmente assumir e se instalar no mundo a que sempre aspirara pertencer quando recebe a notícia de foi diagnosticado à irmã mais velha a doença que matara a mãe.
Após inúmeras tentativas para encontrar uma solução que não passasse pela interrupção da sua promissora carreira em Londres, Kate ruma à Irlanda para apoiar a irmã no longo percurso de cura que a aguarda e, acima de tudo, para tomar conta dos sobrinhos gémeos de cinco anos que para uma mulher solteira de trinta anos viciada no trabalho são um completo enigma.

E é esta viagem conjunta de descoberta mútua entre uma mulher que desconhece em absoluto as implicações de ter duas crianças a seu cargo e a naturalidade com que os gémeos mostram o caminho a seguir à tia, que acompanhamos com um misto de curiosidade e ternura esta história simples, produto dos tempos que vivemos.

Não será uma encruzilhada desconhecida de muitos a que Sinéad Moriarty nos apresenta com esta narrativa. Até que ponto vai o espírito de sacrifício de alguém profundamente apegado a uma ambição de carreira bem sucedida? Quais as cedências que estaria alguém nestas circunstâncias disposto a fazer numa situação de crise familiar?

A autora confronta-nos com a realidade profissional a que estamos “presos” e com aquela outra realidade bem diversa a que a maior parte se dedica de forma abnegada encarando-a como uma libertação… Trabalhosa, é certo, mas um reencontro de nós connosco próprios: A maternidade.
Uma obra que desafia o leitor pela actualidade dos temas nela contidos e tratados de forma acessível, conduzindo-nos a extremos de humor: Tanto nos deparamos com a solenidade dos dramas como com a descontracção das formas de tratamento usados somente com aqueles que nos são mais próximos.

domingo, fevereiro 22, 2009

"Rapariga com Brinco de Pérola" de Tracy Chevalier

Chevalier, Tracy, Rapariga com Brinco de Pérola (Girl With a Pearl Earring), Quetzal, Tradução de Ana Falcão Bastos, 2008.

Johannes Vermeer e a mulher Catharina procuram uma criada. Sabendo o notável pintor da tragédia que se havia abatido sobre a família de um pobre pintor de azulejos que ficara recentemente cego e, consequentemente, impossibilitado de trabalhar, dirige-se na companhia de Catharina a casa deste para avaliarem de perto Griet, a filha de dezasseis anos do infortunado artista.

Griet prepara os legumes para uma sopa e dispõe-nos de uma forma que imediatamente chama a atenção de Vermeer por nada possuir de aleatório. Uma estranha organização intencionalmente bela pela conjugação de cores e formas, inquieta o distinto pintor logo na primeira abordagem à jovem escolhida para servir em sua casa.
E também Catharina, grávida do sexto filho, mostra sinais de desconforto na presença da rapariga, como se uma ameaça à sua supremacia como Senhora da casa se manifestasse subitamente na pessoa da jovem que mal ler e escrever sabia mas que denotava uma sensibilidade que havia enlaçado Vermeer numa teia de cumplicidade a ela, a sua mulher, jamais poderia aspirar.

A intimidade do casal parecia expressar-se apenas nos filhos que os rodeavam e nos que vinham a caminho. De resto, Catharina nunca tinha sido pintada pelo marido e o seu atelier era um local proibido. Até chegar a criada encarregue de o limpar.
O poder de observação de Griet, permitia-lhe afastar objectos para arejar superfícies e colocá-los milimetricamente no mesmo local de onde os havia arredado. Assim, quando o Senhor se dispusesse a trabalhar, tudo estava imaculado, intocado, imune à contaminação do mundo exterior como sempre tinha estado.
Mas o seu Senhor pintava a um ritmo insuficiente para alimentar a família, era demasiado exigente consigo próprio, atormentava-o a obrigação de pintar para um mecenas, de ceder à sua vontade cénica e quando este lhe pede para o ajudar a misturar substâncias que resultariam em tinta para os seus quadros, Griet teme a ira de Catharina. Só com a ajuda de Maria Thins, a mãe da sua senhora, é que foi possível a concretização do sonho de estar próxima de Vermeer e do seu trabalho. E até quando se converteu em modelo do pintor, foi Maria Thins, mulher detentora de elevada astúcia e compreensão das necessidades familiares, que apreendeu que assim poderia o marido de sua filha trabalhar com maior rapidez.

Não contavam com a sagacidade malévola de Cornelia, a filha de Vermeer que se mostrara indomável como a mãe face à presença ameaçadora de Griet. Uma mulher e uma menina inseguras, que não sabiam distinguir entre o uso de um par de brincos de pérola para posar para um quadro a pedido do artista e a usurpação dos objectos por motivos pouco honestos.

Griet é vítima da sua dedicação ao génio de Vermeer e sucumbe apenas quando nem o pintor que lhe exigira a pose com o brinco de pérola luzindo ante a glória da pincelada que lhe dera vida, nem a protectora de todas as horas difíceis naquela casa se dignaram defendê-la ante a acusação infundada de Catharina que contra todas as previsões galgara a escadaria que conduzia ao atelier do marido, apesar do peso de mais uma gravidez, instigada por Cornelia.

É um livro que nos envolve desde o início e nos transporta para algumas das telas de Vermeer, para as histórias por detrás delas, e para a realidade de vozes, cheiros, tonalidades e sabores que o Mestre Flamengo terá experienciado. Uma leitura que brilha no meu horizonte de memórias literárias como um brinco de pérola cintilando eternamente, num jogo de luz sem fim.

sábado, fevereiro 14, 2009

"Onde Vivi e Para Que Vivi" de Henry David Thoreau

Thoreau, Henry David, Onde Vivi e Para que Vivi (Where I Lived, and What I Lived For), Quasi, Tradução de Odete Martins, 2008.

Neste pequeno livro editado pela Quasi e oferecido com o Diário de Notícias, temos acesso a quatro capítulos da obra-prima de Henry David Thoreau, “Walden”, que passo a nomear: De Economia, Onde Vivi e Para que Vivi, Animais de Inverno e Da Conclusão.

Nesta amostra de “Walden”, pressentimos a natureza intrépida da obra no seu todo por meio da exposição de uma filosofia de vida advogada pelo autor e vivenciada sem subterfúgios.
Thoreau adverte prontamente o leitor de que apenas escreverá sobre as suas experiências, sobre a realidade que conhece e que realmente ensaiou. Não lhe interessa narrar factos empreendidos por outrem. A base da sua escrita, a sua grande força anímica é a prática na primeira pessoa.

E assim, é num registo diarístico que Henry David Thoreau elabora o seu relato de vida parcimoniosa na margem do Lago Walden em Concord, Massachusetts.

A observação da natureza e a observação da natureza humana cruzam-se em várias frentes nesta obra. Se por um lado a natureza oferece ao Homem os recursos necessários à sua sobrevivência, por outro a natureza humana procura suprir as suas carências buscando meios de ultrapassar o que existe para lá da soleira da porta, acessível e sobretudo dando demasiada atenção aos detalhes da vida alheia, às futilidades que a modernidade apadrinha e que o autor enumera de forma lúcida.

Para além das suas observações concernentes à dualidade vida prosaica/ vida moderna e defesa do desprendimento material que exerce apaixonadamente, Henry David Thoreau aborda igualmente questões de cariz economicista que considero de uma actualidade incomparável, senão vejamos: «Não sou capaz de acreditar que o nosso sistema de produção é o melhor modo através do qual os homens têm acesso à roupa. A condição dos operários está a tornar-se, a cada dia que passa, mais semelhante à dos operários ingleses, o que não é de estranhar, já que, por tudo o que tenho ouvido ou visto, o principal objectivo não é que a humanidade possa apresentar-se bem vestida e de forma honesta, mas sim, inquestionavelmente, que as corporações possam enriquecer. Os homens alcançam, a longo prazo, somente aquilo que ambicionam. Assim sendo, apesar de, a curto prazo, poderem falhar, fariam melhor se almejassem algo num patamar mais elevado.»

A explanação do seu estilo e filosofia de vida é uma inspiração numa sociedade em que, a percepção do que significa a natureza e todos os recursos que a compõem é pouco clara talvez porque cada vez menos haja o contacto directo com essa Mater que nos acolheu desde tempos imemoriais.

domingo, fevereiro 08, 2009

"Os Livros que Não Escrevi" de George Steiner

Steiner, George, Os Livros que Não Escrevi (My Unwritten Books), Gradiva, Tradução de Miguel Serras Pereira, 2008.

“Os Livros que Não Escrevi” é um conjunto de sete ensaios interligados por um fio condutor comum: O facto de tratarem temas que George Steiner gostaria de ter transposto para livro e que, por um motivo ou outro, não galgaram as margens da mera ideia.

É com um nível de erudição intimidante que o autor nos transporta para os universos de cultura, política, relações humanas, amor aos animais, admiração por mentes brilhantes e estado da educação que almejou tratar em obras ensaísticas que nunca foram executadas.
O tom ensaístico assume por vezes roupagens mais primaveris, empurrando o leitor para uma abordagem narrativa de descoberta de histórias pessoais e colectivas que enchem a alma de quem lê com cores, cidades, livros, autores, conflitos e circunstâncias da vida comum. Ocorre um reconhecimento, uma identificação entre as preocupações manifestadas pelo Professor Steiner e as que também afligem os seus leitores.

A linguagem utilizada, mas sobretudo as inúmeras referências culturais a que alude nos textos apresentados tornam esta obra uma leitura sensível. E sensível em que medida? Para a ler é necessária uma disponibilidade de espírito elevada, altos níveis de concentração, uma dedicação e atenção ao que se lê acima da média, uma enorme capacidade de captação dos enunciados descritos e um grau de assimilação colossal. Parece a receita para qualquer boa leitura que se preze mas, na verdade, George Steiner obriga-nos a obedecer a estas regras de forma absolutamente integral, até radical, diria.

Apesar de se poder considerar uma obra mais “ligeira” de Steiner, há que reter que o autor não consegue desprender-se daquilo que é, daquilo que pratica e postula: Um Ser profundamente consciente da sua sapiência embora não a apresente de forma descabida ou caudalosa mas sim inserida num contexto pleno de sentido.

domingo, fevereiro 01, 2009

“O Meu Diário de Guantánamo - Os Prisioneiros e as Histórias que me Contaram” de Mahvish Rukhsana Khan

Khan, Mahvish Rukhsana, O Meu Diário de Guantánamo – Os Prisioneiros e as Histórias que me Contaram (My Guantánamo Diary – The Detainees and the Stories They Told Me), Bizâncio, Tradução de Cláudia Brito, 2008.

Filha de pais afegãos, nascida nos Estados Unidos da América, dividida entre a tradição, cultura e língua pashtun e uma vivência ocidental, Mahvish Rukhsana Khan, mergulhou na realidade periférica de Guantánamo ainda enquanto estudante de direito mas conhecedora dos costumes e idioma que fariam com que os advogados que tratavam dos processos dos prisioneiros de origem afegã, mais facilmente com eles comunicassem e lhes transmitissem a confiança necessária numa relação advogado/cliente.

Três casos em particular a ocupam no tempo interrompido que significa Guantánamo para os prisioneiros inocentes que aguardam uma acusação alguns há três anos. Esse tempo imóvel desde que haviam sido separados das suas famílias, parece retomar o seu andamento com a presença familiar de uma mulher que fala a língua deles, que conhece os seus costumes, que os observa com o respeito que a cultura pashtun incutida pelos pais reservava a todo o Ser-Humano. E confessam-se, inundam aquelas celas de histórias de horror, ódio e traição protagonizadas não só pelos americanos que os maltratavam enquanto pretensos terroristas, como também pelos conterrâneos que os tinham vendido.

É um conjunto de histórias de vidas suspensas aquelas apresentadas por Mahvish Khan, de pessoas normais que na espiral de medo que se seguiu ao 11 de Setembro (impelindo os americanos a distribuir milhares de panfletos nos países que albergavam terroristas nos quais eram oferecidas recompensas milionárias a pessoas que viviam abaixo do limite da pobreza e que movidas pela inveja, pela oposição política ou social, pela mera rivalidade tribal, entregaram adversários aos americanos sem qualquer prova de culpa – bastava apontar e dizer que aquele ou aquela estava envolvido em actividades terroristas) foram apanhadas na teia de uma febre inquisitorial e farisaica própria de um qualquer improvável farwest.

Contudo, a autora não se limita a expor os casos de injustiça evidentes existentes em Gitmo. Ressalva sempre que por trás daquelas paredes, estão não só inocentes como culpados, embora a acusação não formada dos prisioneiros de Gitmo e a tortura de que todos foram vítimas, não seja, forma digna ou humana de conduzir qualquer processo, seja ele qual for.

Gitmo funciona não só como símbolo do autoritarismo selvagem e sem lei da Administração Bush, mas igualmente como súmula da indiferença do mundo perante tão evidente transgressão do direito internacional e do que é humanamente tolerável.

Como é possível libertar-se um prisioneiro depois de anos de cativeiro, provada que ficou a sua inocência, e largá-lo simplesmente no local onde o haviam inicialmente interceptado? Será isto civilização? A estas e muitas outras questões se alude no presente volume que deixa marca.

domingo, janeiro 25, 2009

"Titus - O Herdeiro de Gormenghast" de Mervyn Peake

Peake, Mervyn, Titus - O Herdeiro de Gormenghast (Titus Groan), Saída de Emergência, Tradução de José Manuel Lopes, 2007.

No mundo incrível a que Mervyn Peake deu o nome de Gormenghast, o leitor vislumbra uma terra com algumas menções espaciais que não identifica à luz da sua realidade e as referências temporais limitam-se à passagem de dias, meses ou anos, não sendo possível reter os acontecimentos numa redoma temporal que reconheçamos como nossa.

Tudo se estrutura de forma invertida, numa confusão premeditada de personagens fantásticas com funções assombrosas e aparência admirável.
Titus Groan é filho da Condessa e do Conde Sepulchrave, o último de uma linhagem antiga e poderosa dentro dos muros do castelo, submissa aos rituais imemoriais que haviam tornado a Casa de Groan um bastião de obediência a essas cerimónias por vezes sem sentido que Sourdust primeiro e o filho Barquentine depois se asseguravam de garantir sem que percebamos jamais o seu propósito. Os protocolos poeirentos de Gormenghast desgastavam Sepulchrave mas eram cumpridos sem qualquer objecção ocupando-lhe grande parte do dia até que, por fim, se deleitava junto da única companhia que lhe proporcionava verdadeira satisfação: os seus livros.

Titus nasce e a Condessa pede à Ama Slagg para a criança lhe ser imediatamente retirada e apenas o voltar a ver quando tiver completado seis anos, mais importância parece dar aos inúmeros pássaros e gatos que a rodeiam e com os quais comunica. Mesmo Lorde Sepulchrave não denota interesse pelo filho senão pelo facto de ser o herdeiro de Gormenghast e em consequência guardião dos rituais sem sentido que tornavam Gormenghast um reino desolado de trevas e escadas tortuosas que desembocavam invariavelmente num outro compartimento de Gormenghast. Um labirinto do qual não parece ser possível escapar.

Apenas Fuchsia, a filha mais velha de Lorde Sepulchrave e da Condessa, se aventura em locais onde o verde da natureza ou o azul do céu se lhe insinuam como que a desafiando a transpor barreiras, convenções e preconceitos com que se via rodeada no castelo.
É como se o mundo no castelo se apresentasse a preto e branco e a verdadeira vida estivesse para lá dessas muralhas. Até conhecer Steerpike. Um jovem ambicioso que é encontrado por Fuchsia ferido numa sala por si dominada. Steerpike foge da cozinha e do seu terrível Chefe Swelter e ilumina e torna colorida com os seus embustes a monótona vida do castelo. Steerpike fascina Fuchsia sem que esta o admita ou até o depreenda conscientemente. Entra no seu espaço secreto e deixa o odor da sua presença de liberdade no coração de Fuchsia, compreende-a, lê o seu coração como ninguém. Fuchsia será a única pessoa de quem Steerpike se aproxima desinteressadamente.

A escrita de Mervyn Peake é uma escrita repleta de cores e movimentos, acções e expressões, uma escrita eminentemente plástica, digna de uma adaptação de Tim Burton… O filtro gótico que Peake empresta a esta obra melancólica, cheia de um sentimento de perda comum a todas as personagens, o contraste entre os vestidos roxos das irmãs loucas de Sepulchrave e o vestido vermelho de Fuchsia e ainda o ambiente de ódio entre o decrépito Flay e o obeso Swelter que culmina com um combate até à morte, para além de todos os improváveis de que o livro é incrustado, tornam-na indispensável.

domingo, janeiro 11, 2009

"O Carteiro de Pablo Neruda" de Antonio Skármeta

Skármeta, Antonio, O Carteiro de Pablo Neruda (El Cartero de Neruda), Biblioteca Sábado, Tradução de José Colaço Barreiros, 2008.

Desde que vi a transposição para o grande ecrã de “O Carteiro de Pablo Neruda” dirigido por Michael Radford que queria ler a obra de Antonio Skármeta na qual o filme se baseou. Criei grandes expectativas em relação a esta leitura porque a história contada no cinema era muito simples mas repleta de uma aura poética e humana que muito admirei e aplaudi.

Contudo, a riqueza das personagens no filme de Radford (quem não se recorda da magnífica interpretação de Massimo Troisi como Mario, o carteiro de Neruda?) esbate-se no suporte inicial e desilude pela simplicidade sem magia que patenteia.
Falta-lhe a genuinidade e pureza das vozes que deram corpo à história de um carteiro que entregava cartas à única pessoa que as recebia naquele mundo do fim do mundo, Pablo Neruda, estabelecendo-se uma relação de cumplicidade e mesmo amizade entre dois homens fruto de gerações diferentes mas feitos da mesma matéria sensível.

Em contraste com a política de aldeia que se desenrolava na ilha, palco menor mas ainda assim revelador de tendências nacionais, surgia a grande política na qual Neruda era actor principal no proscénio do destino do Chile.
É evidente que para além das questões políticas que muito ocupavam Neruda, Mario trazia-lhe sempre com o correio as suas francas interrogações sobre poesia e o amor por Beatriz, questões que assumiam proporções salientes na vida do carteiro de Neruda e nas quais envolveu o poeta.

Era um mundo de coisas simples, de pessoas que sonhavam a vida e o pequeno mundo que habitavam sem complicações e a convivência de Neruda com as pequenas dificuldades que Mario encontra para conquistar as poucas coisas a que poderia aspirar, servem de inspiração ao poeta que descobre no jovem carteiro essa sensibilidade tão difícil de percepcionar, de presenciar.

Não existe uma correspondência de qualidade entre livro e filme e por muito que quisesse, não consigo deixar de efectuar esta associação, ainda para mais tratando-se de um filme que tanto aprecio. Ocorre-me dizer que Antonio Skármeta desenvolve com alguma pobreza uma bela ideia e Michael Radford transforma um livro vulgar numa obra cinematográfica, para mim, inesquecível.

De notar, contudo, que a espaços assistimos a momentos de prosa poética que não posso deixar de valorizar e destacar conforme poderão confirmar na barra lateral esquerda na rubrica “Excertos” onde reproduzo um dos mais belos instantes lidos da presente obra.

sábado, janeiro 03, 2009

"A Guerra dos Tronos" de George R. R. Martin

Martin, George R. R., A Guerra dos Tronos (A Game of Thrones), Saída de Emergência, Tradução de Jorge Candeias, 2007.

A incursão no género literário em que “A Guerra dos Tronos” se encaixa, atribuo-a às várias críticas entusiastas lidas nos meus poisos literários habituais. Foi, assim, com alguma naturalidade que fui generosamente instigada a ler a actual obra, livro primeiro da saga denominada “As Crónicas de Gelo e Fogo”.

Esta fantasia por alguns dada como próxima daquela criada por Tolkien, parece-me claramente diversa.
É certo que estamos numa Idade Média imaginária e é igualmente certo que as personagens são marcantes, fortes nos seus propósitos e atitudes. Contudo, o mundo de fantasia de Tolkien vai um pouco mais além, é mais ousado na medida em que para além da panóplia de personagens humanas, são introduzidos seres com características físicas ou espirituais não humanas como duendes, fadas, elfos ou feiticeiros. George R. R. Martin, e reporto-me apenas ao primeiro volume de uma obra vasta, simplifica o universo apresentado dispondo apenas tipos humanos na história até agora contada.

Existe, no entanto, uma insinuação de ameaça quase sobrenatural para lá do mundo conhecido, para lá da Muralha de Gelo que separa os espaços em que as personagens apresentadas neste primeiro livro se movimentam e essa outra extensão de terra de onde parecem emergir sinais inquietantes que nos deixam em suspenso para o volume seguinte.

A história é simples e contada sem grandes artifícios estilísticos, mas o dinamismo que o autor empresta ao narrador na forma como nos transmite as venturas e desventuras dos Stark, dos Lannister e dos Targaryen, incute no leitor o desejo de mergulhar nas águas profundas das tramas em que estas três casas nobres estão implicadas.

A literatura fantástica é o género literário que menos explorei até ao presente momento, mas depois desta experiência de grande interesse e da oferta neste Natal do segundo volume de “As Crónicas de Gelo e Fogo” – A Muralha de Gelo” – será, como é óbvio, uma experiência a repetir.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

"Carrie" de Stephen King

King, Stephen, Carrie, Tradução de Maria Filomena Duarte, Bertrand Editora, 2008.

A história de Carrie White, uma jovem adolescente rejeitada com o dom (ou a maldição) da telecinesia, é contada por várias vozes que sobreviveram à vingança do Baile de Finalistas e que participam no inquérito aos acontecimentos daquela noite fatídica.

Assim, sabemos que Carrie vivia com uma mãe que professava uma fé religiosa ultra conservadora impondo à filha, por meio da violência psicológica, os valores e atitudes desencadeantes do afastamento do mundo profano e repleto de tentações; Sabemos que Carrie vestia roupas largas que escondiam as formas do seu corpo e desconhecia os factos mais naturais da vida como é o caso da menstruação; sabemos que quando tinha cerca de três anos uma chuva de pedras se abateu sobre a casa em que vivia com a mãe e essa fora a primeira manifestação da telecinesia, analisada numa base científica como sendo algo de hereditário, uma espécie de doença que se manifestava quando o sujeito estava sob uma forte tensão provocando a mobilidade de objectos estáticos; sabemos que Carrie era e sempre fora vítima de perseguição por parte das alunas mais populares na escola que frequentava; sabemos que fora convidada para o Baile de Finalistas e que no momento de receber o prémio de Rainha do Baile juntamente com o seu par, algo de inominável acontecera despoletando a vingança de Carrie naquele pavilhão e depois um pouco por toda a cidade.

Carrie como o fruto do pecado, como a lembrança viva da prevaricação da sua mãe, enfrentou-a para se tornar em alguém normal por uma noite. Fez o seu vestido, foi genuinamente elogiada por aqueles que a desprezavam horas antes, aplaudida quando subiu ao seu palco de glória e por fim, quando nada poderia já correr mal, foi ridicularizada perante aquelas centenas de pessoas voláteis.

As portas foram encerradas com um simples olhar. Carrie primeiro estática ao ser, novamente, o centro da mofa alheia, depois move-se freneticamente para fugir das gargalhadas que a dilaceram.
Depois de fechadas as portas, instala-se o pânico e tudo se move sozinho e as chamas purificam o local onde o cordeiro foi publicamente sacrificado.

Carrie ainda vagueia pela cidade enquanto a mãe a espera com uma faca para a matar, para o derradeiro derramamento de sangue, a imolação final.

Este romance de Stephen King aborda em 1974 o tema do assédio entre adolescentes mais universalmente conhecido por “bullying” levado a um extremo de consequências terríveis nesta obra adaptada brilhantemente ao cinema por Brian de Palma em 1976.

Apesar da carnificina final, perpassa a ideia de que a verdadeira vítima é Carrie, uma menina que só queria ser amada.

domingo, novembro 30, 2008

"Diego & Frida" de J.M.G. Le Clézio

Le Clézio, J. M. G., Diego & Frida (Diego et Frida), Relógio D’Água, Tradução de Manuel Alberto, 1994.

Um elefante e uma pomba.

Frida Kahlo, a jovem sofredora mas decidida, delicada, resolvida a trepar árvores para gritar o seu amor incondicional por Diego.

E Diego de Rivera, o experiente homem do mundo, ogre de mulheres, coleccionador itinerante de rostos e corpos, gigante corpulento que arrebata o olhar perscrutador e rígido de Frida.

Antes de começar verdadeiramente a história de vida de Diego & Frida, deparamo-nos com um Diego ávido de aventura e da descoberta dos locais “sagrados” observados e percorridos pelos seus mestres de sempre. Parte para Paris onde se deslumbra com o ambiente de fervilhante revolução artística, conhece e priva com os grandes obreiros dessa reforma criativa, vive, pinta, ama e perde o seu único filho na buliçosa e gélida cidade onde pululam ideias e génios mas não o conforto que poderia ter salvo a criança cujo fim o deixará eternamente ferido e com uma triste aversão pela cidade da escuridão.

O regresso ao México traz-lhe um projecto de frescos no anfiteatro de uma escola, ideais políticos que espera representar na sua pintura e uma nova mulher, Lupe Marín.

Aliás, o compromisso de Diego de Rivera com a pintura é de cariz interventivo e nunca cessará de o ser mesmo quando põe um ponto final na sua filiação no partido comunista. Diego é livre, é um selvagem na medida em que não suporta que imponham restrições ao seu livre pensamento, à sua liberdade artística, não aprecia os limites, as barreiras. Para ele tudo é possível, a sua confiança ilimitada e vive de acordo com essa crença linear e segura em si próprio.

Já o compromisso de Diego de Rivera com as mulheres da sua vida, não terá sido tão imaculado…

Quando uma adolescente curiosa se aproxima do local onde Diego pinta os frescos da Preparatoria, Lupe Marín sente a incomodidade na pele. Aquele encontro que não chega a ser encontro, será o primeiro de uma vida de encontros e desencontros entre Frida Kahlo e Diego de Rivera. Entre a pomba e o elefante.

Algum tempo depois desse primeiro impacto de vida, Frida sofre um acidente que lhe transforma o corpo, a alma, a vida para sempre. Um impacto de morte. Tinha um destino a cumprir, uma missão, mesmo que tal significasse ficar encarcerada num corpo mutilado e presa a uma forma de vida que não desejava mas que abraça com coragem. Tem de aprender a viver todos os dias com a dor física. Porque Diego a espera. Porque toda a vida esperou por Diego.

É o confronto de Frida com Frida, ferida de morte, sobrevive através de Diego, da pintura que é o cordão umbilical que a liga ao mundo exterior, a Diego, ao filho que tanto desejara e não conseguira conceber. A dor. Dor de alma por se olhar ao espelho e tudo lhe parecer bem e as entranhas, no entanto, a despedaçarem por dentro.

Frida una não existe, Frida é diferente e outra em cada auto-retrato pintado, em cada cenário que cria em cada vivência que abraça.
E também Diego se auto recria em vários momentos, qual Fénix renascida após a aventura americana em que deixa a marca dos ideais comunistas nas grandes metrópoles americanas, provocando a ira dos magnatas do núcleo capitalista mundial.
É a provocação maior a que poderia almejar e no regresso ao México é herói público, aclamado pelo povo e Frida a seu lado uma heroína privada, saudada pelo seu sofrimento.

Um livro que vai para além da mera biografia, J. M. G. Le Clézio interpreta, investiga, cruza informação e decifra o que Frida e Diego escreveram sobre a sua vida em comum e os seus tormentos privados, romanceia uma história que atravessou a História e fez História.

domingo, novembro 23, 2008

"O Pregador Atormentado" de Thomas Hardy

Hardy, Thomas, O Pregador Atormentado (The Distracted Preacher), Quasi, Tradução de Vasco Gato, 2008.

Um jovem pregador metodista, Richard Stockdale, chega à pequena aldeia de Nether-Moynton para guiar o rebanho de fiéis provisoriamente, e logo compreende que ninguém havia assegurado a questão do alojamento do novo pastor, indiferentes que estavam à sua chegada.
A única casa com um quarto disponível era a da jovem viúva Lizzy Newberry que nela vivia com a mãe e uma criada.

E é nessa estada em casa de Lizzy que Stockdale se começa a aperceber das estranhas e inconstantes rotinas da Senhora Newberry, atento que estava às suas movimentações graças a um crescente interesse pela sua pessoa, assim como desperta para o envolvimento da aldeia numa forma de subsistência ilícita na qual Lizzy está implicada.

As incursões nocturnas de Lizzy preocupam-no não só porque a integridade física da mulher que ama pode estar em causa, mas também porque pondera os hábitos peculiares da viúva como um entrave, uma impossibilidade para esta se tornar mulher de um pregador metodista, neste caso, sua mulher.
As responsabilidades de uma mulher na posição em que Stockdale a projecta, não seriam compatíveis com a vida noctívaga, por razões de sobrevivência pessoal é certo, em que Lizzy se encontra.
Mas o apelo da subsistência não é o único a pesar no coração dividido da viúva Newberry. A vida aventurosa que leva também a requesta a uma continuidade ilógica e perante a insistência do pastor na desistência do modo de vida escolhido, a heroína deste conto aventura-se a permanecer sozinha, a atravessar os campos inundados de lua em amenas madrugadas de verão, a liderar homens com o casaco do marido falecido por cima do vestido, a fugir intrepidamente do fiscal Latimer que persegue os que roubam Sua Majestade o Rei.
Lizzy abdica do Amor e Stockdale na encruzilhada da emoção e do dever, parte de Nether-Moynton rumo a outra congregação, a uma existência sem sobressaltos nem atribulações, longe da mulher amada, mas seguro da impraticabilidade daquela união naquelas circunstâncias, reprovando a obstinação daquela mulher independente.

O fim da história, um fim ideal, “praticamente de rigueur numa revista inglesa ao tempo em que foi escrito” como afirma Hardy muitos anos mais tarde, sofre em 1912 um acrescento final, uma nota do autor, em que explica o porquê dessa escolha e sem qualquer contemplação, afirma que, na verdade, o desfecho da história de Lizzy e Stockdale seria fiel ao temperamento libertário da viúva, sem salpicos de exemplaridade mas unicamente transbordante da coragem de Lizzy em assumir que a noção de perfeição dos outros nem sempre coincide com os nossos sonhos.

sábado, novembro 22, 2008

"Rua do Ácido Sulfúrico - Patrões e Operários: Um olhar sobre a CUF do Barreiro" de Jorge Morais

Morais, Jorge, Rua do Ácido Sulfúrico – Patrões e Operários: Um olhar sobre a CUF do Barreiro, Bizâncio, 2008.

Uma cidade dentro de uma cidade. Eis o que a CUF, a Companhia União Fabril, foi no Barreiro durante décadas de existência e convivência com o pólo citadino ali próximo.
Hoje, de regresso à CUF, restam “escombros e silêncio”. O que sobreviveu do movimento de gente e máquinas que dava vida a um dos maiores e mais significativos complexos industriais do Portugal da primeira metade e parte da segunda metade do século XX? O autor observa a extensão de “… vestígios desengonçados de estruturas metálicas, tubagens esventradas, caldeiras, fornos e carris roídos pela ferrugem, esqueletos machucados de armazéns, muretes em decomposição, portões entaipados por madeira podre. A erva cresceu em ramagens de mato e finca os seus pés no território deste deserto, reclamando espaço na desolação. Um vento absurdo silva por entre pilares esfiapados até à medula, tectos que sucumbem, frontispícios desdentados, mecanismos calcinados onde bamboleiam com sarcasmo teias de aranha. O céu escancara-se para aplicar uma luz cruel, cegante, sobre planaltos de cinzas, resíduos de um clamor que se extinguiu. Apenas restos de lancis sugerem que aqui houve ruas, vozes, gente. Pontuando os destroços, chaminés agonizam com a dignidade de gigantes lacónicos.”.

“Rua do Ácido Sulfúrico” é um estudo de vivo interesse sobre o percurso da CUF desde os seus primórdios (1907) até ao seu fim (1974).
Para além da ênfase dada ao trabalho meritório de Alfredo da Silva, o fundador, e seus descendentes, somos igualmente arrebatados pela força da maioria, daqueles que faziam da CUF um grupo de empresas com níveis de produtividade extraordinários, pautadas por um prestígio imaculado e por um conceito de cidade de trabalho que transformou a Companhia União Fabril no exemplo mais acabado de empresa que provia às necessidades não só laborais mas também pessoais dos seus trabalhadores.

Muitos viviam com as suas famílias no interior do complexo industrial, abasteciam-se na mercearia que lhes disponibilizava produtos mais baratos que no exterior, tinham uma assistência médica invejável, faziam parte do grupo cultural e recreativo, praticavam as mais diversas modalidades desportivas, sentiam-se parte de uma organização que reconhecia o valor do trabalho e fazia questão de o premiar devidamente.

Jorge Morais relata-nos o trajecto ascendente da CUF e a sua queda, mostra o legado positivo que permaneceu, sobretudo como modelo de como uma estrutura empresarial deve funcionar não só em termos organizacionais mas sobretudo ao nível do relacionamento com a massa trabalhadora.
O autor também realça o impacto negativo que a industrialização do Barreiro trouxe, nomeadamente, a qualidade do ar que se respirava nos tempos de pleno funcionamento da CUF não seria, evidentemente, a melhor. O progresso sempre teve um preço.

Trata-se de um capítulo pouco explorado e, consequentemente, pouco conhecido da nossa história do século XX que esta “Rua do Ácido Sulfúrico” vem enriquecer com imagens de progresso, engenho, trabalho que nada mais são que exemplares para os herdeiros dessa memória: Todos nós. Uma obra essencial.