domingo, novembro 25, 2007

"Palavras e Sangue" de Giovanni Papini

Papini, Giovanni, Palavras e Sangue (Parole e Sangue), Livros do Brasil, Tradução de Mário Quintana, 2007.

Um ténue fio separa a realidade do mundo de sombras que as personagens de Papini enfrentam neste conjunto de contos que ora nos arrastam para quadros de vulgaridade existencial, ora nos surpreendem com alguma súbita ruptura proveniente de fontes várias e que, invariavelmente, alteram as vidas até então incólumes das figuras emergentes.
A interrupção brusca de uma linha vivencial monocromática é tanto provocada pelo próprio individuo protagonista do conto como por um outro Ser que surge, por diversas vezes, de forma inesperada, assumindo uma dimensão quase espectral, sendo que esta aparição tem sempre o intuito de induzir no núcleo residual do indivíduo retratado um abalo fantástico traduzido em atitudes marginais em alguns casos e auto-punitivas noutros.
O indivíduo é moldado de acordo com os actos por si cometidos ou pelos praticados pelo outro que consigo interage. E este outro pode ser a projecção de si próprio, uma sombra esquiva dificilmente identificável, mas na qual reconhecemos traços da personagem estudada.
Os sujeitos apresentados por Papini são sempre homens vulgares que experimentam a destruição de um mundo que julgavam certo e seguro e que, mediante a acção negativa de si próprio ou de forças exteriores é submetido a uma vontade superior, a uma ordem cósmica que o ultrapassa e que lhe barra o caminho do livre-arbítrio. O seu plano de acção comum é interrompido por acontecimentos adversos que pressentimos serem de natureza transversal, pautados por uma mão invisível que guia os passos inseguros do indivíduo vacilante ante o mundo que o rodeia. O plano superior sobrepõe-se claramente ao pessoal e o Ser desamparado ou é aniquilado ou aniquila. O cataclismo individual é uma fatalidade, a evasão plausível é o castigo auto-infligido ou por entidade superior deliberado.
Para além desta limitação da vontade própria que sentimos nas personagens de “Palavras e Sangue”, tudo o resto é uma humanidade improvável, um tanto ou quanto fantasmagórica porque ausente como humanidade, demasiado automatizada, excessivamente racional. O sangue que se espraia nos textos de Papini é um sangue poluído pelo efeito da palavra deturpada, conduzida a um extremo de racionalidade que não reserva espaço ao pulsar do sangue sensível.

domingo, novembro 11, 2007

"A Casa Amarela, Van Gogh, Gauguin e Nove Turbulentas Semanas em Arles" de Martin Gayford

Gayford, Martin, A Casa Amarela, Van Gogh, Gauguin e Nove Turbulentas Semanas em Arles (The Yellow House – Van Gogh, Gauguin and Nine Turbulent Weeks in Arles), Bizâncio, Tradução de Francisco Agarez, 2007.


Tudo começa com um sonho. O sonho de um homem em criar uma comunidade de artistas numa pequena cidade solarenga de província no Sul de França, Arles.
Van Gogh foge do cinzentismo das cidades do Norte, privadas que estavam da luminosidade que queria colorisse os seus dias e a sua pintura. A sua personalidade instável exige a evasão, a renúncia aos locais lúgubres que já calcorreara. Agora, a sua natural propensão para a melancolia impele-o a rumar a Sul onde o aguardam os dourados da paisagem, a genuinidade dos camponeses e dos tipos citadinos nas suas tarefas quotidianas. Este ambiente que o revitaliza e atrai, empurra-o para a criação de um círculo de pintores dispostos a partilhar ideias, cores, temas, experiências, livros, a semear um modelo de esforço profissional conjunto entre iguais com formas diversas de representar artisticamente o real. Vincent almeja o trabalho em equipa que a apreensão dos sabores desconhecidos de outras mentes criativas lhe poderiam proporcionar.
Partindo sempre da premissa segundo a qual ele será o aprendiz do núcleo a nascer, surge uma oportunidade entusiasmante chamada Paul Gauguin. Pintor mais experiente, tinha como agente o irmão de Vincent, Theo. Aliciado pelo ideal de um grupo de “contaminação” de conhecimentos artísticos, assim como pela garantia de instalação numa casa com as despesas pagas (facto que, neste ponto particular da vida de Gauguin, terá tido um peso considerável), Gauguin adia a prometida viagem por várias vezes (mal imaginando o estado de ansiedade que a sua iminente chegada provocava em Van Gogh que entretanto criara as condições para receber o seu companheiro com a compra de mobiliário e roupa de cama), acabando por desembarcar em Arles no dia 23 de Outubro de 1888. Gauguin buscava inspiração e trabalho efectivo que lhe garantisse notoriedade e o aplauso da crítica e dos seus pares.
Havia que produzir e vender. E embora Vincent pintasse em maior quantidade que Gauguin, a sua auto-confiança não era comparável à do pintor nascido no Peru.
Dividiam modelos e paisagens e o contágio ocorria sobretudo neste âmbito. A casa amarela tornara-se um pólo de comunicação artística entre os dois homens, no entanto, a já debilitada saúde mental de Vincent, conheceu um momento chave quando pintava “La Berceuse”. Perturbado pelo pendor congénito para a doença mental que o perseguia e pela vida pessoal que não pudera viver graças às convenções sociais vigentes e também à amadurecida escolha em se dedicar exclusivamente à arte, Van Gogh tem um grave colapso que o leva a cortar uma orelha, afastando em definitivo um já assustado Gauguin que após o internamento de Vincent, nunca mais o voltaria a ver.
A convivência de nove semanas entre estas duas figuras singulares, é relatada com tal mestria que o leitor se esquece que está a ler uma obra biográfica relativa a um período da vida de dois pintores que viveram debaixo do mesmo tecto e percorreram os mesmos locais durante pouco mais de dois meses, e é transportado para um universo quase ficcional na medida em que Martin Gayford faz um relato em simultâneo historicamente rigoroso, mas com uma vivacidade muito próxima do que é mais facilmente atribuível a um romance. Esta última obra do escritor inglês é um belíssimo exemplo de obra de arte literária.

sábado, novembro 03, 2007

"Tive de o Matar" de Romana Petri

Petri, Romana, Tive de o Matar (Esecuzzione), Cavalo de Ferro, Tradução de Sandra Escobar, 2007.

Lulu, professora numa prisão de mulheres, lutara para resgatar o marido do mundo de inadaptações em que se achava mergulhado desde ainfância e às quais dava forma através da escultura. O estúdio era um santuário ao qual nem a mulher tinha acesso e quando a curiosidade suplantou a submissão obediente, Lulu depara-se com uma amálgama de desusadas perversões esculpidas pelo homem que tentara salvar. Os fantasmas que o atormentavam, eram exorcizados através daquele conjunto de peças sem vida e Lulu compreende a dimensão do seu fracasso, o fim de um honesto intento de o devolver à vida. A predilecção pelo monstruoso, confirma a sua inaptidão para a “vulgaridade” de uma vida em família.
O presente descreve-nos uma mulher perturbada, atormentada por um passado recente angustiante, esquiva face à realidade palpável de uma vida quotidiana normal e que, num dado momento, começa a ver, a ouvir e a dialogar com Alexandre Magno, Lawrence da Arábia e Ricardo Coração de Leão. A fuga em direcção a uma irrealidade, a uma ficção instigadora dos mais primitivos instintos, afigura-se como a única saída para uma alma em busca de libertação.
Os recuos no tempo, aludem a toda a história pessoal de um casamento cujos pilares Lulu susteve até claudicar ante o peso do perdão impossível. As recordações de uma infância feliz povoada pela presença de uma governanta que tinha tanto de anjo como de bruxa, remetem-na para o feitiço da vontade. Aos dezassete anos Lulu invoca a governanta já morta (como ela fazia em vida, soltando os cabelos e atraindo os anjos vingadores) e pede-lhe que a mulher que tentava, sem sucesso, seduzir o pai, morra, e o seu desejo é cumprido. O impossível não existe. Só o perdão é inalcançável porque a justiça não o permite.
A sua vontade é representada pelas três figuras históricas que lhe aparecem, espectros que incitam a tomar a decisão certa, a praticar o acto de libertação, a resolver-se pela tão ansiada paz.
Os crimes passionais são os mais comuns numa prisão de mulheres e Lulu descobre que as motivações das assassinas têm, quase sempre, um pendor justiceiro. O que as impele a matar quem amam é o seu profundo sentido de justiça.
O medo desaparece. As ruas desertificam-se subitamente como que a dar-lhe passagem para cometer o crime imperfeito. Entra no estúdio do ex-marido adormecido e mata-o com uma sarissa. Agora é o momento da fuga definitiva. As coisas terrenas distanciam-se, Lulu evade-se para o infinito.
E lá, em Babilónia, espera-a o dentista, amigo de infância e verdadeiro Amor.