domingo, abril 22, 2007

"A Lentidão" de Milan Kundera

A degustação do tempo. A sua recusa como passagem transversal de vacuidade. A sua aceitação enquanto usufruto de uma totalidade hedonística. Aqui a vida é composta por generosas movimentações xadrezísticas, cerebrais e emocionais, abstractas e concretas, e é nesse tabuleiro pleno de ressaltos espaciais e temporais que as personagens díspares, incoerentes e profundamente humanas de Kundera se deslocam sem nunca na verdade se deslocarem. Existências longínquas entrecruzam-se sem nunca se cruzarem numa real conjugação de experiências menores ou maiores. E é nesta estaticidade que também é uma circularidade que reside a génese da obra... os tempos e os espaços apenas se tocam, apenas se reconhecem e saúdam graças à lentidão, esse conceito abstracto que parece um rotundo nada, mas que se prolonga em reticências múltiplas até desembocar no concretismo absoluto e talvez por isso mesmo, absurdo. As “peças” humanas estão dispostas numa ordem imperceptível, aleatória, mas lógica e apenas os sentidos desbaratados pelos desafios emotivos proporcionados pelo jogo constante, calculado ou instintivo, que as personagens entre si ou dentro de si e contra si próprias disputam, as fará compreender e assimilar, ainda que casual e inconscientemente, a “matemática existencial”, feita de rectas e curvas e equações e adições e subtrações e muita, muita incerteza. Vejamos o que o narrador nos diz a este respeito: «..., esta experiência assume a forma de duas equações elementares: o grau da lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento.». E é a memória de um acontecimento com dois séculos que reúne dois homens marcados por um rendez-vous único, irrepetível, logo seguido de desencontro amoroso, da amargura do dia seguinte. O inverosímil encontro dos dois homens pertencentes a épocas distintas, levanta o véu do significado da enigmática lentidão que mais não é, afinal, do que a permanência dos afectos no seu imortal cultivo. A lentidão é plural e solidifica-se em raízes inquebrantáveis de velhas árvores seculares.

sábado, abril 14, 2007

"As Afinidades Electivas" de Goethe

Obra redigida na fase madura do escritor alemão, As Afinidades Electivas é, a seu modo, uma tragédia sobre a impraticabilidade do amor que condena os amantes ao desencontro por razões morais, sociais e... cósmicas. O sucessivo adiamento da vivência amorosa é imposto pela conjuntura tirânica que no início do século XIX preside à mentalidade eminentemente aristocrática defensora do casamento entre classes, mas acima de tudo apologista da instituição do matrimónio como sagrada (embora esta posição seja trabalhada pelo autor por forma a colocar em evidência a hipocrisia característica do apregoado mas não praticado). Por isso a manifestação de um desejo de união só (!!!) porque se ama, é acidamente rejeitado como uma espécie de sacrilégio. Não mencionei o vocábulo “tragédia” em vão... com efeito, o elemento trágico interfere de forma definitiva e paira na atmosfera, por vezes aparentemente idílica do romance, desde o seu início com claros sinais premonitórios de acontecimentos dúbios a vir. Goethe escreve, então, uma tragédia sob a forma de romance o que não deixa de ser curioso tendo em consideração a admiração do autor pela tragédia grega, sendo que ele próprio elaborou por exemplo uma Ifigénia em Táurida tida como uma das incontornáveis tragédias da literatura alemã. Uma convivência a quatro converte-se rapidamente não na destruição de um lar como seria de esperar, mas na transição (nunca atingida na sua totalidade) do que se julgava querer para o que indubitavelmente se quer. A tragédia reside na circunstância de que o encontro destas almas gémeas não é durável porque lhes é vedado o acesso à concretização do amor. Um silêncio cúmplice está subjacente à estranha aceitação do adultério debaixo do tecto outrora partilhado por um casal que pensava ser feliz. A “troca” é quase natural até que o mundo exterior se dá conta do perigo que ronda aquela casa e os amantes se afastam, momento a partir do qual se inicia o caminho descendente a percorrer pelas personagens e exposto na segunda parte do livro. Uma estranha força que me ocorre apenas designar de “cósmica” apaga a esperança no triunfo do amor, daí talvez o final místico da obra que mais não é do que, provavelmente, a vitória de uma outra forma de amor... e afinal, o amor não morre com as pessoas. E que mais não é este “regresso” de Ottilie do que uma espécie de deus ex machina típico da tragédia grega?

domingo, abril 08, 2007

"A Cidadela Branca" de Ohran Pamuk

Ao escrever “A Cidadela Branca”, Ohran Pamuk “guia-nos” numa viagem metafísica de busca do “Eu” de duas personagens que se confundem numa osmose de semelhanças físicas e psíquicas.
O narrador, um jovem italiano feito prisioneiro pelo inimigo turco, consegue sobreviver graças a uma invulgar capacidade de adaptação e improvisação que o conduzem às mais altas esferas do poder turco da época retratada.
A busca da personalidade de dois Homens possuidores de feições aparentemente idênticas, converte-se numa constante troca de informações sobre as especificidades da vida de cada um (no fundo, aquilo que os distingue verdadeiramente), não os libertando, contudo, da crença de que, a sua semelhança e improvável encontro, se prendem com um desígnio superior não decifrável que os convoca para uma existência a dois de dependência mútua, submetendo-se ao gotejar do tempo e à presença, por vezes insuportável um do outro. O tempo decorre e a cidadela branca, palco de uma batalha fracassada por ambos, é também palco da revelação que os alerta para a necessidade de uma troca definitiva de identidades, aquilo que os salvará da morte certa.
A troca consuma-se e não existe esforço na corporização de uma vida submersa na bruma de um intervalo a partir do qual tudo se alterou, a partir do qual os acontecimentos de duas vidas unificaram-se sem se fundirem. O passado estacou e a fatalidade da revelação manifestou-se com a visão de uma branca cidadela inexpugnável.

domingo, abril 01, 2007

"O Pianista" de Wladyslaw Szpilman

Varsóvia é libertada em 1945. Nesse mesmo ano, nessa mesma cidade palco da sua história, Wladyslaw Szpilman escreve a primeira versão de «O Pianista». É dos escombros de um mundo perdido que a sua voz se eleva. Qual o som da solidão?

Wladyslaw Szpilman é pianista na Rádio Polaca em Varsóvia quando, em finais de Agosto de 1939, as tropas nazis sitiam e, por último, ocupam a cidade, ocupação essa que se prolongará até ao final da guerra. Afixada a progressiva supressão de liberdades cívicas e humanas, numa fase inicial, em proclamações com parágrafos especialmente dedicados a judeus (nos quais era garantida a segurança de pessoas e bens) e, mais tarde, assumindo a forma de decretos crescentemente repressivos dirigidos à comunidade judaica em exclusivo, assim estava a ser preparado o terreno para a criação do ghetto de Varsóvia que chegaria a albergar cerca de meio milhão de judeus e que os alemães, num comentário oficial, designaram por «bairro judaico» já que, segundo um jornal do regime, «os alemães eram uma raça demasiado culta e magnânima (…) para confinar até mesmo parasitas como os judeus em ghettos, um remanescente medieval indigno da nova ordem da Europa. Em vez disso, haveria na cidade um bairro judaico onde só viveriam judeus, no qual desfrutariam de total liberdade e poderiam continuar a praticar os seus costumes e a sua cultura raciais. Por razões puramente higiénicas, esse bairro seria cercado por um muro, para que o tifo e outras doenças dos judeus não se propagassem a outras partes da cidade.». Szpilman e a família encontram-se entre os «escolhidos» que são encarcerados no ghetto – o absurdo dessa realidade com aparência de liberdade é sublinhada pelo narrador ao declarar: «Eu saía muitas vezes, para caminhar ao acaso, e encontrava inesperadamente um desses muros. Barravam-me o caminho quando queria continuar a andar e não havia nenhuma razão lógica para me deter» – e é o relato dessa vivência gradativamente precária em conformidade com o plano alemão de eliminação (que macabramente apelidaram de «educação social apropriada») dos «parasitas do organismo saudável dos povos arianos» que o protagonista nos revela, recorrendo à descrição crua de factos sem, no entanto, manifestar ódio face aos usurpadores da sua e de tantas outras vidas. Prefere ironizar como quando lhe é sugerido tocar no casino do comando de extermínio alemão «…, onde oficiais da Gestapo e das SS se distraíam, à noite, depois de um dia cansativo a assassinar judeus.».
O pianista nunca cessa de o ser. Instado por um amigo ou protector a sentar-se frente a um qualquer piano miraculosamente poupado aos efeitos do abandono ou à simples pilhagem, sente os dedos rígidos a «moverem-se com relutância sobre as teclas» e o som parece-lhe «irritantemente estranho» como se também a música, à semelhança daquele mundo em ruínas, se aproximasse do fim. A vinda de cada Inverno, anunciado pela mudança de cor das folhas das árvores da Aleje Ujazdowskie e pelo «vento que soprava mais frio de dia para dia», aliado ao duro trabalho braçal (é um dos escravos que trabalha na demolição dos muros do ghetto), provoca-lhe a ansiedade de quem depende dos dedos para poder pensar numa futura carreira como pianista. Sim, mesmo vivendo na permanente dúvida de quando chegaria a sua vez de entrar nos vagões de gado desinfectados da Umschlagplatz onde partilhara a última refeição com a família, mesmo assim Szpilman pensa num futuro baseado no único bem que lhe resta do período anterior à guerra.
Esta é também uma história de fantasmas, ausências e solidão, e de como dessa absoluta solidão dependia a sobrevivência de Szpilman, dolorosamente consciente da subserviência que deve ao silêncio. E do inverosímil encontro entre a presa e o caçador que, afinal, nada mais era do que um homem deslocado, um homem que corou quando teve que admitir, perante a pergunta do polaco, que era alemão.
Como afirma Andrzej Szpilman no prefácio, o seu pai não é escritor. Mas é a este não-escritor que devemos um retrato desapaixonado, mas não desgarrado, poético a espaços (eis um exemplo: «As penas das almofadas rasgadas entupiam as valetas e encontravam-se por todo o lado: cada sopro de vento levantava grandes nuvens delas, que turbilhonavam no ar como uma densa queda de neve em sentido inverso, da terra para o céu»), da criação e destruição do ghetto de Varsóvia e de como as almas que nele habitavam se tornaram parte da solução final nazi desde o início.
O som da solidão é um comboio que se afasta.