domingo, julho 13, 2008

"A Vingança de Joana D'Arc" de María Elena Cruz Varela

Varela, Maria Elena Cruz, A Vingança de Joana D’Arc (Juana de Arco – El corazón del verdugo), Saída de Emergência, Tradução de António Marques Pacheco, 2007.

Alguns anos após o percurso mártir de Joana D’Arc, a donzela nascida em Domrémy-la-Pucelle em 1412 e assolada por visões que apontavam o caminho da absoluta soberania de uma França abalada pela guerra dos cem anos, convertendo-se Jeanne no instrumento divino dessa vontade sobrenatural e inabalável de apoio aos Armagnacs, descobrem-se documentos que provam a santidade da sacrificada na fogueira na cidade de Rouen em 1431.

A descoberta de documentos provenientes de um interveniente no processo, assassinado para não revelar a verdade que já não podia ocultar, acaba por envolver pessoas próximas do homem que desejou expor o erro do cumprimento da sentença perante os milagres a que havia assistido após terem queimado viva a donzela de Orleães.

Um grupo de homens reúne-se numa cruzada com o objectivo único de provar em definitivo o equívoco em que se baseou a condenação de Joana e seguimos todos os seus esforços, rodeados de perigos vários provenientes daqueles que sentem a ameaça da verdade no seu encalço.

Em paralelo, partilhamos momentos do julgamento de Joana e os instantes que antecedem a sua morte pelas chamas proferindo palavras de perdão direccionadas aos seus carrascos: Pai, eu Te suplico que acolhas a alma desta aflita criatura, e que tenhas por bem não ter em conta os seus momentos de debilidade e dúvida. Que o Teu amor generoso, oh Pai, se derrame sobre os meus irmãos, presentes e ausentes, e os abençoe, protegendo-os de todos os males. Rogo-Te, Rei do Céu, que não sejam castigados pelo pecado que, no meu corpo, podem estar a cometer contra Ti. Senhor, tem piedade dos cordeiros extraviados, que não se encontram no caminho recto para o regresso a casa.
Peço também que todo o tipo de pessoas aqui presentes, quer sejam armanhaques, borgonheses ou ingleses, tenham piedade de mim. Rezem a Nosso Senhor pela salvação da minha alma, que é a vossa, não importa o partido a que pertencem, nem a que mortal tenham jurado lealdade.

A comoção invade as hostes presentes e mesmo aqueles que, momentos antes, desejavam a morte de Joana D’Arc, não suportam a aspereza do confronto com uma alma pura que apesar de amarrada a um poste e preparada para morrer pela sua Fé, perdoa os homens que a capturaram e que se preparam para assistir ao seu último suspiro.
A multidão emudece e todos compreendem, numa unanimidade rara em tempos de guerra, que estão a sacrificar uma Santa, que é uma Santa a mulher de cabelo curto exposta no palanque de madeira.

Joana D’Arc foi canonizada em 1920, mais de cinco séculos depois da sua morte.

Ter-se-á cumprido a sua vingança?

Acredito que a santidade dispensa tal sentimento.

domingo, julho 06, 2008

"Tchaikovski: Vida e Obra" de Jeremy Siepmann

Siepmann, Jeremy, Tchaikovski: Vida e Obra (Tchaikovsky: His Life & Music), Bizâncio, Tradução de Francisco Agarez, 2008.

Ler a biografia de Piotr Ilich Tchaikovski escrita por Jeremy Siepmann é percorrer as páginas de uma vida atribulada, repleta de sucessos, de desilusões, de ansiedades e, acima de tudo, é mergulhar na delicada e surpreendente psique de um dos mais brilhantes compositores de sempre.

A obra tem inúmeras ilustrações que permitem ao leitor acompanhar os locais e pessoas que, de uma forma ou de outra, deixaram a sua marca na vida do músico e apresenta, igualmente, dois CD de música de Piotr Ilich que complementa as palavras escritas e ainda um número considerável de excertos de cartas escritas por Tchaikovski que clarificam quase todo o seu percurso enquanto Homem e Compositor, deixando, mesmo assim, algum espaço à especulação…

O traço mais marcante da personalidade de Tchaikovski parece-me ser a sua susceptibilidade à opinião alheia que, de certa forma, sempre o perseguiu e o impeliu a tomar a decisão porventura mais desacertada da sua vida: Casar.
Tchaikovski nunca assumiu abertamente a sua orientação sexual, contudo, as suas paixões, apesar de platónicas tanto quanto sabemos, são direccionadas a homens, nutrindo pelas mulheres que surgem na sua vida ou ódio (no caso da mulher com quem se casa, Antonina Ivanovna) ou apenas uma ternura e carinho próprios de um Homem que se considerava anti-social mas que encantava todos (ou quase todos…) que o rodeavam.

As linhas que Tchaikovski escreve ao irmão Modest, também homossexual, são elucidativas quanto à urgência que sente em se casar: Estou agora a passar por um período muito crítico da minha vida. Não vou agora entrar em detalhes, mas dir-te-ei simplesmente que decidi casar. É inevitável. Uma coisa que tenho mesmo que fazer – não apenas por mim mas também por ti, Modest, pelo Tolia, pela Sasha, enfim, por todas as pessoas que amo. Durante este período a visão que tenho de mim próprio alterou-se significativamente, com o resultado de que de agora em diante vou fazer preparativos sérios para o matrimónio – independentemente da identidade da outra parte. Acredito agora firmemente que, para nós dois (tu e eu), os nossos temperamentos são o maior e mais insolúvel impedimento à nossa felicidade e que temos de combater as nossas maneiras de ser com todas as nossas forças.
Algo o empurra para esta decisão e acaba por levar avante os seus intentos quando aparece na sua vida uma mulher que o ama em segredo e obsessivamente há muitos anos, Antonina.

No entanto, uma semana após o casamento, Tchaikovski escreve ao irmão Anatoli dizendo o seguinte: Quando acordei, na manhã seguinte, vi a minha vida diante de mim, estilhaçada. E caí no desespero. Hoje, a crise parece ter passado. Mas, Deus meu, foi horrível, horrível, horrível! Se não fosse o grande amor que sinto por ti e pelos meus outros entes queridos, que estiveram ao meu lado enquanto eu suportava o insuportável, podia ter acabado mal – na doença, ou mesmo na loucura. Mas hoje – hoje estou a começar a recompor-me.

Mas não se recompôs e teve que engendrar uma forma de se afastar em definitivo da indesejada esposa.

Durante muitos anos, Tchaikovski troca correspondência com Nadezheda Von Meck, uma abastada viúva cultíssima e profunda conhecedora e admiradora da música de Piotr Ilich.
As suas cartas revelam muito mais do que uma amizade entre duas pessoas que nunca se conheceram pessoalmente mas que conheciam cada recanto da alma uma da outra. Nadezheda quer tomar conta de Tchaikovski e torna-se seu mecenas, a única forma possível de aproximação entre ambos.

Talvez o maior desgosto da vida do compositor a seguir à morte da mãe, tenha sido a cessação, sem qualquer justificação, da renda que Nadezheda lhe pagava. E não era só o corte dessa fonte aparentemente inesgotável de rendimentos que o assombrava, era o corte da sua duradoura e inabalável amizade. É um mistério que perdura até hoje.

Tchaikovski foi indubitavelmente um génio e como muitos que o antecederam e precederam foi um génio atormentado por uma sensibilidade nem sempre compreendida.

A banalidade aterrorizava-o, daí que as suas aparições em público fossem muitas vezes confundidas com ataques de timidez, histeria ou loucura.

Ele desejava fugir da vulgaridade, afastar-se o mais possível da contaminação dessa doença que flagelava a sociedade de então e, apesar da dificuldade da travessia, transpôs o umbral da trivialidade e passou à eternidade como “Único”.