sábado, maio 26, 2007

"O Coração das Trevas" de Joseph Conrad

Marlow é um marinheiro experiente e loquaz que, ao embarcar em mais uma viagem, relembra acontecimentos passados decorridos quando havia sido capitão de um barco pertença de uma companhia que “explorava” uma indeterminada região do interior de África.
Toda a narrativa (contada por um dos ouvintes de Marlow) é dominada pela figura fisicamente ausente de Kurtz, chefe de um posto longínquo da companhia, homem elogiado e admirado por todos, referido sempre como um génio com grande futuro no seio da empresa. Progressivamente subjugado pelo consenso face à imagem de Kurtz, Marlow vê-se absorvido e contagiado pelo fascínio que aquele “ídolo” lhe suscita.
Quanto mais se aproxima do coração do continente negro, em busca da lenda viva em que se convertera essa espécie de Messias, mais se agita o seu iluminado coração ante a iminente presença de Kurtz, personagem submersa nas trevas da floresta, afundada no seu próprio coração enegrecido pelas circunstâncias vivenciadas na selva, derrotado pelo crepitar feiticeiro da sua própria vaidade.
Marlow encontra-o prostrado, doente, e o corpo daquele homem, aquele corpo inerte e macilento, materializa-se na voz, a tal voz hipnótica que proferia os espantosos monólogos de que o arlequim russo se recordava com tanta precisão e reverência.
Kurtz exerce um poder primitivo sobre todos quantos o rodeiam e digo primitivo porque o deslumbramento, a crença absoluta no dom de liderar apenas com o olhar, apenas com a presença, apenas com a voz mesmerizante, o não questionar sequer a sua existência ali naquele momento, toca tanto os europeus que com ele privam ou que dele simplesmente ouvem falar (como é o caso de Marlow que o admira mesmo antes de o conhecer), como os indígenas que a ele se submetem como a um deus dos antípodas, incorpóreo, intocável, eterno.
Não temos acesso a um único dos brilhantes monólogos de Kurtz, tudo o que sabemos a respeito da figura quase mitológica que lidera o posto mais inóspito da companhia, é-nos transmitido por aqueles que o conheceram, pela sua noiva no final da narrativa e sobretudo, por Marlow, aquele com quem se cruzou apenas nos momentos finais da sua vida, mas que, nessa breve troca de olhares e reduzidas palavras, difunde o essencial para se converter na pessoa que melhor o conheceu e compreendeu, convertido à sua imensa superioridade.
A contaminação pelo horror, consuma-se na passagem da herança escrita do desterro suportado, da loucura experienciada, para as mãos do marinheiro fechado no compartimento mais obscuro do coração daquelas trevas preparadas ou não para a luz da revelação.

domingo, maio 20, 2007

"O Sentido da Noite - Uma Confissão" de Michael Cox

História narrada na primeira pessoa, “O Sentido da Noite – Uma Confissão”, relata a cruzada de Edward Glyver para repor uma verdade cuidadosamente escondida e que lhe é revelada ao remexer papéis deixados pela mãe escritora falecida. Glyver reúne as peças de um intrincado puzzle e conclui que a identidade que julgava ser a sua, intocável e autêntica, era na realidade uma identidade criada, produzida artificialmente para que a sua origem nunca fosse descoberta.
Tudo começa com um acto de vingança por parte da verdadeira mãe de Edward, Laura, Lady Tansor. Casada com um dos nobres mais ricos de Inglaterra, pediu a Lord Tansor que uma dívida contraída pelo pai fosse perdoada; perante a recusa do marido e subsequente morte do pai, Laura decide ocultar a gravidez do filho primogénito por que o Barão tanto aguardava viajando para França na companhia da sua grande amiga e coadjuvante na intriga perpretada, Simona Glyver. Concebe o filho em França, entrega-o aos cuidados extremosos de Simona e parte para Evenwood sem a criança.
Edward cresce como Edward Glyver e apenas reconhece como mãe Simona Glyver que escreve romances para os sustentar após a morte de um marido ausente. É um estudante brilhante mas, impossibilitado de ingressar na universidade devido a uma calúnia montada pelo suposto melhor amigo, Phoebus Rainsford Daunt, Edward encontra uma alternativa à vida académica de que se vira bruscamente privado e que o leva a frequentar círculos bibliófilos sobretudo na Alemanha e a compilar informação e conhecimento suficientes para manter longas discussões e troca de opiniões com os mais eruditos bibliófilos.
Ao morrer, Simona deixa alguns papéis aos quais Edward se agarra numa tentativa de prender a memória da mãe, mas rapidamente compreende que algo de errado e sobretudo de dúbio relativamente às suas origens se apresentava nesses escritos e mesmo em algumas recordações débeis que ele próprio retinha e que dificilmente conseguia explicar.
Ao descobrir a verdade acerca das suas origens nobres, Edward lança-se numa cruzada de busca de provas que permitam a Lord Tansor reconhecê-lo como seu legítimo herdeiro. Sobretudo porque é-lhe comunicado que Lord Tansor, após ter perdido toda a esperança no nascimento de um herdeiro através de um segundo casamento consumado após a morte de Laura, nomeara como seu sucessor nem mais nem menos que Phoebus Rainsford Daunt, entretanto “adoptado” por Sua Senhoria como o herdeiro que nunca tivera.
O objectivo de Edward torna-se duplo: herdar o que é seu por direito de nascimento e retirar ao seu rival aquilo que mais uma vez lhe queria roubar.
Depois de peripécias várias que incluem a traição amorosa para recuperação de papéis na posse de Edward e que lhe dariam Evenwood, a mansão das suas recordações de menino e centro do mundo Tansor, Edward percebe que nunca mais recuperaria o que era seu (e chega a confrontar o Barão, seu pai, com os factos mas já sem provas, sendo naturalmente escorraçado como farsante e vigarista) e inicia um ciclo de vingança seu que culminaria com a morte de Phoebus, o homem que lhe tirara tudo. Mas antes de matar Daunt, Edward desfere um golpe mortal num homem inocente, apenas para saber se era capaz.
Assistimos à transformação de um homem bondoso num assassino, é certo que acicatado pelas circunstâncias em que se desenrolara a sua vida, mas assistimos igualmente a um homem que se vinga do seu inimigo mas que vive eternamente atormentado pela morte que infligira a um inocente transeunte num beco da Londres vitoriana.

domingo, maio 06, 2007

"Ética para um Jovem" de Fernando Savater

Em “Ética para um Jovem”, Fernando Savater adopta um estilo ou forma de escrita quase epistolar na medida em que existe um destinatário sempre presente e vincado pelo autor ao longo da obra, o seu filho adolescente. Contudo, o leitor não é conduzido numa viagem de monólogo, mas de quase diálogo já que vezes há em que a “voz” do filho ausente/presente parece chegar-nos com impressionante nitidez. E é, de facto, de uma viagem que se trata quando nos debruçamos sobre este livro (e não será a leitura de qualquer livro uma viagem?), mas qual o destino deste périplo ao mundo da ética? Qual o objectivo ético de um livro sobre ética? Apoiando-se na ideia de Wittgenstein segundo a qual não era possível escrever um verdadeiro livro de ética, Savater acaba questionando o propósito do livro e alarga com esta indefinição o campo de trabalho desta área de saber que não é, de forma alguma, pertença exclusiva das ciências humanas, mas antes pertença exclusiva do género humano, a característica essencial de distinção entre Homem e outras espécies animais.
O autor confronta-nos e confronta o seu jovem discípulo /filho logo no capítulo primeiro com o objecto da ética que é, simultaneamente, a sua finalidade, a sua meta última, a liberdade. E como a liberdade com tudo o que abarca (e este tudo é mesmo tudo, ou seja, a totalidade das acções e operações humanas, aquilo que nos permite viver e fazer os outros viver) engloba não só o sujeito e a sua individualidade, mas também a interacção dele com os outros, a influência que o homem pode ter na sua e na qualidade de vida dos que o rodeiam, podemos com alguma segurança afirmar que, e seguindo a perspectiva fornecida por Fernando Savater, a ética trata da liberdade e, por isso, será o mais completo dos saberes, uma espécie de ciência das ciências.
“A ética é apenas o propósito racional de averiguar como viveremos melhor.”, afirma o autor depois de partir de um exemplo retirado da Bíblia, a história de Esaú e Jacob. Aliás, uma “técnica” utilizada por Savater por forma a tornar a mensagem a transmitir mais facilmente perceptível, é precisamente começar por ilustrar e só depois resumir a ideia a retirar da “imagem”. Desloca o seu discurso no sentido de tornar a leitura límpida, sem enigma nem mistério possível face ao que se pretende dar a conhecer e sobretudo tendo em consideração o destinatário principal da obra, um jovem de quinze anos. Quanto à citação com que iniciei este parágrafo, ela surge no sentido de especificar, esclarecer a noção de liberdade apresentada e que se atém a três outros conceitos muito vincados sem dúvida porque fundamentais para demarcar o terreno “real” da liberdade e são eles: ordens, costumes e caprichos. Também aqui desencadeia a reflexão a partir de um exemplo, desta feita da autoria de Aristóteles para realçar o dilema que por vezes constitui tomar decisões e qual o posicionamento adequado de quem as toma de acordo com as circunstâncias específicas em que se encontra. E é neste contexto que “liberdade é decidir” mas também darmo-nos conta do que fazemos, o que por vezes nos convém a nós pode não convir aos outros. Ordens podem inibir a liberdade, mas se se disser “Faz o que quiseres”, será este imperativo uma ordem inibidora? Os costumes, por sua vez, situam-se num universo relativamente rígido em que impera a tradição, o testemunho das gerações passadas que transmitem um conjunto de valores passíveis de serem assimilados ou não pelos jovens, é uma questão de escolha. Os caprichos por sua vez parecem implicar uma maior dose de liberdade, no entanto, geralmente associa-se o capricho a um estado egoísta provisório e beneficiador de uma liberdade própria exacerbada, levada a um extremo, mas porventura inibidora das liberdades alheias.