domingo, junho 29, 2008

"A Especiaria" de António Oliveira e Castro

Castro, António Oliveira e, A Especiaria, Guerra e Paz Editores, 2008.

Duas épocas, duas vidas. A História de uma família, a Gesta de dois países unidos pelo acaso calculado de um achamento e pela obstinada preservação de um território indomável.

A acção de “A Especiaria” decorre entre os anos 70 do Século XX em plena Guerra Colonial, tendo Angola como cenário e Benguela, um Alferes ao serviço do Exército português, como protagonista, e o ano de 1540, tendo Portugal e um mar revolto por cenários, e Mancini, um mercador Veneziano de passagem por Lisboa, como herói.

Flávio Mancini, chega a Lisboa com o intento de apresentar uma proposta de negócio à coroa portuguesa: Detentor de um indómito espírito aventureiro, apresenta ao representante do Rei uma oportunidade de aceder, com o apoio e bênção de Sua Majestade D. João III, a um inigualável tesouro, uma especiaria apenas existente em território colonial português que possuiria propriedades regenerativas únicas, uma espécie de elixir da eterna juventude que o Veneziano lograva alcançar a fim de a comercializar.
A sua estada na capital do Reino envolve um conhecimento forçado das “tradições” e noções de divertimento em voga naquele tempo, nomeadamente, o “pão e circo” à portuguesa: O auto de fé. O povo andrajoso e inculto segue o caminho traçado pelos líderes religiosos e políticos, crendo na falácia em que o aparato imenso das fogueiras dispostas à mercê dos seus olhos sedentos é baseado, uma urdidura bem tecida para que não haja a mínima dúvida sobre a culpa dos hereges queimados.
Mancini e Ângelo, o seu fiel servidor, contemplam, aterrados, o cenário de horror que os circunda e retiram-se deixando a praça apinhada de gente a viver um dia de feriado.
Entretanto, Ester, a serviçal da estalagem onde os dois italianos se encontram hospedados, e entusiasta dos castigos infligidos aos hereges, é arrastada por Mancini na busca do elixir que o Rei português decidira patrocinar e partem na missão que os impele à aventura da descoberta da especiaria que os portugueses, nas suas imensas viagens por terras exóticas e de todos desconhecidas, não haviam descoberto.

Os relatos concernentes ao século XVI e a Mancini, são entremeados com a narração referente a Benguela, nascido em Angola, de família angolana de várias gerações, a lutar do lado de uma metrópole distante no espaço e alojada algures num recanto obscuro e pouco explorado do seu coração.
Benguela não esconde a sua revolta ante o tratamento de que alguns angolanos são vítimas em fazendas geridas por portugueses e, no caso concreto de Miragaia, um português a quem haviam morto selvaticamente a mulher e a filha, o Alferes não esconde o seu desagrado face à total falta de escrúpulos daquele. A morte de um trabalhador ao serviço de Miragaia, despoleta uma revolta à qual Benguela e Marcelino, irmão do falecido, não eram alheios.
Em todos os momentos em que acompanhamos o percurso do Alferes Benguela, está presente a sua hesitação em abrir uma arca guardada na família há inúmeras gerações que encerraria um qualquer sagrado tesouro de família não profanado desde que fora encerrado nessa misteriosa arca por um remoto antepassado.
Finalmente, a derrocada do mundo que Benguela conhecera, impele-o a abrir o cofre, como se fosse urgente o contacto com um pedaço de mundo imaculado.

Nunca fora tão claro o contraste entre o desabar de um mundo construído ao longo de séculos e o seu fim em poucos anos.

Benguela abre o baú e encontra um relato manuscrito do seu antepassado, da sua travessia do deserto após o ruir do seu próprio mundo, da reconstrução, do reerguer de uma identidade julgada perdida.

O elixir da eterna juventude é a busca incessante da felicidade.

domingo, junho 15, 2008

"As Velas ardem até ao fim" de Sándor Márai

Márai, Sándor, As Velas ardem até ao fim (A Gyertiák Csonkig Égnek), Dom Quixote, Tradução de Maria Magdolna Demeter, 2007.

Dois amigos com sensibilidades diferentes reencontram-se na etapa final das suas vidas no castelo de um deles, local onde se concentram todas as memórias comuns, todos os quadros de união e clivagem entre ambos.

Não se viam há quarenta e um anos e, no entanto, essa ausência, esse espaço que se criara entre eles e que fora preenchido por anos de inquietude e por uma paciência rendilhada de íntimas certezas, era uma quase garantia de que se voltariam a encontrar, de que tudo o que fora dito apenas com a argúcia do olhar seria, no momento do reencontro, proferido por meio de palavras audíveis, com a objectividade que a espera de décadas tornara possível.

Konrád era proveniente de uma família que vivia com dificuldades e que se sacrificara para o enviar para a Academia militar, já ao General era-lhe proporcionada uma vida de abastança e a escolha da carreira militar tinha tanto de natural como de genuína inclinação do garboso jovem sem génio artístico, prático e racional nas suas preferências.

O amigo rico torna-se “protector” do amigo pobre complementando-se como companheiros inseparáveis. A amizade que os une é pura e inequívoca mas à medida que as suas personalidades se vincam pendendo a índole de um para a música e a de outro para as coisas da guerra, demonstrando até incompreensão e desprezo pela “utilidade” da música, a sua amizade dilui-se na perplexidade, na descoberta de que o outro é, afinal, diferente, fraco por se entregar à arte em detrimento da entrega à pátria, incapaz por não reconhecer a improficuidade do solo que escolhera pisar, a infertilidade da semente que ousara lançar.

A amizade cedia terreno à ruptura definitiva.

O General casa-se com Krisztina e também ela é diferente.

Numa caçada Kónrad aponta a arma ao amigo e este, apesar de se encontrar de costas, pressente a tentação e principia uma reflexão sobre o que motivara aquele momento e essa meditação dura quarenta e um anos porque Kónrad parte, desaparece sem deixar rasto.

Quarenta e um anos dura a espera do General para confrontar o amigo com a traição que fora cometida por ele e por Krisztina, a que também diverge da normalidade e ordem incorporadas pelo General.

A reconciliação ou pelo menos uma espécie de paz que lhe permitam terminar os seus dias com a tranquilidade dos que procuram a verdade é o que os dois homens perscrutam à luz das velas que ardem até ao fim na longa noite de confidências.

domingo, junho 01, 2008

"Uma Janela para o Infinito" de Denis Guedj

Guedj, Denis, Uma Janela para o Infinito (Villa des Hommes), Bizâncio, Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira, 2008.

Hans Singer, eminente matemático alemão, é acolhido no Hospital psiquiátrico de uma pequena cidade alemã após mais um colapso mental. Responsável por trabalhos sobre o Infinito e mentor da Teoria dos Conjuntos, Singer é invadido pelas palavras duras e ressonantes de uma carta que o pai lhe enviara aquando do seu décimo sexto aniversário e que ecoam quase em permanência no seu frágil juízo como uma maldição, um presságio negro que o perseguisse nos momentos mais críticos: “Quantas vezes os indivíduos mais prometedores são vencidos por uma pequeníssima dificuldade ao praticarem o seu ofício. Então, desanimados, atrofiam-se completamente e, mesmo na melhor das hipóteses, não serão mais do que «génios arruinados» ”.

E é assim que Singer se vê. Como um génio em declínio, preterido, menosprezado.

Matthias Dutour, soldado francês vindo da frente de combate e antigo maquinista de caminhos-de-ferro, é internado devido a um agudo estado de stress pós-traumático motivado pelas barbaridades de guerra a que assistira e que o haviam transformado num Ser abstraído, alheado, afastado de si próprio, da sua História de vida, do mundo em ruínas que o circundava. A indiferença dominava-o.

É encaminhado para o quarto 14. Herr Hans Singer já habitava o compartimento.

E assim começa uma amizade improvável entre dois homens de proveniências sociais e culturais díspares.

Para todos os efeitos, Matthias era um desertor. Salvara um soldado alemão de morte certa e a recompensa fora o cuidado com que o “inimigo” o tratara levando-o para o mundo distante e campestre do sanatório, longe das minas e das bombas e dos mortos. Matthias não reagia a qualquer estímulo verbal, a qualquer contacto humano e Hans Singer falava com o soldado francês em francês num monólogo incessante que o matemático tentava converter em diálogo lançando inocentes provocações ao espírito angustiado de Matthias Dutour.

O maquinista começou a reagir aos incentivos de Singer, aos desafios constantes que este lhe lançava, à sua paciência em tentá-lo ao regresso ao universo dos seres pensantes e falantes, ao cosmos da expressão. Matthias inspirava-lhe uma ternura inexplicável, talvez porque irradiasse uma luz imensa com os seus cabelos amarelos como o sol, uma esperança de recuperação da sua própria sanidade mental. Revelou-se o amigo mais perene e sincero que Herr Singer jamais tivera, o aluno mais brilhante e atento às suas soluções matemáticas e filosóficas, o companheiro mais compreensivo e indulgente que percorrera aquela etapa da sua vida lado a lado, como um camarada de guerra que não se abandona.

Matthias era curioso, inteligente, detentor de um espírito vivaz e surpreendente e o mestre expunha teorias e discorria sobre a sua vida, as suas vitórias e derrotas, as crises que frustraram a sua elevação ao nível dos ilustres matemáticos do seu tempo. E o aluno abria o livro da sua vida em Paris, desde a vivência sã e feliz com os pais adoptivos, até à paixão pelos caminhos-de-ferro nascida graças à oferta do livro “A Besta Humana” de Zola por parte da mãe, analfabeta mas ciente da importância do saber, e à sede de conhecimento (mais do que sede de revolução) que o levara a frequentar a Universidade Popular.

A temática da amizade inabalável entre dois homens mesmo que celebrada num espaço-limite em que a fronteira entre sanidade e loucura desfoca um possível enquadramento linear, torna esta obra uma janela para as infinitas probabilidades da vida mesmo quando tecida de improváveis.

O improvável é sempre provável.