domingo, abril 20, 2008

"O Maçon de Viena" de José Braga Gonçalves

Gonçalves, José Braga, O Maçon de Viena, Prime Books, 2005.

José Braga Gonçalves socorre-se de documentos julgados para sempre perdidos após a repressão nazi e reencontrados por acaso nos Arquivos Centrais da antiga República Democrática Alemã para escrever este romance que revela uma faceta menos pública do Marquês de Pombal: A sua ligação à maçonaria.
Dois amigos vivem épocas conturbadas nos países onde vivem, Otto numa Aústria acossada pela crescente vontade imperialista alemã que, através da figura emergente de Adolf Hitler, se pressente em perigo, e Cid num Portugal atormentado pela ditadura, vê-se preso no Limoeiro trocando correspondência tanto com Otto como com a Maçonaria Brasileira que teria em sua posse um maior número de documentos reveladores do papel assumido por Sebastião José de Carvalho Mello no seio da Maçonaria Portuguesa e Austríaca do que a Lisboa que albergara inúmeros documentos preciosos destruídos para sempre pelo terramoto de 1755.
A investigação em três frentes diferentes com o objectivo de desvelar os segredos do Ministro de D. José I, acompanha as dificuldades e aventuras pessoais dos protagonistas tão próximos do abismo da descoberta como do abismo da perdição a que as circunstâncias políticas dos seus países os parecem conduzir indelevelmente.
Tudo converge para a importância assumida pelo Marquês de Pombal na engrenagem maçónica a que a sua permanência como enviado português em Viena não terá sido estranha e a vertigem do conhecimento a que acedem os investigadores é apenas comparável à vertigem de aniquilação que a Europa experimenta.
Algumas revelações interessantes sobre a expulsão dos Jesuítas e a execução dos Távoras, em correlação com o simbolismo e génese maçónicas, tornam a obra duplamente aliciante e, de certa forma, obrigatória para quem pretenda alargar os seus horizontes históricos face a uma das figuras de maior destaque da História Portuguesa do Século XVIII. Uma face de um poliedro.

domingo, abril 13, 2008

"A Sabedoria dos Mortos" de Rodolfo Martinez

Martinez, Rodolfo, A Sabedoria dos Mortos (Sherlock Holmes y la Sabiduria de los muertos), Saída de Emergência, Tradução de José Manuel Lopes, 2006.

Na introdução à primeira edição, Rodolfo Martinez revela ao leitor como um amigo professor em Londres lhe oferecera um conjunto de manuscritos inéditos escritos pelo Dr. Watson adquiridos numa loja de antiguidades perto do Soho e de como, movido por um incontido entusiasmo holmesiano se dedicara à tarefa de os traduzir para castelhano.
A concepção original da obra é-nos imediatamente dada a conhecer através do revestimento de autenticidade da história apresentada a dois níveis diversos: Rodolfo Martinez surge como “mero” tradutor dos três manuscritos a que temos acesso quando, na realidade, é autor das várias ficções sobrepostas com que nos deparamos; e Artur Conan Doyle é-nos descrito como o Agente de Watson, verdadeiro autor de todas as Aventuras de Sherlock Holmes impressas e em grande medida responsáveis pela notoriedade do grande detective.
Dispõem-se, então, perante o leitor, várias ficções encetadas por Rodolfo Martinez com o intuito de soarem a realidade, tanto a ficção de que ele é o tradutor de textos inéditos (quando é o autor), como a de que os casos em que Holmes se envolveu são reais e contados pelo seu velho amigo Watson, o autêntico autor confundido com Conan Doyle.
Enquanto leitores somos igualmente confrontados, por exemplo, com a curiosa revelação de alguns pormenores desconhecidos dos anos em que Holmes fora dado como morto após a queda nas cataratas de Reichenbach.
A obra é composta, conforme já referi, por três histórias distintas, três casos em que Holmes, Watson e o Inspector Lestrade entram em cena.

Na primeira, denominada “A Sabedoria dos Mortos”, Holmes e Watson descobrem que a personagem criada pelo detective aquando da sua “morte”, Sigurd Sigerson, está a ser usada por um impostor afim de colocar em prática o intento de roubar Necronomicon ou Livro dos Mortos à Irmandade “Aurora Dourada”, legítima guardiã do perigoso volume que, segundo rezava a lenda, provocava a abdicação de príncipes e consequente usurpação do respectivo trono.
Deste texto sobressai a extrema capacidade de Sherlock em incomodar os menos aptos intelectualmente (neste caso, Arthur Conan Doyle, o afectado agente de Watson cujo incómodo ante a presença de Holmes denotava o seu sentimento de inferioridade face ao mestre), a amizade e lealdade comoventes entre Watson e Holmes, a equivalência intelectual do oponente de Sherlock que demonstra ser tão hábil na técnica do disfarce como o nosso detective, a figura já subversiva e influente de Aleister Crowley nos círculos esotéricos londrinos e a tibieza intelectual de Lestrade em relação a um jovem colega da Scotland Yard, merecedor da admiração do próprio Sherlock.

O segundo texto “traduzido” por Rodolfo Martinez é “Desde a Terra mais além do Bosque”, um duelo entre duas das personagens mais fascinantes da literatura de língua inglesa do século XIX: Sherlock Holmes e Drácula.
O inesperado regresso do Conde Vlad Dracul a Londres, previsto pelo Dr. John Seward que, de visita à Transilvânia, reconhecera dois olhos que o encararam como sendo os do Conde num corpo diferente, desencadeia uma série de acontecimentos que colocam no encalço do Conde Seward e Van Helsing, surpreendido em Amsterdão com este novo despertar.
Já em Londres, Sherlock Holmes, o Inspector Lestrade, o Dr. Watson, Van Helsing e o Dr. John Seward encontram-se no Mausoléu da família Saville onde Lord Robert Saville ainda não repousava em paz, escravo da vontade dominadora de Drácula sequioso de vingança.
Considerei interessante este encontro de personagens brilhantes como é o caso de Van Helsing e de Holmes que num primeiro relance se reconhecem sem se conhecerem.

“A Aventura do Assassino Fingido” é o mais curto dos três contos e explora o sentimento de posse de um irmão face a uma irmã, noiva de um jovem que procura Watson na ausência, julgava-se definitiva de Holmes.
A aptidão de Holmes para a utilização do disfarce perfeito é bem evidente nesta narrativa, provocando a desconfiança de Watson e Lestrade que encaram o homem gorducho em que Holmes se convertera como o principal suspeito da morte de Rose Constable. Watson escrevera ao amigo relatando os contornos do caso que Copper lhe expusera e Sherlock Holmes, embora retirado do ofício que o celebrizara, surge disfarçado para melhor apurar os factos nebulosos descritos por Watson.
Este último escrito com que a obra de Rodolfo Martinez finda, transmite-nos a agradável sensação de Holmes nunca deixará de investigar os casos mais difíceis e que Watson e Lestrade continuarão a acompanhá-lo no deslindar dos mais complexos enigmas, tão imortais como Sherlock Holmes.

domingo, abril 06, 2008

"Os Milagres do Anticristo" de Selma Lagerlöf

Lagerlöf, Selma, Os Milagres do Anticristo (Antikrists Mirakler), Cavalo de Ferro, Tradução de Liliete Martins, 2008.

“Os Milagres do Anticristo” de Selma Lagerlöf principia com a menção a uma lenda siciliana que profetiza o seguinte: Quando aparecer o anticristo, ele terá exactamente a mesma aparência que Cristo. Nessa época, haverá muita fome e o anticristo irá de terra em terra, dando pão aos pobres e ganhará, assim, muitos simpatizantes.
Baseando-se neste antigo auspício siciliano, Lagerlöf erige uma história em que a troca de uma imagem religiosa sagrada por uma cópia desde então adorada como se da original se tratasse, e o advento do socialismo na pobre e cinzenta Sicília, se confundem num único propósito: A salvação da pequena cidade de Diamante.

Os milagres sucedem-se quando Donna Micaela verbaliza a sua intenção de construir um caminho-de-ferro que abra a minúscula e escondida Diamante ao mundo. Acontecimentos estranhos e extraordinários, sem explicação racional decorrem na acanhada Diamante e o povo atribui a sobrenaturalidade dos eventos perturbadores a que assistem ao Menino Jesus representado na Igreja de San Pasquale, pronto a receber as contribuições dos crentes para o caminho-de-ferro de Donna Micaela.

E o povo pede o fim dos seus males. Pede pela prosperidade da Diamante abandonada pelos poderosos de Roma. Cada um pede pelo seu sucesso pessoal. Pela sua sobrevivência. Pede a terra ao céu.

Entretanto, uma inovadora corrente política, o socialismo, cujos ideais se aproximam dos defendidos pelo cristianismo puro, espalha uma boa nova por toda a desventurada Sicília colhendo alguns apoios mas sendo esmagado pelo poder instituído ao qual estava ligado um cristianismo distante da imaculabilidade inicial.
O socialismo promete a salvação do sofrimento através da luta, da revolução. Só por meio do esmagamento das classes superiores, de um novo começo pela raiz seria possível a construção de uma sociedade igualitária.

E o ambíguo Etna observa, quieto na sua mudez cónica, sempre vigilante ante a imensidão daquela terra árida que se espraiava em todo o seu redor. Entre a terra e o céu.

A convicção na genuinidade da imagem do Menino Jesus e do seu poder milagreiro incrementa a fé da população de Diamante no seu ideal de comunhão com o divino. O Menino Jesus demonstrava o seu domínio todos os dias e o povo sentia as suas necessidades supridas pelo seu redentor. A alternativa não era acolhida com agrado pois agradados já os habitantes de Diamante se encontravam.

Quando acidentalmente se descobre que a imagem adorada possuía uma inscrição que dizia: O meu Reino pertence apenas a este mundo, o povo desperta para a fraude que alimentara. É o momento da revelação. Tudo se justificava com a coincidência, o poder de sugestão, a vontade humana.

Diamante pedira sempre pela concretização material de algum sucesso colectivo ou pessoal, nunca suplicara pela conservação da pureza das almas, pela sua incorruptibilidade. E o verdadeiro cristianismo pressupõe o pensamento direccionado para o diáfano, o etéreo, o invisível, para as coisas do céu. A adoração daquela falsa imagem significou apenas a manutenção de bens e sonhos deste mundo.

A confiança num ícone no qual se deposita toda a fé e que nos pede paciência, perseverança na espera de um milagre ou o seguimento de uma doutrina política, guiado por líderes dominadores de palavra acesa (como uma padre no púlpito), incendiando multidões e instando-as a tomarem o futuro nas suas mãos, eis a possibilidade de escolha que Lagerlöf nos apresenta.

O anticristo não é o anjo caído subversor da crença original, mas sobretudo a alternativa à ordem instituída, o incentivador do livre-pensamento, o libertador das amarras que prendiam o povo ao pré-determinado. O anticristo é a novidade seja ela qual for.
O lirismo dos primeiros tempos do socialismo está presente nesta obra mas com uma subtileza ímpar de quem não pretende impor, mas expor a ideia de que era possível ao ser-humano escolher um caminho próprio. Um caminho terreno. O céu podia esperar.