domingo, fevereiro 24, 2008

"O Segredo de Shakespeare" de Jennifer Lee Carrell

Carrell, Jennifer Lee, O Segredo de Shakespeare (Interred with their Bones), Círculo de Leitores, Tradução de Ana Duarte, 2007.

Para além das sempre controversas questões relacionadas com a identidade de William Shakespeare discutidas nesta obra, “O Segredo de Shakespeare” de Jennifer Lee Carrell trata também a possibilidade de existência de uma obra perdida do dramaturgo inglês, “Cardennio”, implicando a sua busca no que é uma autêntica caça a um tesouro literário cobiçado por uma rede de personagens cujas motivações variam entre a recriação das mortes das personagens de Shakespeare com o intuito de tornar a ficção realidade para elevação máxima do génio do dramaturgo (e meio de derrubar os que se opõem a esse propósito), e a simples investigação que almeja a descoberta de uma peça há muito desaparecida de forma a incluí-la como relíquia no espólio existente do autor.
Kate é Directora de Produção do Globe em Londres e investigadora do lado obscuro das obras de Shakespeare. Quando é procurada por Roz, uma amiga que não via há muito e com quem tivera uma amizade turbulenta, tudo se altera na sua vida até então tranquila. Roz tem em sua posse uma série de pistas que indiciam a descoberta de um segredo enterrado há séculos e que colocam em causa a identidade de Shakespeare assim como podem trazer à luz do dia uma obra oculta do autor.
A morte de Roz e o incêndio inesperado do Globe são os acontecimentos que despoletam a caça ao tesouro desencadeada por Kate coadjuvada por Sir Henry primeiro, um actor britânico em fim de carreira consagrado e expedito, e por Ben mais tarde, suposto sobrinho de Roz munido dos meios necessários para concretizar os intentos de Kate.
De Londres a Washington e a Valladolid, este é um livro com cenas em vários palcos auscultados de perto pelo Inspector Sinclair, figura omnipresente sempre no encalço de Kate, a principal suspeita dos assassinatos que vão ocorrendo. Simultaneamente frenético e erudito, revela-nos todas as dúvidas que pairam sobre a comunidade académica no que respeita à verdadeira identidade de um dos génios maiores da literatura mundial (seria Shakespeare um reputado membro da nobreza com acesso fácil a uma educação completa ou o Shakespeare de Strattford de origens humildes?) e guia-nos numa aventura em que ninguém é o que verdadeiramente parece e em que fidelidades e traições emergem nos momentos mais inesperados culminando no fantástico achado numa mina de Tombstone.

domingo, fevereiro 10, 2008

"O Amor Infinito de Pedro e Inês" de Luís Rosa

Rosa, Luís, O Amor Infinito de Pedro e Inês, Editorial Presença, 2005.

O reinado de D. Pedro I foi inegavelmente marcado pelos acontecimentos que precederam a sua subida ao trono e o autor de “O Amor Infinito de Pedro e Inês”, Luís Rosa, demonstra-o ao contar a história do amor impossível que D. Pedro vivera enquanto Infante de Portugal e que ultrapassara as fronteiras do tempo e da morte, cimentado, fortalecido com a justiça que Pedro, já Rei de Portugal, levava a todos os cantos do reino, eternamente sedento do sangue já derramado dos sequazes de Inês de Castro.
Pedro sempre se submetera sem contestação às razões de estado que o obrigavam a contrair matrimónio com donas da mais alta nobreza castelhana, era o instinto de preservação de um país encolhido ante o poderio de Castela que o ditava e Pedro acolhia as decisões do distante pai, D. Afonso IV, com a resignação necessária e o sentido do dever.
D. Constança Manuel, a enjeitada de Castela, chega a Portugal trazendo na sua comitiva uma jovem aia de dezasseis anos e sua grande amiga, D. Inês de Castro. Pedro trá-la no coração desde o primeiro momento e Inês confessa a sua preocupação ante as investidas do olhar do Infante à confidente Constança que morreria pouco depois de dar à luz o herdeiro tão aguardado, o débil D. Fernando. Inês havia sido afastada da corte entretanto como forma de conter o ímpeto do Infante, no entanto, após a morte da mulher, Pedro cavalga para Castela em busca do seu amor nunca esquecido e estabelece-se com Inês no Paço da Atouguia. O Rei Afonso IV não controla já as decisões do filho e influenciado pelos conselheiros mais próximos, assina a sentença de morte de D. Inês de Castro, suposta ameaça à paz que Portugal cultivava com o vizinho sempre ameaçador, Castela.
A morte de Inês desencadeia uma revolta armada de um Infante contra o Rei, acontecimento sem precedentes na História de Portugal. Alguns meses após o seu início, assina-se um acordo de paz, mas no seu leito de morte, D. Afonso IV, conhecedor da índole do filho, aconselha os responsáveis pela morte de Inês a fugirem para Castela porque Pedro vingar-se-ia assim que surgisse a oportunidade. Fogem mas, Pedro de Portugal chega a acordo com Pedro de Castela, seu primo, e fazem uma troca de procurados em ambos os países sendo que é desta forma que dois dos três carrascos de Inês são trazidos para Portugal e lhes é aplicada a mais dura das penas que valeu a D. Pedro fama de justiceiro, mas também de louco e cruel.
Acompanhamos na parte final da obra o principal objectivo do Rei após a morte de Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves: a construção do túmulo de Inês, coroada Rainha de Portugal. E esse é o grande mistério que perdura até hoje, ter-se-á consumado o casamento de Pedro e Inês como ele tão resolutamente afirmava? A verdade é que os túmulos magnificamente esculpidos por Bartolomeu de Molianos em Alcobaça são os de Pedro e Inês, juntos para a eternidade.

Uma personagem fabulosa que Luís Rosa introduz no livro é a do Bobo Clarimundo. Ele é o Sábio que aconselha o Príncipe, que lhe indica o caminho, que lhe transmite com o olhar que Inês não mais existe. Nenhum “notável” ou nobre da corte é o braço direito de Pedro, apenas o simples Bobo Clarimundo sempre o acompanha e é o único capaz de conter o incontido D. Pedro, de iluminar o seu pensamento. O próprio nome do Bobo é indiciador da sua sabedoria, da sua abertura de espírito, da sua alma grande.

Fazem falta Bobos Clarimundos neste desfalecido Reino de Portugal.

domingo, fevereiro 03, 2008

“Akhenaton, o Rei Herege” de Naguib Mahfouz

Mahfouz, Naguib, Akhenaton, o Rei Herege (Al-A’ish Fi-L-Haqiqa), O Quinto Selo Edições, Tradução de Adel A. Jabbar Mohammed Daroga, 2007.

Miriamon visita, na companhia de seu pai, a decrépita cidade de Akhetaton, fundada pelo Faraó que se atrevera a desafiar a tradição milenar politeísta implementada no Egipto, Akhenaton. A visão de abandono que a ainda recentemente esplendorosa urbe agora transmite, impressiona vivamente o jovem Miriamon, sobretudo porque algures nos escombros da antiga glória ao deus único, edificada pelo que ficou conhecido como O Herege, vive uma mulher atormentada pela solidão num palácio dourado de recordações dolorosas, prisioneira da nova ordem egípcia protagonizada pelos tutores de Tutankhamon e cativa do seu próprio desespero privado. Ela é Nefertiri e Miriamon busca a verdade da sua História conjunta com Akhenaton através de 14 audiências a que temos pleno acesso com as figuras que mais próximas foram do Rei sendo que, a última das conversas é tida com Nefertiri.
Akhenaton é descrito por todos os entrevistados como uma figura fisicamente débil, disforme até, e este é um ponto em relação ao qual todas as opiniões convergem. No entanto, os seus detractores vão mais longe e “transformam-no” num monstro indigno de segurar o ceptro dos faraós, ora porque não acorre ao harém herdado de seu pai, Amenhotep III, gerando rumores de uma estranha relação além maternal com sua mãe, a rainha Tiy, ora porque adoptara uma prática religiosa diversa da dos seus antepassados, fazendo emergir a figura enigmática do deus único, defensor da paz, do amor, da não punição, da tolerância.
Dir-se-ia que o ponto de viragem na vida de Akhenaton foi a morte do seu irmão Tutmés. A partir do momento em que se apercebeu da inevitabilidade da morte, Akhenaton começa a crer na possibilidade de, praticando o bem, amando o próximo, perdoando o incauto, torná-la uma miragem distante, porque um individuo ou um povo que seguissem os ensinamentos que o Herege ouvira do seu deus numa noite de revelação, tornar-se-ia imortal. Muito depois da partida dos nossos corpos, converter-nos-íamos numa brisa de sussurros, quiçá reveladora para um outro ser com sede de verdade como Akhenaton na noite em que viu a luz.
Nefertiri é retratada por alguns dos intervenientes do périplo realizado por Miriamon como uma oportunista que fingira crer no deus único do Rei para criar um falso laço de ligação profunda entre ambos. A verdade que nos conta na primeira pessoa, contudo, é indicadora de uma inexplicável mas real crença na crença de Akhenaton, de um desejo de conhecimento e aproximação do ainda herdeiro do trono na altura, de um casamento inicialmente de atracção espiritual e com o decorrer do tempo, metamorfoseado em Amor absoluto. As palavras finais são de Nefertiri, Miriamon termina o seu percurso de descoberta no local em que o iniciara, em Akhetaton, o túmulo em que permanecia emparedada viva a rainha pela qual o Rei Herege abdicara do harém porque, segundo o próprio, era monogâmico nas relações como na religião.
Fica-me a imagem de um Rei desafiador porque perturbado pela ideia da morte de um irmão muito querido, mas também corajoso porque manteve o seu ideal quando todos o abandonaram. E morreu só, só o seu deus velou por si.