domingo, março 29, 2009

"O Quadro" de Nina Schuyler

Schuyler, Nina, O Quadro (The Painting), Bizâncio, Tradução de Maria do Carmo Figueira, 2006.

“O Quadro” de Nina Schuyler é não só a história de quatro vidas que se cruzam em pontos distantes do mundo no ano de 1870 sem que desse elo que os une tenham consciência, como também a história do cenário de transformações sociais e culturais inerentes ao período Meiji no Japão e à guerra franco-prussiana em França.

A ligação entre as quatro personagens sucede quando Ayoshi, a mulher de Hayashi, um proeminente oleiro e comerciante japonês com uma deformidade nos pés causada por um fogo que matara a sua família quando criança, coloca, secretamente, um quadro por si pintado na caixa de artefactos a enviar para venda em França. Esse quadro, um entre vários que Ayoshi pintara para eternizar o seu amor perdido por Urashi, um Ainu de quem engravidara antes de se casar com Hayashi, revela a intimidade dos amantes e imortaliza esse amor intocável representado de forma comovente e hipnotizante. Quando Jorgen, um mutilado dinamarquês da guerra franco-prussiana e armazenista numa empresa que se dedica ao comércio de produtos raros, abre a caixa e se depara com o quadro que não consta da lista de artigos enviados, apodera-se dele para mais tarde o vender. Natalia, a meia-irmã do dono da empresa, entra no mundo escuro de Jorgen com a sua determinação em salvar a França e alista-se nas fileiras do exército francês, almejando tornar-se uma exímia atiradora. A perda de um irmão ferido na guerra aproxima-a desse lado negro a que Jorgen não consegue fugir desde que fugira da mulher que amara e engravidara na Dinamarca.

É com relutância que Ayoshi aceita inicialmente a presença da sua “voz da consciência”, Sato, um velho amigo de infância ocidentalizado que conhece toda a extensão do seu sofrimento, e mais tarde a protecção que o marido concede a um monge budista que escapara a um massacre do exército na montanha. Mas é este monge jovem que nunca conhecera a vida fora do reduto do mosteiro que permite a Ayoshi reencontrar um sentido para a sua vida suspensa desde que uma curandeira lhe “arrancara as entranhas”.
Perpetuar a imagem do seu amado era a sua missão de vida mas, quando o monge Enri rasga um dos quadros em que figuram os amantes e ritualiza essa morte simbólica num cântico fúnebre budista, Ayoshi agradece-lhe a libertação mas espera o impossível do monge cujo destino não se entrelaçaria ao seu.
A proibição de realização de cerimónias budistas é quebrada pelo monge e todos partem, menos Hayashi que aguarda ser, finalmente, consumido pelo fogo purificador que o incapacitara há tantos anos.

Jorgen tenta convencer Natalia a não partir para a frente de combate, mas a sua vontade férrea supera qualquer súplica, mesmo a de alguém que perdera uma perna nessa guerra a que ela tanto desejava aderir. E como podia ele censurá-la? O seu maior desejo era comprar uma prótese e voltar para a frente de batalha. O custo da perna artificial obrigava-o a vender o quadro a que tanto se afeiçoara. De cada vez que o observava, parecia encontrar novos pormenores, quase como se o quadro se modificasse à medida que o próprio Jorgen se transformava por influência de Natalia. Ele já não era indiferente à vida.
Quando vende o quadro, fá-lo com a esperança de a nova perna lhe permitir ir ao encontro de Natalia e acorre ao consultório do médico inglês que entretanto, havia sido preso como espião.
Perante a impossibilidade de marchar rumo a Natalia, Jorgen recupera o quadro gastando todas as suas economias e sobe para um balão a gás de carvão cheio de correspondência militar e pessoal. Toda Paris cerca o balão, a esperança dos suplicantes e a sua própria de encontrar Natalia sobrevoando os céus, parece impelir o engenho a encontrar o caminho do amor.

Este é um livro de afectos superiores e de como os recomeços são sempre realizáveis. Indispensável.

domingo, março 22, 2009

"História da Beleza" de Georges Vigarello

Vigarello, Georges, História da Beleza (Histoire de la Beauté), Teorema, Tradução de Paula Reis, 2005.

Georges Vigarello sistematiza neste estudo histórico/sociológico a evolução da ideia de beleza da Renascença à actualidade detendo-se sobretudo na noção de beleza feminina, explorada ao longo dos séculos de forma tão diversa tanto pela palavra escrita como pelas artes pictóricas e oscilando ao sabor de gostos e contextos sociais/históricos díspares.

É curiosa a hierarquização do corpo na descrição do modelo de beleza no século XVI, a compartimentação das partes que constituem o todo feminino e a omissão dessa mesma soma, remetendo a delineação ao essencial, ou seja, a uma beleza revelada no “triunfo do alto”. A pesagem do belo efectuava-se por meio da avaliação da qualidade do busto e dos olhos, assim como através do temperamento e moralidade que esses traços físicos escondiam. A mulher era a maneira, o ar, a graça, tudo reunido num ser uno radiante, criado por Deus para ser exemplo de idealidade.

No século XVII vingam as denominadas beleza expressiva e beleza experimentada. Pede-se uma beleza mais natural, mais harmoniosa, mais plena de significado, mais individualizada mas em simultâneo mais atreita à escolha do penteado ou da cor do rosto. É o inicio da correcção do volátil conceito. A modificação, o retoque é possível

O século XIX apresenta-nos uma mulher mais activa, mais capaz e determinada a mostrar-se. Surge igualmente um mercado do embelezamento, ou seja, técnicas e meios de corrigir formas, adiar o aparecimento de incómodos físicos, artifícios que protelassem a “decadência”.

No século XX as formas femininas tendem a adelgaçar-se, a aproximar-se cada vez mais das figuras das “stars” do cinema que são exemplo estético e intelectual. Mulheres, contudo, ainda dependentes no inicio do século XX dos seus homens. Mas é uma tendência que se dilui e se consome na certeza da independência da mulher no período pós segunda guerra mundial. Ela é o que quer ser. A moda serve o seu propósito de se sentir bem na sua pele, bem como os mecanismos de correcção colocados ao seu dispor. O consumo proporciona a receita para uma manutenção de um ideal. O cânone colectivo esboroa-se. Nasce a amálgama de inclinações em que hoje nos situamos.

A leitura deste livro confirma e consolida a percepção histórica e sociológica que tínhamos deste longo caminho de exigências internas e externas a que as mulheres estiveram sujeitas desde a renascença até à presente data. Compila e dinamiza novos dados através de fontes tais como as primeiras revistas femininas surgidas no século XIX e as primeiras cartas de leitoras dessas publicações, a voz das mulheres ouvida pela primeira vez. Os seus desejos e exigências como melhor forma de conhecer/estudar uma época em que o que elas dizem começa a ser relevante. Nem que seja só para outras mulheres.

domingo, março 15, 2009

"Desconhecidos" de Taichi Yamada

Yamada, Taichi, Desconhecidos (Ljin-Tachi Tono Natsu), Civilização Editora, Tradução de Helena Serrano, 2006.

Hideo vive num Japão contemporâneo impessoal. Descobre que habita um imenso bloco de apartamentos que, durante a noite, se esvazia a ponto de nele só permanecerem duas almas solitárias nessas horas nocturnas: O próprio Hideo e uma mulher atormentada por uma deformidade física chamada Kei.

A vida pessoal de Hideo sofrera recentemente o golpe de um divórcio apetecido e descobria os primeiros passos de um percurso que desenvolveria sozinho. Não esperava importar-se com o facto de um amigo lhe confessar que iria cortejar a sua ex-mulher, pressentindo nessa manifestação uma pequena traição.
No silêncio do condomínio deserto, ele reflecte sobre as implicações que o conhecimento da relação entre o amigo e a mulher com quem estivera casado quase vinte anos teria na amizade de ambos quando ouve alguém bater-lhe à porta. Um gesto tão íntimo e deslocado do contexto de retiro e isolamento que o mausoléu em que estava encerrado simbolizava.
Demasiado ocupado com os pensamentos de ruptura com o círculo de pessoas que lhe eram mais próximas, Hideo enxota da forma mais diplomática possível a mulher que pernoita no prédio tal como ele. Ele compreende que a presença de Kei à sua porta é um pedido de ajuda, um último recurso para sobreviver a mais uma noite de reclusão que se adivinha e, no entanto, egoisticamente, volta-se para si e repele aquela mulher que não conhece de lado nenhum mas cuja súplica no olhar ele não ignora.
Ao fechar a porta, Hideo tem a perfeita noção de que terá cometido um erro e que algo perturbava Kei de forma tão excessiva que lhe ocorre que aquela poderia ser a primeira e última vez que falaria com ela.

A nova vida por que optara deixa-o nostálgico da infância que vivera numa pequena cidade não muito longe da grande cidade. E faz uma incursão a esse local que já quase não reconhece. É confrontado com o seu passado de privação ao encontrar duas pessoas que são a cópia fiel do pai e da mãe mortos num acidente de viação. Reúne-se sucessivamente aos dois (des)conhecidos numa tentativa de retomar a vida interrompida algumas décadas atrás e os três assumem essa convivência como natural até Kei, a quem Hideo pede desculpa pela sua falta de hospitalidade no dia seguinte e com quem desenvolve uma relação amorosa, reparar no seu envelhecimento acelerado de que ele próprio não se consegue aperceber ao olhar para o espelho.

Ao contar a Kei que visita regularmente os pais mortos há mais de trinta anos, esta parece não estranhar a história de fantasmas relatada e parte do princípio que as duas assombrações sugam a vida do filho para se manterem nesta dimensão. Aconselha-o a deixá-los partir, a despedir-se deles para sempre. E assim faz. Contudo, a rapidez com que os traços físicos de Hideo decaem continua e a descoberta de que é vítima de uma vingança sobrenatural sobrevém-lhe.

Esta obra é mais um exemplo da rara criatividade dos japoneses na forma como olham o mundo dos mortos a partir de uma perspectiva pulsante de vida. Um livro de enganos, uma história de fantasmas, de interditos e de palavras não ditas. Uma história de amor entre pais e filhos que ultrapassa a barreira do plausível. E uma história de vidas em potência, de vidas não concretizadas.

domingo, março 08, 2009

"A Festa de Anos" de Panos Karnezis

Karnezis, Panos, A Festa de Anos (The Birthday Party), Bizâncio, Tradução de Irene Guimarães, 2009.

Marco Timoleon é um dos homens mais ricos do mundo.
Todas as suas conquistas ancoravam num inelutável faro para os negócios e numa persistência sobre-humana que o empurrava a tocar resolutamente às portas que encontrava fechadas à sua passagem. Cessava de insistir quando o que almejava já era seu.

É organizada por si uma festa de anos para celebrar o vigésimo quinto aniversário da filha mas, na verdade, esta celebração esconde uma maquinação do milionário para conduzir a filha a uma tomada de posição que vá ao encontro das pretensões do pai. A festa de anos é a desculpa encontrada por Marco para suavizar a decisão que induziria Sofia a tomar.

Contudo, a perspicácia da filha (mesclada com desequilíbrios próprios de quem tivera uma vida familiar marcada pela morte misteriosa e prematura da mãe e pelos acessos de fúria do pai) põe à prova a lendária tenacidade de Marco Timoleon bem como a lealdade do amante e biógrafo do pai.

Ela consegue desnudar a alma de cada um. Só à beira do abismo eles se lhe revelam tal qual são e Sofia bebe a verdade com a sofreguidão dos desesperados.

Esta pobre menina rica e o seu pai poderoso que julga poder esmagar o mundo com o que representa e sobretudo ter absoluto controlo sobre as mulheres da sua vida demonstrando uma crueldade inexplicável para com quem o ama, fez-me vir à memória a história real de Onassis com tudo que teve de glorioso e espantoso, mas também com a denegação daquilo que era mais certo e seguro e precioso na sua vida sendo o exemplo da relação com Maria Callas o mais manifesto.

O estratagema de Timoleon para, mais uma vez, sair vencedor numa querela familiar em que a sua afirmação como o patriarca dominador é posta em causa, fracassa ante o rumo que os acontecimentos no dia da festa de anos na ilha privada de Marco seguem.

A manipulação de pessoas que pratica com a habilidade fácil de alguém que tem como hábito atropelar a vontade do outro, é evidente nesta personagem que Panos Karnezis trabalha com minúcia surpreendente naquilo que é a história de vida de um homem destinado a perder todos aqueles que ama e que num último esforço e rebate de consciência inédito nele, evita a destruição definitiva da sua família. Bem a tempo de viver, finalmente, em paz.

domingo, março 01, 2009

"Amor e Saltos Altos" de Sinéad Moriarty

Moriarty, Sinéad, Amor e Saltos Altos (In My Sister’s Shoes), Mercado de Letras, Tradução Colectiva, 2008.

O livro sobre o qual hoje aqui deixo o meu testemunho, “Amor e Saltos Altos” de Sinéad Moriarty, toca, com uma linguagem ligeira e algum humor, questões pertinentes que se levantam a quem está na faixa dos trinta anos e se vê confrontado com a necessidade de delimitação de prioridades na sua vida.

A perspectiva a que temos acesso é a de uma mulher de precisamente trinta anos, Kate O’Brien, que persegue o seu sonho de se tornar uma profissional dos media londrinos, longe da sua Irlanda natal à qual regressa poucas vezes por ano e por curtos espaços de tempo. Kate prepara-se para finalmente assumir e se instalar no mundo a que sempre aspirara pertencer quando recebe a notícia de foi diagnosticado à irmã mais velha a doença que matara a mãe.
Após inúmeras tentativas para encontrar uma solução que não passasse pela interrupção da sua promissora carreira em Londres, Kate ruma à Irlanda para apoiar a irmã no longo percurso de cura que a aguarda e, acima de tudo, para tomar conta dos sobrinhos gémeos de cinco anos que para uma mulher solteira de trinta anos viciada no trabalho são um completo enigma.

E é esta viagem conjunta de descoberta mútua entre uma mulher que desconhece em absoluto as implicações de ter duas crianças a seu cargo e a naturalidade com que os gémeos mostram o caminho a seguir à tia, que acompanhamos com um misto de curiosidade e ternura esta história simples, produto dos tempos que vivemos.

Não será uma encruzilhada desconhecida de muitos a que Sinéad Moriarty nos apresenta com esta narrativa. Até que ponto vai o espírito de sacrifício de alguém profundamente apegado a uma ambição de carreira bem sucedida? Quais as cedências que estaria alguém nestas circunstâncias disposto a fazer numa situação de crise familiar?

A autora confronta-nos com a realidade profissional a que estamos “presos” e com aquela outra realidade bem diversa a que a maior parte se dedica de forma abnegada encarando-a como uma libertação… Trabalhosa, é certo, mas um reencontro de nós connosco próprios: A maternidade.
Uma obra que desafia o leitor pela actualidade dos temas nela contidos e tratados de forma acessível, conduzindo-nos a extremos de humor: Tanto nos deparamos com a solenidade dos dramas como com a descontracção das formas de tratamento usados somente com aqueles que nos são mais próximos.