domingo, novembro 30, 2008

"Diego & Frida" de J.M.G. Le Clézio

Le Clézio, J. M. G., Diego & Frida (Diego et Frida), Relógio D’Água, Tradução de Manuel Alberto, 1994.

Um elefante e uma pomba.

Frida Kahlo, a jovem sofredora mas decidida, delicada, resolvida a trepar árvores para gritar o seu amor incondicional por Diego.

E Diego de Rivera, o experiente homem do mundo, ogre de mulheres, coleccionador itinerante de rostos e corpos, gigante corpulento que arrebata o olhar perscrutador e rígido de Frida.

Antes de começar verdadeiramente a história de vida de Diego & Frida, deparamo-nos com um Diego ávido de aventura e da descoberta dos locais “sagrados” observados e percorridos pelos seus mestres de sempre. Parte para Paris onde se deslumbra com o ambiente de fervilhante revolução artística, conhece e priva com os grandes obreiros dessa reforma criativa, vive, pinta, ama e perde o seu único filho na buliçosa e gélida cidade onde pululam ideias e génios mas não o conforto que poderia ter salvo a criança cujo fim o deixará eternamente ferido e com uma triste aversão pela cidade da escuridão.

O regresso ao México traz-lhe um projecto de frescos no anfiteatro de uma escola, ideais políticos que espera representar na sua pintura e uma nova mulher, Lupe Marín.

Aliás, o compromisso de Diego de Rivera com a pintura é de cariz interventivo e nunca cessará de o ser mesmo quando põe um ponto final na sua filiação no partido comunista. Diego é livre, é um selvagem na medida em que não suporta que imponham restrições ao seu livre pensamento, à sua liberdade artística, não aprecia os limites, as barreiras. Para ele tudo é possível, a sua confiança ilimitada e vive de acordo com essa crença linear e segura em si próprio.

Já o compromisso de Diego de Rivera com as mulheres da sua vida, não terá sido tão imaculado…

Quando uma adolescente curiosa se aproxima do local onde Diego pinta os frescos da Preparatoria, Lupe Marín sente a incomodidade na pele. Aquele encontro que não chega a ser encontro, será o primeiro de uma vida de encontros e desencontros entre Frida Kahlo e Diego de Rivera. Entre a pomba e o elefante.

Algum tempo depois desse primeiro impacto de vida, Frida sofre um acidente que lhe transforma o corpo, a alma, a vida para sempre. Um impacto de morte. Tinha um destino a cumprir, uma missão, mesmo que tal significasse ficar encarcerada num corpo mutilado e presa a uma forma de vida que não desejava mas que abraça com coragem. Tem de aprender a viver todos os dias com a dor física. Porque Diego a espera. Porque toda a vida esperou por Diego.

É o confronto de Frida com Frida, ferida de morte, sobrevive através de Diego, da pintura que é o cordão umbilical que a liga ao mundo exterior, a Diego, ao filho que tanto desejara e não conseguira conceber. A dor. Dor de alma por se olhar ao espelho e tudo lhe parecer bem e as entranhas, no entanto, a despedaçarem por dentro.

Frida una não existe, Frida é diferente e outra em cada auto-retrato pintado, em cada cenário que cria em cada vivência que abraça.
E também Diego se auto recria em vários momentos, qual Fénix renascida após a aventura americana em que deixa a marca dos ideais comunistas nas grandes metrópoles americanas, provocando a ira dos magnatas do núcleo capitalista mundial.
É a provocação maior a que poderia almejar e no regresso ao México é herói público, aclamado pelo povo e Frida a seu lado uma heroína privada, saudada pelo seu sofrimento.

Um livro que vai para além da mera biografia, J. M. G. Le Clézio interpreta, investiga, cruza informação e decifra o que Frida e Diego escreveram sobre a sua vida em comum e os seus tormentos privados, romanceia uma história que atravessou a História e fez História.

domingo, novembro 23, 2008

"O Pregador Atormentado" de Thomas Hardy

Hardy, Thomas, O Pregador Atormentado (The Distracted Preacher), Quasi, Tradução de Vasco Gato, 2008.

Um jovem pregador metodista, Richard Stockdale, chega à pequena aldeia de Nether-Moynton para guiar o rebanho de fiéis provisoriamente, e logo compreende que ninguém havia assegurado a questão do alojamento do novo pastor, indiferentes que estavam à sua chegada.
A única casa com um quarto disponível era a da jovem viúva Lizzy Newberry que nela vivia com a mãe e uma criada.

E é nessa estada em casa de Lizzy que Stockdale se começa a aperceber das estranhas e inconstantes rotinas da Senhora Newberry, atento que estava às suas movimentações graças a um crescente interesse pela sua pessoa, assim como desperta para o envolvimento da aldeia numa forma de subsistência ilícita na qual Lizzy está implicada.

As incursões nocturnas de Lizzy preocupam-no não só porque a integridade física da mulher que ama pode estar em causa, mas também porque pondera os hábitos peculiares da viúva como um entrave, uma impossibilidade para esta se tornar mulher de um pregador metodista, neste caso, sua mulher.
As responsabilidades de uma mulher na posição em que Stockdale a projecta, não seriam compatíveis com a vida noctívaga, por razões de sobrevivência pessoal é certo, em que Lizzy se encontra.
Mas o apelo da subsistência não é o único a pesar no coração dividido da viúva Newberry. A vida aventurosa que leva também a requesta a uma continuidade ilógica e perante a insistência do pastor na desistência do modo de vida escolhido, a heroína deste conto aventura-se a permanecer sozinha, a atravessar os campos inundados de lua em amenas madrugadas de verão, a liderar homens com o casaco do marido falecido por cima do vestido, a fugir intrepidamente do fiscal Latimer que persegue os que roubam Sua Majestade o Rei.
Lizzy abdica do Amor e Stockdale na encruzilhada da emoção e do dever, parte de Nether-Moynton rumo a outra congregação, a uma existência sem sobressaltos nem atribulações, longe da mulher amada, mas seguro da impraticabilidade daquela união naquelas circunstâncias, reprovando a obstinação daquela mulher independente.

O fim da história, um fim ideal, “praticamente de rigueur numa revista inglesa ao tempo em que foi escrito” como afirma Hardy muitos anos mais tarde, sofre em 1912 um acrescento final, uma nota do autor, em que explica o porquê dessa escolha e sem qualquer contemplação, afirma que, na verdade, o desfecho da história de Lizzy e Stockdale seria fiel ao temperamento libertário da viúva, sem salpicos de exemplaridade mas unicamente transbordante da coragem de Lizzy em assumir que a noção de perfeição dos outros nem sempre coincide com os nossos sonhos.

sábado, novembro 22, 2008

"Rua do Ácido Sulfúrico - Patrões e Operários: Um olhar sobre a CUF do Barreiro" de Jorge Morais

Morais, Jorge, Rua do Ácido Sulfúrico – Patrões e Operários: Um olhar sobre a CUF do Barreiro, Bizâncio, 2008.

Uma cidade dentro de uma cidade. Eis o que a CUF, a Companhia União Fabril, foi no Barreiro durante décadas de existência e convivência com o pólo citadino ali próximo.
Hoje, de regresso à CUF, restam “escombros e silêncio”. O que sobreviveu do movimento de gente e máquinas que dava vida a um dos maiores e mais significativos complexos industriais do Portugal da primeira metade e parte da segunda metade do século XX? O autor observa a extensão de “… vestígios desengonçados de estruturas metálicas, tubagens esventradas, caldeiras, fornos e carris roídos pela ferrugem, esqueletos machucados de armazéns, muretes em decomposição, portões entaipados por madeira podre. A erva cresceu em ramagens de mato e finca os seus pés no território deste deserto, reclamando espaço na desolação. Um vento absurdo silva por entre pilares esfiapados até à medula, tectos que sucumbem, frontispícios desdentados, mecanismos calcinados onde bamboleiam com sarcasmo teias de aranha. O céu escancara-se para aplicar uma luz cruel, cegante, sobre planaltos de cinzas, resíduos de um clamor que se extinguiu. Apenas restos de lancis sugerem que aqui houve ruas, vozes, gente. Pontuando os destroços, chaminés agonizam com a dignidade de gigantes lacónicos.”.

“Rua do Ácido Sulfúrico” é um estudo de vivo interesse sobre o percurso da CUF desde os seus primórdios (1907) até ao seu fim (1974).
Para além da ênfase dada ao trabalho meritório de Alfredo da Silva, o fundador, e seus descendentes, somos igualmente arrebatados pela força da maioria, daqueles que faziam da CUF um grupo de empresas com níveis de produtividade extraordinários, pautadas por um prestígio imaculado e por um conceito de cidade de trabalho que transformou a Companhia União Fabril no exemplo mais acabado de empresa que provia às necessidades não só laborais mas também pessoais dos seus trabalhadores.

Muitos viviam com as suas famílias no interior do complexo industrial, abasteciam-se na mercearia que lhes disponibilizava produtos mais baratos que no exterior, tinham uma assistência médica invejável, faziam parte do grupo cultural e recreativo, praticavam as mais diversas modalidades desportivas, sentiam-se parte de uma organização que reconhecia o valor do trabalho e fazia questão de o premiar devidamente.

Jorge Morais relata-nos o trajecto ascendente da CUF e a sua queda, mostra o legado positivo que permaneceu, sobretudo como modelo de como uma estrutura empresarial deve funcionar não só em termos organizacionais mas sobretudo ao nível do relacionamento com a massa trabalhadora.
O autor também realça o impacto negativo que a industrialização do Barreiro trouxe, nomeadamente, a qualidade do ar que se respirava nos tempos de pleno funcionamento da CUF não seria, evidentemente, a melhor. O progresso sempre teve um preço.

Trata-se de um capítulo pouco explorado e, consequentemente, pouco conhecido da nossa história do século XX que esta “Rua do Ácido Sulfúrico” vem enriquecer com imagens de progresso, engenho, trabalho que nada mais são que exemplares para os herdeiros dessa memória: Todos nós. Uma obra essencial.

domingo, novembro 16, 2008

"A Cura de Schopenhauer" de Irvin D. Yalom

Yalom, Irvin D., A Cura de Schopenhauer (The Schopenhauer Cure), Saída de Emergência, Tradução de Carlos Romão, 2006.

Julius Hertzfeld é terapeuta e é-lhe revelada a inesperada notícia da sua morte iminente.

Esta é a história da forma como Julius partilha essa revelação com um grupo de terapia que acompanha e, sobretudo, como inclui nesse conjunto de pessoas por si “escolhidas” um antigo paciente, tido como um fracasso marcante na carreira de Julius.
A reabertura do dossier de Philip Slate traz à memória de Julius uma patologia que não fora possível debelar e ocorre-lhe que uma das suas últimas missões enquanto Ser-Humano seria procurar Philip e tentar compreender o que falhara e se recuperara.

Encontra um homem diferente graças ao seguimento de uma filosofia que transpusera para a sua vida quotidiana, uma auto-prescrição de pensamentos e normas provenientes dos escritos de Arthur Schopenhauer.

Philip estava curado do problema que o afligira vinte anos antes contudo, o facto de reger a sua vida em torno de um conjunto de ideias rígidas, anti-sociais e deterministas, transformara o seu mundo de descartável (visto as relações humanas que encetava serem fugazes e, consequentemente, sem significado profundo, tudo era substituível e procedia sem remorso) em insular. Ele isolara-se conscientemente da massa humana imprópria, convertera-se num Ser hibernante, preso numa cela de ideais dourados, refugiado da influência nefasta que o contacto humano lhe proporcionara. Philip rompe com a vida.

Julius sente que é seu dever resgatar alguém que em vida não vive e que ele não conseguira ajudar a encontrar um rumo. É quase como se sabendo da sua ausência para breve e para sempre, pretendesse restaurar a alma enfraquecida de Philip, lhe pegasse na mão para ocupar o lugar que ele, Julius, deixaria vago no teatro do mundo.

A frieza das doutrinas de Schopenhauer apodera-se da semi-vida de Philip, contribuindo para a fruição que parecia retirar da absoluta solidão em que sustinha a sua existência. E é então que, gradualmente, a partilha de experiências com o grupo, o exorcizar de todo o mal que o apoquentara e que via reflectido nas mágoas dos “outros”, dos seus companheiros de viagem, relegam-no para um estado de entendimento, de comiseração, de compaixão pela humanidade ali representada e por si próprio como elemento constituinte desse universo humano.

A cura de Schopenhauer facilitara-lhe a fuga de um abismo mas conduzira-o a outro, à denegação da sua condição humana. E o ressurgir de Philip como homem completo faz-se por meio do choro, acto humano por excelência.

sábado, novembro 08, 2008

"A Fé de um Escritor" de Joyce Carol Oates

Oates, Joyce Carol, A Fé de um Escritor (The Faith of a Writer), Casa das Letras, Tradução de Maria João Lourenço, 2008.

“A Fé de um Escritor” é uma compilação de doze ensaios e uma entrevista de cariz intimista publicados originalmente em revistas e jornais da especialidade e através dos quais acedemos a reflexões sobre a actividade da escrita na perspectiva de quem escreve (Joyce Carol Oates como escritora) e de quem lê (Joyce Carol Oates como leitora voraz).

Conhecemos na primeira pessoa os hábitos da escritora e da leitora. O antes, o durante e o após a “fúria” criativa enquanto escritora e a absorção do furor criativo de outros autores enquanto leitora; a transformação que o acto da escrita provoca no sujeito que escreve e a metamorfose operada no leitor quando se propõe debruçar-se sobre uma determinada obra; a forma como o espaço físico condiciona a postura do autor e do leitor; a predisposição do autor em determinados momentos para juntar todos os pequenos papéis que foi acumulando nos bolsos à medida que as ideias brotavam e que após uma longa caminhada origina aquilo que designamos por obra, um todo coeso produto de muitas e aturadas leituras, muitas e prolongadas considerações íntimas, muitas e forçosas vivências, muita observação aparentemente vazia de sentido, muitas e profundas influências, rastos deixados na alma, no coração da escritora/leitora.

Joyce Carol Oates, autora consagrada, presta homenagem às suas autoridades literárias, dedica inúmeras páginas aos seus “guias” enquanto escritora metódica e leitora compulsiva, povoa os escritos de “A Fé de um Escritor” de autores fabulosos e obras eminentes que condicionaram a sua existência enquanto escritora/leitora.
Fragmentos desses livros memoráveis, sejam romances ou poemas, são perpetuados no seu como forma de aniquilar o esquecimento, de louvar a intensidade do acto de ler porque só assim nasce o verdadeiro escritor (para quem tem essa pretensão, naturalmente… Quanto aos que não aspiram a tal patamar, subsiste sempre a delícia, o prazer, o abandono a essa espécie de fé inabalável pelo livro).

Joyce Carol Oates reverencia os mestres que a antecederam e os mestres seus contemporâneos, todos os que lhe apontaram o caminho quando ainda não tinha consciência de que esse trilho, essa opção era uma realidade a seguir ou a rejeitar. É numa perspectiva de amor pelos livros e seus autores que Oates nos apresenta uma panóplia das mais marcantes forças literárias da sua vida.

A voz franca, de uma honestidade cristalina e sábia de Joyce Carol Oates é motivo suficiente para ler, degustar os ensaios agora compilados neste volume que evidencia com simplicidade e mestria que a actividade literária, a vida e a técnica são partilhados por escritor e por leitor. Sim, nós leitores desenvolvemos uma actividade literária em muitos casos intensa.

Este é um livro indispensável para quem lê como quem respira, para quem venera a leitura e os livros como se de um acto e um objecto de fé se tratassem.