domingo, fevereiro 22, 2009

"Rapariga com Brinco de Pérola" de Tracy Chevalier

Chevalier, Tracy, Rapariga com Brinco de Pérola (Girl With a Pearl Earring), Quetzal, Tradução de Ana Falcão Bastos, 2008.

Johannes Vermeer e a mulher Catharina procuram uma criada. Sabendo o notável pintor da tragédia que se havia abatido sobre a família de um pobre pintor de azulejos que ficara recentemente cego e, consequentemente, impossibilitado de trabalhar, dirige-se na companhia de Catharina a casa deste para avaliarem de perto Griet, a filha de dezasseis anos do infortunado artista.

Griet prepara os legumes para uma sopa e dispõe-nos de uma forma que imediatamente chama a atenção de Vermeer por nada possuir de aleatório. Uma estranha organização intencionalmente bela pela conjugação de cores e formas, inquieta o distinto pintor logo na primeira abordagem à jovem escolhida para servir em sua casa.
E também Catharina, grávida do sexto filho, mostra sinais de desconforto na presença da rapariga, como se uma ameaça à sua supremacia como Senhora da casa se manifestasse subitamente na pessoa da jovem que mal ler e escrever sabia mas que denotava uma sensibilidade que havia enlaçado Vermeer numa teia de cumplicidade a ela, a sua mulher, jamais poderia aspirar.

A intimidade do casal parecia expressar-se apenas nos filhos que os rodeavam e nos que vinham a caminho. De resto, Catharina nunca tinha sido pintada pelo marido e o seu atelier era um local proibido. Até chegar a criada encarregue de o limpar.
O poder de observação de Griet, permitia-lhe afastar objectos para arejar superfícies e colocá-los milimetricamente no mesmo local de onde os havia arredado. Assim, quando o Senhor se dispusesse a trabalhar, tudo estava imaculado, intocado, imune à contaminação do mundo exterior como sempre tinha estado.
Mas o seu Senhor pintava a um ritmo insuficiente para alimentar a família, era demasiado exigente consigo próprio, atormentava-o a obrigação de pintar para um mecenas, de ceder à sua vontade cénica e quando este lhe pede para o ajudar a misturar substâncias que resultariam em tinta para os seus quadros, Griet teme a ira de Catharina. Só com a ajuda de Maria Thins, a mãe da sua senhora, é que foi possível a concretização do sonho de estar próxima de Vermeer e do seu trabalho. E até quando se converteu em modelo do pintor, foi Maria Thins, mulher detentora de elevada astúcia e compreensão das necessidades familiares, que apreendeu que assim poderia o marido de sua filha trabalhar com maior rapidez.

Não contavam com a sagacidade malévola de Cornelia, a filha de Vermeer que se mostrara indomável como a mãe face à presença ameaçadora de Griet. Uma mulher e uma menina inseguras, que não sabiam distinguir entre o uso de um par de brincos de pérola para posar para um quadro a pedido do artista e a usurpação dos objectos por motivos pouco honestos.

Griet é vítima da sua dedicação ao génio de Vermeer e sucumbe apenas quando nem o pintor que lhe exigira a pose com o brinco de pérola luzindo ante a glória da pincelada que lhe dera vida, nem a protectora de todas as horas difíceis naquela casa se dignaram defendê-la ante a acusação infundada de Catharina que contra todas as previsões galgara a escadaria que conduzia ao atelier do marido, apesar do peso de mais uma gravidez, instigada por Cornelia.

É um livro que nos envolve desde o início e nos transporta para algumas das telas de Vermeer, para as histórias por detrás delas, e para a realidade de vozes, cheiros, tonalidades e sabores que o Mestre Flamengo terá experienciado. Uma leitura que brilha no meu horizonte de memórias literárias como um brinco de pérola cintilando eternamente, num jogo de luz sem fim.

sábado, fevereiro 14, 2009

"Onde Vivi e Para Que Vivi" de Henry David Thoreau

Thoreau, Henry David, Onde Vivi e Para que Vivi (Where I Lived, and What I Lived For), Quasi, Tradução de Odete Martins, 2008.

Neste pequeno livro editado pela Quasi e oferecido com o Diário de Notícias, temos acesso a quatro capítulos da obra-prima de Henry David Thoreau, “Walden”, que passo a nomear: De Economia, Onde Vivi e Para que Vivi, Animais de Inverno e Da Conclusão.

Nesta amostra de “Walden”, pressentimos a natureza intrépida da obra no seu todo por meio da exposição de uma filosofia de vida advogada pelo autor e vivenciada sem subterfúgios.
Thoreau adverte prontamente o leitor de que apenas escreverá sobre as suas experiências, sobre a realidade que conhece e que realmente ensaiou. Não lhe interessa narrar factos empreendidos por outrem. A base da sua escrita, a sua grande força anímica é a prática na primeira pessoa.

E assim, é num registo diarístico que Henry David Thoreau elabora o seu relato de vida parcimoniosa na margem do Lago Walden em Concord, Massachusetts.

A observação da natureza e a observação da natureza humana cruzam-se em várias frentes nesta obra. Se por um lado a natureza oferece ao Homem os recursos necessários à sua sobrevivência, por outro a natureza humana procura suprir as suas carências buscando meios de ultrapassar o que existe para lá da soleira da porta, acessível e sobretudo dando demasiada atenção aos detalhes da vida alheia, às futilidades que a modernidade apadrinha e que o autor enumera de forma lúcida.

Para além das suas observações concernentes à dualidade vida prosaica/ vida moderna e defesa do desprendimento material que exerce apaixonadamente, Henry David Thoreau aborda igualmente questões de cariz economicista que considero de uma actualidade incomparável, senão vejamos: «Não sou capaz de acreditar que o nosso sistema de produção é o melhor modo através do qual os homens têm acesso à roupa. A condição dos operários está a tornar-se, a cada dia que passa, mais semelhante à dos operários ingleses, o que não é de estranhar, já que, por tudo o que tenho ouvido ou visto, o principal objectivo não é que a humanidade possa apresentar-se bem vestida e de forma honesta, mas sim, inquestionavelmente, que as corporações possam enriquecer. Os homens alcançam, a longo prazo, somente aquilo que ambicionam. Assim sendo, apesar de, a curto prazo, poderem falhar, fariam melhor se almejassem algo num patamar mais elevado.»

A explanação do seu estilo e filosofia de vida é uma inspiração numa sociedade em que, a percepção do que significa a natureza e todos os recursos que a compõem é pouco clara talvez porque cada vez menos haja o contacto directo com essa Mater que nos acolheu desde tempos imemoriais.

domingo, fevereiro 08, 2009

"Os Livros que Não Escrevi" de George Steiner

Steiner, George, Os Livros que Não Escrevi (My Unwritten Books), Gradiva, Tradução de Miguel Serras Pereira, 2008.

“Os Livros que Não Escrevi” é um conjunto de sete ensaios interligados por um fio condutor comum: O facto de tratarem temas que George Steiner gostaria de ter transposto para livro e que, por um motivo ou outro, não galgaram as margens da mera ideia.

É com um nível de erudição intimidante que o autor nos transporta para os universos de cultura, política, relações humanas, amor aos animais, admiração por mentes brilhantes e estado da educação que almejou tratar em obras ensaísticas que nunca foram executadas.
O tom ensaístico assume por vezes roupagens mais primaveris, empurrando o leitor para uma abordagem narrativa de descoberta de histórias pessoais e colectivas que enchem a alma de quem lê com cores, cidades, livros, autores, conflitos e circunstâncias da vida comum. Ocorre um reconhecimento, uma identificação entre as preocupações manifestadas pelo Professor Steiner e as que também afligem os seus leitores.

A linguagem utilizada, mas sobretudo as inúmeras referências culturais a que alude nos textos apresentados tornam esta obra uma leitura sensível. E sensível em que medida? Para a ler é necessária uma disponibilidade de espírito elevada, altos níveis de concentração, uma dedicação e atenção ao que se lê acima da média, uma enorme capacidade de captação dos enunciados descritos e um grau de assimilação colossal. Parece a receita para qualquer boa leitura que se preze mas, na verdade, George Steiner obriga-nos a obedecer a estas regras de forma absolutamente integral, até radical, diria.

Apesar de se poder considerar uma obra mais “ligeira” de Steiner, há que reter que o autor não consegue desprender-se daquilo que é, daquilo que pratica e postula: Um Ser profundamente consciente da sua sapiência embora não a apresente de forma descabida ou caudalosa mas sim inserida num contexto pleno de sentido.

domingo, fevereiro 01, 2009

“O Meu Diário de Guantánamo - Os Prisioneiros e as Histórias que me Contaram” de Mahvish Rukhsana Khan

Khan, Mahvish Rukhsana, O Meu Diário de Guantánamo – Os Prisioneiros e as Histórias que me Contaram (My Guantánamo Diary – The Detainees and the Stories They Told Me), Bizâncio, Tradução de Cláudia Brito, 2008.

Filha de pais afegãos, nascida nos Estados Unidos da América, dividida entre a tradição, cultura e língua pashtun e uma vivência ocidental, Mahvish Rukhsana Khan, mergulhou na realidade periférica de Guantánamo ainda enquanto estudante de direito mas conhecedora dos costumes e idioma que fariam com que os advogados que tratavam dos processos dos prisioneiros de origem afegã, mais facilmente com eles comunicassem e lhes transmitissem a confiança necessária numa relação advogado/cliente.

Três casos em particular a ocupam no tempo interrompido que significa Guantánamo para os prisioneiros inocentes que aguardam uma acusação alguns há três anos. Esse tempo imóvel desde que haviam sido separados das suas famílias, parece retomar o seu andamento com a presença familiar de uma mulher que fala a língua deles, que conhece os seus costumes, que os observa com o respeito que a cultura pashtun incutida pelos pais reservava a todo o Ser-Humano. E confessam-se, inundam aquelas celas de histórias de horror, ódio e traição protagonizadas não só pelos americanos que os maltratavam enquanto pretensos terroristas, como também pelos conterrâneos que os tinham vendido.

É um conjunto de histórias de vidas suspensas aquelas apresentadas por Mahvish Khan, de pessoas normais que na espiral de medo que se seguiu ao 11 de Setembro (impelindo os americanos a distribuir milhares de panfletos nos países que albergavam terroristas nos quais eram oferecidas recompensas milionárias a pessoas que viviam abaixo do limite da pobreza e que movidas pela inveja, pela oposição política ou social, pela mera rivalidade tribal, entregaram adversários aos americanos sem qualquer prova de culpa – bastava apontar e dizer que aquele ou aquela estava envolvido em actividades terroristas) foram apanhadas na teia de uma febre inquisitorial e farisaica própria de um qualquer improvável farwest.

Contudo, a autora não se limita a expor os casos de injustiça evidentes existentes em Gitmo. Ressalva sempre que por trás daquelas paredes, estão não só inocentes como culpados, embora a acusação não formada dos prisioneiros de Gitmo e a tortura de que todos foram vítimas, não seja, forma digna ou humana de conduzir qualquer processo, seja ele qual for.

Gitmo funciona não só como símbolo do autoritarismo selvagem e sem lei da Administração Bush, mas igualmente como súmula da indiferença do mundo perante tão evidente transgressão do direito internacional e do que é humanamente tolerável.

Como é possível libertar-se um prisioneiro depois de anos de cativeiro, provada que ficou a sua inocência, e largá-lo simplesmente no local onde o haviam inicialmente interceptado? Será isto civilização? A estas e muitas outras questões se alude no presente volume que deixa marca.