domingo, janeiro 27, 2008

"Uma Paixão Humana: O seu Cérebro e a Música" de Daniel J. Levitin

Levitin, Daniel J., Uma Paixão Humana: O seu Cérebro e a Música (This is your brain on music), Bizâncio, Tradução de Bárbara Pinto Coelho, 2007.

Daniel J. Levitin explora, neste seu roteiro solidamente construído, questões relacionadas com o efeito que a música produz no cérebro humano.
Para além de uma base científica bem sustentada e perceptível ao leitor leigo, Levitin introduz ao longo do livro exemplos de música e músicos universalmente conhecidos, ilustrativos das teses do autor e proporcionando, assim, uma compreensão harmoniosa da capacidade extraordinária do Ser-Humano em assimilar conteúdos musicais.
Mesmo antes de nascermos, se devidamente estimulados por um ambiente exterior profundamente musical e posteriormente acompanhados, por exemplo, por uma família de tendências e tradições musicais, as probabilidades de nos tornarmos músicos aptos ou simplesmente excelentes ouvintes de música, são superiores a alguém que não foi sujeito a essa influência. Na verdade, parece algo óbvio, no entanto, Daniel J. Levitin decifra os mecanismos que conduzem à aquisição destas “predisposições” e fá-lo de forma pormenorizada, escalpelizando as estruturas neuro-científicas e psicológicas que nos tornam Seres naturalmente musicais.

domingo, janeiro 20, 2008

"Antologia Indispensável" de Flannery O'Connor

O'Connor, Flannery, Antologia Indispensável, Dom Quixote, Tradução de Clara Pinto Correia, 1996.

Trata-se de uma obra de compilação de alguns dos melhores contos da autora americana sendo que, destaco e aqui vos deixo as minhas impressões sobre "A Gente Sã do Campo".
Quem é esta Gente Sã do Campo? Mrs. Hopewell, a personagem do conto de Flannery O'Connor que repetidamente utiliza esta expressão num nítido esforço de exaltação das pessoas aparentemente não conspurcadas pelo "lixo" urbano que distorce a humanidade pura e a que implicitamente alude, dá o exemplo da família Freeman, a família de caseiros que havia quatro anos trabalhava na sua propriedade. De Mr. Freeman apenas sabemos tratar-se de um "bom agricultor", a única personagem ignorada e a única que verdadeiramente se aproxima dos padrões comportamentais próprios das gentes do campo. Contudo, as duas filhas e, sobretudo, Mrs. Freeman são ironicamente retratadas pelo narrador por meio de um premeditado jogo de equívocos em que, naturalmente, o que parece não é. Enquanto Mrs. Hopewell vê em Mrs. Freeman (e também em Manley Pointer) o protótipo da fórmula em torno da qual o conto gira, o leitor atento não poderá deixar de sorrir ante a ingeniosa construção empreendida por Flannery O'Connor: Cada palavra da mulher do caseiro atraiçoa a noção de simplicidade que Mrs. Hopewell pretende conferir a essa espécie de epitáfio inscrito em numerosas páginas do texto. O "monumeno final" é erguido a partir do erro da premissa, uma premissa a que não podemos deixar de atribuir laivos de lugar-comum, atendendo ao contexto de banalidade no qual, outros "clichés" utilizados por Mrs. Hopewell pululam assumindo a funcionalidade específica de frisar a vulgaridade desta mulher: nada é perfeito, é a vida! ou as outras pessoas também têm as suas opiniões. Atentemos agora na reacção da filha de Mrs. Hopewell, doutorada em filosofia, à filosofia barata a que a mãe abusivamente recorria: e a espessa Joy, cuja constante indignação acabara por obliterar todas as expressões da sua face, olhava ligeiramente para o lado, um olhar azul gelado, com a atitude de alguém que atingira a cegueira através da força de vontade e que tinha suficiente determinação para se manter permanentemente nesse estado. Joy, que ao completar 21 anos modificara o seu nome para Hulga numa provocação por meio do "feio" semelhante ao barulho evitável que produzia ao arrastar a perna artificial, insistindo neste "ritual" apenas pela consciência que tem da terrível fealdade do som e consequente incómodo que cria nos "outros". Joy assumidamente se demarca do círculo de gente sã do campo de que Mrs. Hopewell fazia questão de se ver rodeada. No entanto, não será a "pureza vivencial" de Hulga, indo ao extremo de a mãe ainda a considerar uma criança (apesar dos 32 anos e dos vários graus académicos) - Continuava a considerá-la uma criança porque lhe apertava o coração ter que pensar numa rapariga desengonçada que nunca dançara ou tivera qualquer outro divertimento normal. - um dado suficiente para a elevarmos a real representante desta gente sã do campo? Talvez fosse possível assentir nesta hipótese no que diz respeito ao lado criança de Joy mas, na verdade, esta é uma "criança" mutilada com uma perna amputada, um nome amputado, sendo pertinente notar que tanto a prótese da perna como o nome substituto são encarados da mesma forma pela jovem: quando Mrs. Freeman principia a chamá-la Hulga, ela pensa no facto como uma enorme intromissão na sua privacidade; e, mais tarde, quando Manley Pointer, o vendedor de Bíblias, lhe pede para mostrar o local onde a perna artificial se junta ao corpo, Hulga hesita porque tinha a mesma sensibilidade em relação à perna artificial que os pavões têm em relação à cauda. Nunca ninguém lhe tocava a não ser ela. Cuidava da perna como outros cuidariam da alma, em privado e quase que desviando o seu próprio olhar. A perna e o nome... camuflados, escondidos porque reveladores de algo íntimo e inviolável, a privacidade (talvez a única posse de que Joy se podia gabar). A perna e o nome decifrados pela gente sã do campo por excelência (permitam-me acompanhar a ironia da autora...): Mrs. Freeman e Manley Pointer (o duplo engano de Mrs. Hopewell). Ambos nos surgem obcecados pela perna de Hulga: Havia qualquer coisa nela que parecia fascinar Mrs. Freeman e depois um dia Hulga percebeu que era a perna artificial. Mrs. Freeman tinha uma predilecção especial pelos detalhes de infecções secretas, deformidades escondidas, assaltos a crianças. Das doenças, preferia as intermináveis e incuráveis; Manley Pointer, por sua vez, olha para Joy como se estivesse a observar um novo animal fantástico no jardim zoológico. A perna e o nome destacam-se como as únicas características distintivas de Joy porque invulgares, e Mrs. Freeman e o vendedor de Bíblias não passam de dois caçadores de raridades. A mulher do caseiro colecciona através da mera retenção na memória, Manley Pointer apenas se contenta com a posse real, material, e segue um estratagema comum pelo país fora, seduzindo mulheres com deformidades físicas para a prova de amor, a dádiva, se revelar, por fim, uma irremediável perda. A certa altura o narrador afirma que Joy passara por tudo sem dar por nada e, de facto, a relativa independência e absoluta altivez que cultiva, desfazem-se em nada perante a compreensão de que aquele rapaz que se diria pertencer à estirpe dos "eleitos" - a gente sã do campo, o sal da terra - era somente uma encantação demoníaca em código. Hulga julgara cheirar a estupidez dele na maleta onde transportava as Bíblias, como no passado julgara cheirar a estupidez de todos os jovens simpáticos que olhara. Mas dentro das Bíblias estava "Whisky" e o rapazola devoto é um charlatão que se despede de Hulga afirmando o seu total cepticismo face ao humano e ao divino, manifestando crer apenas no despojamento das suas vítimas por amor, o amor ao bizarro. A bizarria de Joy é física, a bizarria dos "outros" dir-se-ia psíquica. Nenhum elemento da galeria de personagens poderá incorporar o quadro da gente sã do campo.O título do conto e o conceito nele presente, servem apenas de simulacro a um universo onde a existência da gente sã do campo é simplesmente impossível.

Terá alguma vez existido uma idade da inocência?

domingo, janeiro 13, 2008

“Dembos, A Floresta do Medo, Angola – 1969 a 1971” de Carlos Ganhão

Ganhão, Carlos, Dembos, A Floresta do Medo, Angola – 1969 a 1971, Terramar, 2007.

O medo, catalizador de bravura e de cobardia, encarregava-se de separar os animicamente preparados para combater, ainda que numa guerra ambígua e os que, possuidores de uma estrutura psicológica auto-impeditiva, arriscavam a sua aniquilação às mãos do inimigo, bem como a de todo um grupo de homens dependentes entre si.
A Floresta dos Dembos, personifica de forma palpável a invisibilidade do medo que, de uma forma ou outra, arrebatou cada um daqueles homens, ora em abismos profundos de vegetação tão densa que era impossível caminhar, ora em esparsas clareiras onde o inimigo os emboscava numa infindável perseguição em que aquele que hoje perseguia, amanhã era perseguido.
Mas não é só o medo a criar divisões no seio do exército português. Estávamos perante uma tropa mista no sentido em que, de um lado possuíamos combatentes vindos e formados em Portugal, profundamente marcados pela coacção ao livre-pensamento, norma no Portugal daquele tempo, do outro perfilavam-se jovens nascidos ou criados em Angola (os Euro-Africanos como o autor os apelida e em cujo grupo se enquadra) com uma mentalidade diversa, porque não sujeitos às numerosas restrições experimentadas na metrópole. Já dominados pelo medo na terra natal, o seu posicionamento num palco de guerra distante, não raras vezes, não divergia muito desse primitivo instinto de sobrevivência que os impelia a manter a cabeça baixa e a não ter opinião. Os Angolanos, por sua vez, insurgiam-se contra os tiques ditatoriais das patentes superiores, habituadas que estavam a dominar sem contestação. Tentou-se a contaminação, o mergulho no estado de medo em que Portugal vivia submerso, mas em zona operacional, a probabilidade de desmandos ilógicos descambarem em motim, não era absurda pelo que, estancou-se, em certa medida, o absolutismo militar de homens de carácter e moral duvidosos que pretendiam subir na vida com a circunstância trágica da guerra.
Carlos Ganhão denuncia a ausência de humanidade e respeito pela vida humana evidenciados por muitos protagonistas da Guerra em Angola, sobretudo pelos que conduziam a guerra a partir de gabinetes e observando mapas, enquanto toda uma juventude se perdia ou perdia a inocência face aos horrores vividos.
No labirinto de significados ou inexistência deles (até porque uma guerra apresenta sempre como principal motivação a irracionalidade de alguns pela qual uma maioria se sacrifica), o autor conduz o leitor ao longo dos dois anos de duração da sua comissão, nas memórias mais genuinamente escritas que já tive oportunidade de ler. Trata-se de uma referência histórica sobre um período com tanto ainda por desvendar.
Retirem-se as máscaras, chegou o momento da Verdade. Sem medos.

domingo, janeiro 06, 2008

"Império à Deriva - A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821" de Patrick Wilcken

Wilcken, Patrick, Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821 (Empire adrift – The Portuguese Court in Rio de Janeiro 1808-1821), Civilização Editora, Tradução de António Costa, 2005.

Só após a leitura de “Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821” de Patrick Wilcken, é que tive a noção da quantidade de informação da maior importância sobre este período da História de Portugal que me era desconhecida.
Foi uma época de muitos perigos, de muitas ameaças externas e internas, de inúmeras intrigas em torno de um regente indeciso, facilmente impressionável que, na sequência de uma intensa urdidura inglesa, cede à ideia da necessidade de partida da família real para a colónia Brasil.
A fuga da família real implicou a fuga conjunta de toda a máquina nobiliárquica, política, servil e administrativa, e um consequente vazio transversal a todos os sectores que compunham a Metrópole.
Vários meses no mar e incontáveis privações passados, a andrajosa comitiva real, aporta ao Rio de Janeiro, mostrando-se, enfim, aos seus súbditos da longínqua Colónia na sua forma mais humana.
Estes europeus recém-chegados deparam-se com um Brasil cujo “tropicalismo” se patenteava em todas as camadas da população e em todos os costumes existentes, tornando o choque civilizacional recíproco. A chegada da Corte produziu alterações imediatas na vida oficial e quotidiana do Rio com a introdução de costumes até então desconhecidos da colónia, mas também na vida que a família real e toda a corte portuguesa conhecera em Lisboa e que, com a mudança de cenário, cessara de existir. A simplicidade, apanágio, do estilo de vida da colónia, converteu-se numa adaptação forçada ao luxo a que a família real se habituara em Portugal.
Acompanhamos o processo de integração mútua entre uma corte demasiadamente dependente de rituais já ultrapassados em outras cortes europeias e uma população diversificada de uma colónia até então distante e naquele momento convertida em Centro do Império.
A par dos acontecimentos caracterizadores da sociedade brasileira de então, o autor retrata o estado de um Portugal à mercê de ingleses e franceses através dos contornos de uma disputa que atingiria o seu auge com a entrada das tropas napoleónicas por três vezes em território português. Os prejuízos sociais, económicos e políticos resultantes deste período único e terrível a um tempo na História de Portugal, são minuciosa e habilmente analisados por Patrik Wilcken.
Para além da figura D. João, Regente e depois Rei com a morte de D. Maria, a Rainha louca, sobressai a amarga e pérfida figura de D. Carlota Joaquina, princesa e depois Rainha. O seu carácter inatamente conspirativo busca sempre, por todos os meios, encontrar a independência vedada às mulheres. D. Carlota comprazia-se em desafiar o instituído por exemplo quando montava a cavalo como os homens ou quando mantinha um séquito de amantes suficiente para se crer que alguns dos seus nove filhos não possuíam proveniência régia. No entanto, era suficientemente ortodoxa no que respeitava ao cumprimento de formalidades ultrapassadas que não deixavam de impressionar a população estrangeira com que se cruzava. A mulher de Junot descreve-a como um exemplo de fealdade feminina, mas é sobretudo o seu carácter desconcertante de alguém que trai o Rei e marido tanto a nível pessoal como político que sobressai e marca esta mulher que aprendera a odiar quando chegara à corte portuguesa com 10 anos vinda de Espanha.
Um relato imprescindível, claro e magnificamente escrito de Patrick Wilken, daquele que é um dos mais significativos pontos de viragem da nossa História.