domingo, abril 26, 2009

"Património" de Philip Roth

Roth, Philip, Património (Patrimony), Dom Quixote, Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, 2008.

Philip Roth narra o declínio físico do pai, Herman Roth, que sucumbe gradualmente ao avanço de um tumor cerebral mas não se limita a descrever essa queda do homem que conhecera vigoroso e enérgico de forma factual e inócua: o ocaso da vida do pai obriga-o a reflectir sobre a sua existência enquanto filho outrora e agora.

Essa evolução do ser pai e a progressão da noção de filho perpassa toda a obra mas não como algo que perturbe o autor, que o desmotive perante a naturalidade da realidade regressiva de papéis assumidos. Tudo se resume a uma aceitação clara dos factos da vida (nos quais se inclui a morte), mas o debate interno do filho que assiste à degradação das capacidades de um pai moribundo que acompanha desde o primeiro momento, sobrepõe-se a esse acolhimento da fatalidade.

Herman Roth recorre à memória para se agarrar à vida e a memória funciona, de facto, como um poderoso instrumento que desbrava o caminho desconhecido que o aguarda. Uma forma de ultrapassar o medo ou simplesmente de se sentir rodeado do mundo de pessoas e situações que sempre conheceu.

E o património, o legado, os destroços de uma vida já desaparecida, resume-se ao tempo que passámos junto dessa presença já fisicamente oculta, os tempos partilhados de felicidade ou sofrimento, levar um pai ao colo para a cama depois de lhe ter dado banho e pensar que há cinquenta anos atrás quem necessitava de ser acarinhado e protegido era o filho. Património é abraçar em absoluto o ser-se filho.

sábado, abril 18, 2009

"A Feiticeira de Florença" de Salman Rushdie

Rushdie, Salman, A Feiticeira de Florença (The Enchantress of Florence), Dom Quixote, Tradução de J. Teixeira de Aguilar, 2008.

Ocidente e Oriente. Florença e o Indostão. O príncipe Lourenço de Médicis, Senhor da volátil cidade europeia e Akbar, o Imperador da remota terra exótica onde a fantasia reinava e uma Rainha invisível era a preferida do Rei.
Um viajante louro auto-denominando-se como Mogor dell’Amore, chega à grande capital do Reino de Indostão como enviado de Isabel I de Inglaterra, após ter pilhado os aposentos onde o verdadeiro Embaixador guardava o documento numa passagem breve mas profícua por um navio de piratas escoceses.
Inventou um conteúdo irreal para a missiva, atingindo o intento de se aproximar do Imperador. E quando a sua vida é ameaçada pela desconfiança que floresce na corte de Akbar e se vê enclausurado numa masmorra e mais tarde frente a frente com um elefante enraivecido, disposto a espezinhá-lo como um verme que desafiara o Reis dos Reis com histórias que o apontavam como tio do soberano, Mogor dell’Amore socorre-se de expedientes vários e acalma a fúria do animal destinado a executar a vontade do Senhor de Indostão.

Algo semelhante a um milagre sucedera e o Rei, rendido ao poder obscuro do pálido desconhecido, ouve a história composta por várias narrativas distintas com o objectivo último de revelar a origem verdadeira do forasteiro. Sangue real afirmara ele possuir. Filho de Qara Köz, a Dama Olhos Negros, irmã de Baber, pai de Akbar, Senhora de uma vida aventurosa e de uma beleza rara que enfeitiçava os homens e mitigava a inveja das mulheres.

A vida desta mulher que se atrevera a retirar o véu e que se fazia acompanhar pela sua serva, a “espelho” por ser tão surpreendentemente idêntica à ama, é contada em paralelo com a vida de três amigos florentinos que acabarão por se ver enredados na história de aclamação e queda da Feiticeira de Florença que de “Santa” se converte em “bruxa” após uma noite passada com Lourenço II de Médicis e morte rápida do Senhor de Florença. Ela embruxara-o, dizia o povo, lançara-lhe feitiço mortal. E a Dama Olhos Negros, zelara apenas pelo regresso do seu amado Argalia ao deitar-se com Lourenço. A cidade já ansiava pelo cheiro a carne humana queimada que as fogueiras exalavam nos tempos áureos da cristandade. A explicação da justiça era sobrenatural.

Tudo se conjuga de forma a que quase no fim das suas vidas, os três amigos se reúnam novamente e, apesar dos diferentes caminhos por que haviam optado, a fraternidade entre almas unidas pela amizade nunca fora olvidada.

sexta-feira, abril 10, 2009

"O Físico Prodigioso" de Jorge de Sena

Sena, Jorge de, O Físico Prodigioso, Edições Asa, 2005.

Como o próprio autor confessa nas notas finais que acompanham a minha edição de "O Físico Prodigioso", a novela baseou-se em dois “exemplos” do Orto do Esposo, livro moralístico-religioso da primeira metade do século XV: o do homem com poderes mágicos de cura através do seu sangue virgem, e o do homem que não conseguiam enforcar porque o diabo o levantava no ar.
Trata-se de um “conto” de imortalidade e de invisibilidade asseguradas pela posse de um barrete mágico e pela presença protectora do próprio diabo que retira prazer da mera observação das movimentações humanas (mas sempre com o seu quê de “maravilha”; e utilizo aqui a palavra maravilha no sentido com que a encontramos nos livros de cavalaria – acontecimento inverosímil) do protagonista cujo nome é por ele mesmo considerado acessório e assim ocultado.

Contudo, a contemplação do físico pelo diabo tem o seu custo: a alma vazada do jovem inicia-se na agonia de tudo ter. Desta forma, uma “rebelião” interior irrompe e interrompe a até então intocável plenitude de imortal de que gozava. É assim o seu zelo e não um diabo insatisfeito que o arrasta para um calabouço da inquisição onde permanecerá longos anos perdendo o viço que o caracterizara, mas transmitindo-o a outros por meio de uma obra de contaminação digna do seu patrono. Curioso é que o diabo, apesar da degradação física do seu protegido, não cessa de o amar salvando-o, inclusivamente, da provação última, a morte.

É uma novela que julgo “recuperar” o conceito de “aventura” tal qual exposto nos seus contornos essenciais nos livros de cavalaria. O absurdo, a tentação, a linha ténue que por vezes demarca o mal do bem, surgem no caminho do donzel apresentado sob uma luz aqui e ali semelhante à que ilumina um Galaaz, mas com uma diferença fundamental: Galaaz, o herói casto da “Demanda do Santo Graal”, serve Deus; o físico prodigioso é um escolhido do demónio (e assume várias formas ao longo do livro, identificando-se no entanto sempre pela referência à audição súbita de um “riso casquinado”). Ambos prisioneiros, embora de forças antagónicas.

domingo, abril 05, 2009

"A Última Estação" de Jay Parini

Parini, Jay, A Última Estação (The Last Station), Editorial Presença, Tradução de Maria de Almeida, 2007.

Jay Parini escreve este “A Última Estação” após uma aturada pesquisa histórica que teve como principal fonte os diários de Lev Tolstói e do círculo de familiares e seguidores que o acompanharam no último ano de vida.
O autor convida-nos a assumir uma postura voyeurista ao partilhar a sua visão de “primeira fila” dos acontecimentos que decorreram nesse ano de 1910. E o leitor segue-o de bom grado ora integrando o grupo de tolstoianos mais próximos do maior autor russo do seu tempo, ora como observador da atitude rígida e persecutória da mulher de Tolstói, Sófia Andréevna.
As duas facções digladiam-se ferozmente e no meio deparamo-nos com um Tolstói ansioso por encontrar a paz absoluta em Iássnaia Poliána, a propriedade e casa da família onde o autor nascera e vivera quase toda a sua vida. Mas Iássnaia Poliana é o palco de sofrimento do velho Conde Tolstói onde Sófia Andréevna não o poupa, expondo a quem quisesse ouvir o conteúdo dos diários do marido, devastada por um ciúme doentio de Tchertkov, o mais amado dos discípulos de Tolstói. A suspeita das relações existentes entre os dois homens, dilacera-a e a desconfiança face às reais intenções de Tchertkov motiva-a na cruzada de humilhação que empreende contra o marido e na propagação dos seus medos, temendo sobretudo que a proximidade entre os dois homens trouxesse dissabores para a família após a morte de Tolstói e revelação do testamento.

Os últimos anos de vida de Tolstói são marcados por uma perspectiva marcadamente religiosa e social que o autor tenta aplicar à sua vida. Ele não quer ser o Conde Tolstói, mas somente Lev Nikoláevitch. Ele não quer viver rodeado de luxo, nem ceder a impulsos sexuais. Ele não quer conviver sob o jugo opressivo de uma mulher castradora, que lhe retira a paz tão desejada e lhe proíbe visitar e ser visitado pelo seu mais querido amigo. Ele quer fugir. Desaparecer.

Lemos as impressões de Sacha, a filha que vive em Iássnaia Poliána e que ajuda o pai no seu trabalho, sabemos que considera a mãe alguém profundamente teatral e egoísta, encenando achaques e mais tarde tentativas de suicídio para prender o marido na sua prisão dourada; temos acesso aos pensamentos de Bulgákov, o Secretário de Tolstói nesse último ano, reverente admirador do mestre que começa por sentir pena de Sófia Andréevna, mas acaba por pressentir a dimensão da paranóia da companheira de quarenta e oito anos de Tolstói; conhecemos a aversão que Tchertkov tem por Sófia e as suas maquinações para ter acesso ao mestre contornando o controle cerrado de Sófia Andréevna, o legado de Tolstói não seria pertença da família Tolstói mas do povo russo que ele tanto amava; as impressões do Dr. Makovítski, o médico pessoal, a propósito da saúde cada vez mais periclitante de Lev Nikoláevitch, os seus receios que a influência funesta de Sófia se revelasse, no fim, fatal; da própria mulher de Tolstói que manifesta todo o seu amor pelo marido e a necessidade em impedir a todo o custo o golpe que Tchertkov planeia; por fim, sabemos o que o próprio Tolstói pensa sobre este mundo que ameaça desabar sobre si. Urge evitar que o fim sobrevenha sem que encontre a paz.

E assim parte na companhia de Makovítski, com as sombras da noite como silenciosas cúmplices. A sua fragilidade física agudiza-se durante a fuga e atinge o auge ao chegarem à estação de Astápovo, a última estação, a última paragem antes da morte de Lev Nikoláevitch. Sacha pressente-o antes de todos ao dizer que parecia que tinham chegado ao fim do mundo. Era realmente o desfecho da busca aventurosa de liberdade neste mundo. Aproximava-se a maior aventura de todas e Tolstói acolheu-a com um sorriso nos lábios.

Que livro magnífico!