sábado, dezembro 22, 2007

"Breviário das Más Inclinações" de José Riço Direitinho

Direitinho, José Riço, Breviário das Más Inclinações, Edições Asa, 1994.

José de Risso nascera fruto da mentira de um caixeiro-viajante com quem a mãe tivera um único encontro de Amor. O encontro seguinte seria no dia em que alguém o vira afastar-se em passada apressada por entre os castanheiros e os carvalhos que circundavam Vilarinho dos Loivos.
Logo após o seu nascimento, todos os rituais e visitas tradicionais de aldeia decorreram com a mãe já agonizante e logo aí as velhas anciãs da aldeia apontaram a pequena marca vermelha em forma de folha de carvalho que o marcava para a vida. A superstição ditava que tal marca era um sinal de desgraça e que o seu portador atrairia desditas e outros males a si e aos que de alguma forma consigo se relacionassem.
A partir daqui, assistimos ao desenrolar dos pequenos acontecimentos que distinguem a vida de José de Risso da dos restantes habitantes da aldeia de Vilarinho dos Loivos. Os gestos mais simples o demarcam dos outros e porque herdeiro de um conjunto de “mezinhas” ensinadas pela avó que aplica quando solicitado por um vizinho com um problema de saúde que nem médico, nem bruxo consegue curar, José de Risso adquire fama de curandeiro, apesar de pedir aos que o procuram que não seja revelada a sua identidade. Esta capacidade de curar através da combinação de ervas e produtos provenientes da natureza, juntamente com a marca em forma de carvalho que lhe granjeia fama de desgraçado e de abençoado em simultâneo, conduz a sua vida por meandros nem sempre rectos e benfazejos.
De facto, observamos José de Risso envolvido em esquemas menos lícitos com a viúva galega fugida da guerra civil em Espanha, Purisima de la Concepción, e protagonista de uma suposta aparição do noivo morto à louca do Cortinhal, convencida que ficara de que o Crispim a visitava todas as noites no Curral em que a família se vira obrigada a encerrá-la.
O que me parece verdadeiramente fascinante nesta criação de José Riço Direitinho, é o facto de ter compactado numa única personagem um misto de herói e anti-herói. Momentos há em que o leitor se sente do lado de José de Risso, outros em que sente uma repulsa justificada pelos actos pouco meritórios do protagonista. Ele vive como um Cristo e como um Lucífer, tão depressa presta auxilio ao seu próximo, como o despedaça e destrói sem piedade. Parece-me ser, com um toque natural de exagero, uma personificação do Homem, no sentido em que não há homens santos, nem há homens absolutamente maus, aliás, o cerne da questão é que o absoluto não existe. A prática constante do Bem ou a prática interminável do mal não são plausíveis. Cada Homem, cada Ser-Humano vive o seu tempo, o tempo que lhe é concedido agindo com frequência de forma correcta e também errando amiúde. A ponderação é, talvez, a nossa melhor arma para nos julgarmos a nós próprios nesta que é a nossa eterna luta inglória: aproximarmo-nos o mais possível da divindade.

domingo, dezembro 09, 2007

"Indomável - Uma Luta pela Liberdade" de Wangari Maathai

Maathai, Wangari, Indomável – Uma luta pela Liberdade (Unbowed), Bizâncio, Tradução de Fernando Dias Antunes, 2007.


Galardoada com o Prémio Nobel da Paz em 2004, Wangari Maathai oferece-nos um auto-retrato despretensioso e, acima de tudo, revelador do que começou por ser uma luta solitária pelo despertar da consciência ambiental no Quénia, seu país de origem, e que rapidamente se converteu num combate pela democracia partilhado por muitos.
Acompanhamos o percurso de vida da autora desde os primeiros anos passados na fazenda do Senhor Neylan, onde o pai trabalhava e por quem o Inglês tinha estima e confiança, até à sua passagem pelo Colégio de Santa Cecília onde a educação católica ministrada pelas freiras italianas exerceu profunda influência na jovem Wangari tendo-se mesmo convertido ao catolicismo, isto apesar de nunca abdicar das suas raízes Kikuyo.
Wangari Maathai torna-se conhecida no Quénia quando o seu processo de divórcio assume contornos de humilhação pública, a partir desse momento basilar, inicia um trajecto como activista a favor da igualdade das mulheres numa sociedade queniana que gravitava somente em torno da figura do homem; como activista ambiental através da fundação do Movimento Green Belt, responsável pela plantação de cinturas verdes em toda a África; e activista a favor da implementação de uma democracia efectiva no Quénia.
Uma das iniciativas mais impressionantes por Wangari despoletadas e por si relatadas no seu livro, está relacionada com a tentativa, por parte do governo queniano, de construção de um edifício de grandes dimensões no Parque Uhuru, considerado o pulmão da cidade de Nairobi. É um exemplo de conjugação de luta ambiental e política e na qual Wangari Maathai se envolveu e envolveu o mundo para salvar aquele espaço verde.
Perpassa pela obra uma ideia da dificuldade em se ser mulher no Quénia e, sobretudo, em se ser uma mulher incómoda, uma mulher doutorada, uma mulher que não se rendeu à vontade dos homens do seu país. Wangari Maathai permaneceu fiel aos seus princípios, tomou a iniciativa em inúmeras questões de importância para o Quénia e permanece insubmissa como sempre, igual a si própria. Indomável.

domingo, dezembro 02, 2007

"Uma História do Diabo - Séculos XII a XX" de Robert Muchembled

Muchembled, Robert, Uma História do Diabo - Séculos XII a XX (Une Histoire du Diable), Terramar, Tradução de Augusto Joaquim, 2003.

O levantamento histórico e cultural efectuado por Robert Muchembled na criação do seu “Uma História do Diabo – Séculos XII a XX”, não abrange todas as perspectivas possíveis a respeito do tema, não o esgota num despejar fácil de informação; e, supomos, qualquer autor que se proponha tratar questões tão vastas como aquela que Muchembled trata, deverá, de uma forma ou de outra, acabar por cair na tentação de empobrecer o estudo com informação excessiva. O autor em análise não o faz. Pelo contrário, seleccionou as influências “diabólicas” que lhe pareceram mais prementes, o alcance dos tentáculos do “Anjo Caído”, sendo o resultado final de um rigor organizativo, interesse e exactidão histórica, social e cultural vivaz.
Os pormenores irrelevantes ou de importância menor não têm lugar neste “Uma História do Diabo”. O autor fixa o seu percurso de escrita em harmonia com o percurso evolutivo da figura estudada, o Diabo, com seus avanços e recuos, em concordância com os próprios avanços e recuos da sociedade de cada tempo e lugar que o acolhia, ora como mero símbolo, ora como executor real de uma vontade sobrenatural para além daquela protagonizada por Deus. Um fio condutor, no entanto, percorre toda a obra, uniformizando-a em torno de uma ideia: a de que, curiosamente, a crença em poderes demoníacos provenientes tanto do próprio Diabo como dos seus sequazes, sempre terá estado mais arreigadamente instalada no seio das chamadas classes superiores e em menor escala ao nível das classes mais baixas.
O Diabo como instrumento de controlo e poder da Igreja, como forma de manter fiéis e eliminar de modo legítimo os que se rebelavam contra os senhores terrenos, supostos representantes do poder celestial na terra, tornou-se, enfim, uma arma poderosa ao serviço dos interesses de uma Igreja fragilizada ante a emergência dos “monstros” que ela própria criara, os evadidos da gaiola dourada do catolicismo da época, os denominados hereges. O medo era inteligentemente instigado através da simples noção de “Diferença”, sendo que o incentivo à prática do mal, tal como o entendemos hoje (por exemplo através da denúncia, um acto profundamente pio à época) era uma promessa velada (ou não…) de salvação de penas eternas. Livrar-se do mal pelo mal – era a prática comum daqueles tenebrosos tempos.
Satanás resiste na sociedade europeia por meio de uma série de arquétipos literários com grande peso cultural, contudo, a crença num Ser ou Seres sobrenaturais vocacionados para a prática do mal, não encontra raízes profundas nesta Europa progressista e mais crente na prática do bem do que propriamente no contrário. O contraponto europeu, segundo o autor, é o exemplo americano com as suas práticas e crenças conservadoras em que parece sobressair o conceito de povo escolhido por Deus, destinado que estará em derrotar o mal… Acontecimentos recentes revelam a ressurgência de práticas satânicas ou com pretensões à reaparição de um qualquer mal, colocando à boca de cena a figura suprema do mal mesmo que de modo indirecto. Na Europa o fenómeno sucede de forma diametralmente oposta com o recuo, o esbatimento da influência (seja em que sentido for) do Príncipe das Trevas.
Robert Muchembled guia-nos, como Virgílio guia Dante aos vários círculos do inferno, pela História da Humanidade na qual situa a figura do Diabo como motor de regressões e progressões nas sociedades europeia e americana ao longo dos séculos.