domingo, setembro 28, 2008

"O Hóspede" de Marie Belloc Lowndes

Lowndes, Marie Belloc, O Hóspede (The Lodger), Quidnovi, Tradução de Mário Dias Correia, 2008.

O pano de fundo deste policial intenso é a nevoenta Londres de fim de século de onde emerge um novo tipo de criminoso, uma nova forma de fazer jornalismo e novas técnicas policiais que pudessem desvendar a identidade do homem que espalhava o terror nas madrugadas londrinas e que se auto-denominava como “O Vingador”.

Um casal de serviçais de meia-idade retirados da vida activa, Mr. e Mrs. Bunting, levam uma vida tranquila mas de muitas dificuldades e, apesar de terem um anúncio a indicar que possuem um quarto para alugar, passa muito tempo até surgir alguém interessado nos aposentos propostos. Só quando já haviam atingido um estado de quase desespero é que aparece um inquilino interessado e aparentando uma generosidade que deixa os Bunting aliviados perante a perspectiva de abismo sem retorno que haviam entrevisto apenas algumas horas antes.

Mr. Sleuth, o hóspede, é um homem estranho, possuidor de hábitos fora do comum, mas para o casal ele transforma-se no seu anjo salvador e relegam as suas rotinas pouco usuais para um plano secundário, interessando-lhes unicamente o facto de Sleuth ser educado, cumprir as suas obrigações como inquilino e contribuir para a harmonia da casa com a sua postura plácida, embora excêntrica.

A avidez com que toda a cidade acolhe as notícias diárias da imprensa acerca de desenvolvimentos no caso do Vingador, torna Mrs. Bunting mais esclarecida e atenta, e sendo uma profunda conhecedora dos passos de Mr. Sleuth, apesar de o hóspede a repelir quando se verifica uma maior aproximação, Ellen Bunting começa a pressentir que na estranheza de Sleuth reside algo mais do que pura extravagância de um solitário… Talvez o homenzinho que tão determinantemente entrara nas suas vidas para os salvar da miséria certa, não fosse tão cândido quanto aparentava, talvez a sua inocência não fosse tão absoluta.

Ellen Bunting aguçou os seus sentidos. As saídas nocturnas do hóspede já não lhe pareciam tão inócuas, os seus movimentos no andar de cima, no quarto alugado, causavam-lhe preocupação e a própria indumentária do inquilino passou a ser atentamente inspeccionada com discrição por Mrs. Bunting.
Procurava não se perder em pensamentos que a aterravam e que não partilhava com o marido mas, invariavelmente, o seu sono cada vez mais intranquilo transportava-a para a relação entre o simulado pacifismo de Sleuth e os crimes hediondos que quase todos os dias eram anunciados na imprensa sensacionalista.

Vivia no terror permanente de que alguma pista conduzisse a Scotland Yard a sua casa, à sua perigosa fonte de sustento e cada batida insuspeita na sua porta era motivo de sobressalto e inquietação, cúmplice que agora se sentia de acções imputadas a um louco.

Baseado nos acontecimentos que absorveram Londres no final da década de 80 do século XIX, nomeadamente o aparecimento de um assassino que matava prostitutas e se auto-intitulava “Jack, o estripador”, este é um policial refinado, muito bem conduzido pela autora, esplendidamente escrito e recheado de personagens com uma densidade psicológica rica e não desnecessariamente complexa.
Hitchcock baseou-se nesta obra de Marie Belloc Lowndes para realizar o seu “The Lodger, a story of the London Fog” de 1927, reconhecendo o potencial extraordinário de uma obra caída no esquecimento e cujo ressurgimento agradecemos à Quidnovi.

domingo, setembro 21, 2008

"Pânico" de Jeff Abbott

Abbott, Jeff, Pânico (Panic), Civilização Editora, Tradução de Cristina Gomes e Susana Paulino, 2006.

Um jovem e bem sucedido realizador de documentários vê-se envolvido numa intrincada história de morte e espionagem, perseguido por um homem cuja motivação dúbia parece implicar a sua própria agora questionável identidade.

O cosmos pessoal de Evan Casher começa por ser seriamente abalado quando recebe um telefonema ansioso da mãe pedindo-lhe que vá ter com ela e acaba por desabar no momento em que a encontra morta na casa da família em Houston em circunstâncias brutais.
Este acontecimento arremessa-o para um mundo irregular, imprevisível no qual surgem personagens que o pretendem guiar na descoberta da sua verdadeira identidade e outras que boicotam a sua determinação em desvendar a identidade do assassino da mãe e em simultâneo descobrir o paradeiro do pai.

A busca de Evan resume-se a uma cruzada particular cuja principal motivação é a descoberta do responsável pela morte da mãe, no entanto, pelo caminho, depara-se com factos que o obrigam a questionar toda a realidade familiar vivenciada ao longo dos anos e que se lhe apresenta agora como difusa, uma existência paralela mantida na penumbra e que agora lhe surge como um conjunto de imagens desfocadas da vida que conhecera até então.

As origens comuns dos pais e do assassino da mãe, o sequestro consentido do pai, a relação de improvável parentesco entre eles, a conspiração e a espionagem/ contra-espionagem que pautam a vida de crianças agora homens e mulheres educadas para o fim único de seguirem cegamente as ordens de um governo assim que ultimados, tornam esta obra de Jeff Abbott apelativa a um universo de leitores particularmente interessados em questões relacionadas com teorias da conspiração e em construções narrativas de proeminência dialogal.

O ruir do mundo de certezas em que crescera, manifesta-se a Evan sob a forma do pânico que empresta o nome ao livro.
A segurança, a impressão de protecção, limitavam-se a ser uma ilusão alimentada por um governo manipulador, pouco consciente de que a mente humana não é totalmente controlável e que basta um membro perturbado num grupo para que a engrenagem vacile.

Mas é também este pânico inicialmente paralisante que acaba afinal por emprestar a Evan a força por vezes sobre-humana com que enfrenta os seus inimigos.

domingo, setembro 14, 2008

"Expiação" de Ian McEwan

McEwan, Ian, Expiação (Atonement), Gradiva, Tradução de Maria do Carmo Figueira, 2008.

O dia da revelação do amor entre Cecília e Robbie coincide com o dia de perda de inocência de Briony. Assistimos a essa libertação repentina do mundo de bonecas e peças de teatro infantis em que vivia, a esse “crescimento” súbito da criança dotada que Briony dava mostras de ser e, estarrecidos, compreendemos que um último resquício da imaginação fértil da criança ainda reside na jovem, domina-a como se da última travessura pueril se tratasse.

Um simples acontecimento visto aos olhos distantes de Briony e aos olhos próximos de Robbie, assume proporções diferentes e é interpretado de formas distintas por ambos.
Cecília mergulha na fonte. A imagem da irmã encharcada, semi-nua em frente a Robbie, denota uma fragilidade inexistente mas que para Briony, se torna motivo suficiente para intimamente olhar para Robbie como uma ameaça à delicadeza da irmã e ela, Briony, como adulta responsável, sente como seu dever proteger a irmã do olhar demasiado perscrutador de Robbie.
Robbie encarava Cecília desconcertado. Era uma figura familiar e estranha em simultâneo saída da água, que entrara na água com intrepidez, com a determinação corajosa de mostrar que nada a perturbava. E frente a ele, com a pouca roupa colada ao corpo, revelando-se ao homem que já amava e não sabia com a consciência dos despertos, deixando-o estático e balbuciante junto à recordação mais palpável que dela ficara, uma poça da água que jorrara do seu corpo.

Após este episódio, Robbie toma a decisão de se prostrar aos pés de Cecília: escreve duas versões de uma mesma carta, uma reveladora mas bem comportada, formal até, na qual declarava o seu amor a Cecília, e uma outra com o mesmo conteúdo de confidência mas demasiado explícita em que figurava a descrição do seu desejo e a sua vontade em consumá-lo.

Demasiado inquieto com a descoberta do amor, Robbie engana-se na versão que entrega a Briony para dar a Cecília.

A naturalidade do desejo de cariz sexual entre dois adultos que se amam, aos olhos de Briony é a exteriorização do carácter duvidoso e mesmo perigoso de Robbie. A irmã tem de ser protegida a todo o custo da influência perniciosa do tarado em que Robbie se convertera em poucas horas.
A mudança em Briony espelha-se na forma como ela vê os outros. Julga ser sua obrigação zelar pela harmonia em perigo que pensa detectar nos desequilíbrios que vislumbra.

Ao receber a carta, Cecília compreende, por um lado, a sua cegueira face ao que sentia por Robbie, por outro lado, que Briony lera a carta. E pressente o profundo efeito que o teor da mensagem comportava para si, porque nada seria como dantes ao ter acordado para a realidade do amor, como para a mente especulativa de Briony que não se deteria na mera leitura inocente de uma carta que não lhe era dirigida.

Briony acusa Robbie do crime cometido naquela noite. Afirma tê-lo visto. Vira sim, as sombras difusas dos acontecimentos a que assistira nesse dia, os vultos do que pensara ter lido correctamente e transpusera-os para a gravidade de uma acusação que perseguiria as três personagens para o resto da vida.

Briony Tallis vive uma vida inteira a tentar expiar o seu crime, o pior que se possa imaginar: Ter sido a responsável pelo afastamento irremediável de duas pessoas que se amavam.

E escreve um livro com um final feliz.

domingo, setembro 07, 2008

"Teresa, a Santa apaixonada" de Rosa Amanda Strausz

Strausz, Rosa Amanda, Teresa a Santa Apaixonada, Casa das Letras, 2006.

“Teresa, a Santa apaixonada” é uma cativante narrativa da autoria de Rosa Amanda Srausz sobre o percurso de vida de Teresa Ahumada Sanchez y Cepeda, mais conhecida como Santa Teresa de Ávila. Acompanhamo-la desde os primeiros anos em que a sua beleza ímpar atraía os olhares de inúmeros pretendentes, em que a leitura ocupava os seus dias e em que a sua imaginação indómita a transportava para os mais diversos lugares, literalmente.

Talvez por lhe parecer demasiado insubmissa e sem a referência moral da mãe recentemente falecida, o pai de Teresa, D. Alonso, encaminha-a para o convento das Agostinianas de Nossa Senhora das Graças onde se deu o primeiro encontro de Teresa com Deus, mas “não com o amoroso Deus cristão, tal como o concebemos no século XXI, mas com a entidade terrível que regia a vida espiritual do século XVI.”. Teresa estava, pela primeira vez na vida sozinha, na presença de um “…Pai severíssimo [que] não se podia enganar. E, para ser admitida na sua família, eram necessárias provas tão duras quanto as que formariam qualquer cavaleiro. Falhar nas demonstrações de virtude e obediência era caminho certo para o Inferno, com letra maiúscula. Qualquer desvio era atribuído à força do Demónio – também com maiúscula. E quem determinava o que levaria ao céu ou ao Inferno era a Igreja, com as suas regras implacáveis.”.
Despojada de tudo o que a caracterizava como Ser único, individual, Teresa ouvia ecoar as palavras “Para sempre” em cada recanto daquele sinistro convento, como se uma eternidade de perda e dor a aguardasse numa qualquer pedra inexplorada do espaço de clausura em que se refugiava.

As primeiras provações, experimenta-as nesse período terrível passado no convento das Agostinianas. À bela jovem por todos admirada sucede-se uma pálida réplica que luta por não se sentir culpada ante a rejeição do seu corpo ao silêncio frio que as paredes do convento lhe devolviam. Teresa adoece. Tudo é controlado, vigiado no convento e a alma inquieta, ávida de vida de Teresa, decai lentamente até lhe restar apenas um imenso cansaço, lágrimas abundantes e a ausência de apetite.

D. Alonso toma conhecimento da doença da filha e leva-a para casa julgando ser esse o remédio para uma rápida recuperação. Mas Teresa continua a “desaparecer”, aquela Teresa alegre e bela de que o pai se recordava, teima em voar para um refúgio distante e desconhecido onde já nem a família tem acesso.
Envia-a para o campo, para junto da irmã mais velha, e é lá que Teresa melhora, pressentindo a presença não do Deus vingador e terrível que lhe impunham no convento e a empurrava para o Inferno, mas do Deus criador e caridoso que a aproximava do Céu.

Restabelecida, foge para onde Deus a conduz: o mosteiro carmelita de Nossa Senhora da Encarnação onde os muros não estão fechados à vida.
A determinação de Teresa torna-se verdadeiramente feroz e é tomada de estranhos arroubos de êxtase traduzidos na mortificação do jejum levado ao limite, da exposição a temperaturas demasiado baixas ou elevadas e da auto-flagelação com urtigas. Teresa fica, mais uma vez, muito doente. É o empenho de quem quer celebrar a sua devoção a Deus com núpcias de sangue oferecendo-lhe a sua veneração perpétua e ilimitada.

Mais uma vez junto da família, desta vez em casa do tio Pedro, este oferece-lhe uma obra que mudaria a vida de Teresa, o “Tercer Abecedário” de Francisco de Osuna.
Teresa coloca-se na situação de ser sugada para “… dentro do livro. As letras desaparecem, as páginas somem-se, o mundo à volta desvanece-se e o texto passa do papel para a nossa mente como uma transfusão. Nessas horas, não parece que estamos a ler, mas a pensar. As ideias formam-se com muita nitidez, e traduzem exactamente o que sentimos – só faltavam aquelas palavras para organizar o que borbulhava informe dentro de nós.”.

E o problema da orientação religiosa inconsistente de Teresa terminou.

Através da constante prática da oração mental, prodigalizada no livro de Osuna, Teresa encontrou o equilíbrio que há tanto buscava apesar do momento em Espanha ser de censura e ódio com o recurso a perseguições e autos-de-fé em que a presença feminina cada vez mais se fazia notar.

Teresa foi uma mulher que abdicou de si, que se entregou à obra de Deus incondicionalmente mas não sem antes perscrutar qual o melhor rumo a seguir dentro das várias “tendências” existentes na Igreja de então.
A severidade nunca lhe assentou bem e era na prática do bem com alegria que Teresa de Jesus, a Santa apaixonada que conversava com Cristo e foi acusada de louca, se sentia realmente pertença de um universo de amor que ajudou a propalar.