domingo, outubro 21, 2007

"É só um filme - Vida e Obra de Alfred Hitchcock

Chandler, Charlotte, É só um filme - Vida e Obra de Alfred Hitchcock (It's Only a Movie), Bizâncio, Tradução de Fernanda Barão, 2006.

É curioso pensar que a carreira de Alfred Hitchcock no mundo do cinema começou em 1920 como desenhador de legendas para filmes mudos e que o seu primeiro trabalho como realizador em “The Pleasure Garden” (1926) decorreu ainda na era do cinema não-falado.
Antes de partir para os Estados Unidos, país onde viria a realizar os seus mais famosos filmes, Hitchcock realiza cerca de 29 filmes em 13 anos de carreira, ou seja, a sua ida para Hollywood é precedida de uma consolidada reputação sobretudo em Inglaterra. A transição de uma indústria madura e estável no seu país de origem, para uma outra porventura mais aliciante naquele momento em particular (1940), era uma opção natural para um realizador com o prestígio firmado de que Hitch gozava naqueles férteis anos criativos. O primeiro filme americano de Hitchcock é o genial “Rebecca” baseado no romance de Daphne du Maurier tendo como protagonistas a “frágil” Joan Fontaine e o “duro” Lawrence Olivier. Trata-se de uma história que vai ao encontro daquilo a que o grande mestre biografado neste livro designa como a sua “obsessão romântica”, obsessão essa que viria a retomar e retratar vezes sem conta (e que já havia reproduzido tantas outras vezes no seu período britânico).
O percurso ascendente de Hitchcock parece não ter conhecido significativas interrupções e, realmente, até 1976, ano em que dirigiu o seu último filme “Intriga em Família” (“Family Plot”), pode-se afirmar que foi dos raros casos no ramo a que se dedicou, em que foi alcançado um equilíbrio harmonioso entre as obras geniais e as meramente interessantes a ponto de não ser possível apontar uma obra deplorável por si levada ao ecrã.
Um dos aspectos mais interessantes deste livro de Charlotte Chandler é o facto de a autora ter conversado sobre a figura de Hitchcock como homem e como realizador com inúmeras personagens reais (especialmente técnicos e actores) que num momento ou noutro se cruzaram com o realizador e deram o seu testemunho fundamentado nas acções de Hitch. Percebemos que a personalidade e acima de tudo o humor muito particular de Hitchcock nem sempre eram compreendidos da melhor forma o que lhe valeu alguns ódios de estimação sendo que o mais badalado terá sido aquele que Tippi Hedren, a protagonista de “Os Pássaros” e “Marnie”, e sua “nova Diva” depois da partida das suas bem-amadas Grace Kelly e Ingrid Bergman, alimentou numa das mais conhecidas aversões de uma actriz face a um realizador.
Revi um destes dias “O desconhecido do Norte Expresso” (versão americana) e ver aquele homem a colocar uma caixa de violoncelo dentro do comboio, naquela que é uma das suas muitas aparições nos seus filmes, fez-me pensar que a fugacidade dessas suas manifestações (nunca mais de 10 segundos) está em claro contraponto com a perenidade da sua obra sempre revisitável.

domingo, outubro 14, 2007

"Basta, Acabar com o genocídio no Darfur e noutros locais" de Don Cheadle e John Prendergast

Cheadle, Don, Prendergast, John, Basta! Acabar com o genocídio no Darfur e noutros locais (Not on Our Watch - The Mission to End Genocide in Darfur and Beyond), Bizâncio, Tradução de Elsa T. S. Vieira, 2007.

Quando o mundo acordou para a realidade do que havia sido o Holocausto – A indignidade dos que foram mantidos vivos e a dos que morreram enquanto viveram, o sofrimento provocado pelas mais variadas formas de tortura e o calculismo com que a solução final foi planeada – a expressão “Nunca mais!” ganhou uma consistência humanitária direccionada ao poder político, bem como ao cidadão comum. Tratava-se de um apelo à eterna vigilância, um apelo à intervenção dos governos e dos cidadãos comuns, à permanente atenção a sinais que indicassem a existência de violação dos direitos humanos em qualquer parte do mundo, contra qualquer povo.
A leitura que hoje vos apresento “Basta! Acabar com o genocídio no Darfur e noutros locais” pretende, precisamente na linha do atrás referido, agitar consciências, chamar as pessoas a agir perante as evidências trágicas transmitidas pelos meios de comunicação social, pelas organizações humanitárias envolvidas na ajuda às populações perseguidas e pelos próprios governos que reconhecem a consistência da informação veiculada pelos seus emissários. Os autores guiam o leitor nas inúmeras possibilidades disponíveis para que uma postura activa nasça ou se consolide na luta pelos direitos humanos no Darfur e noutros locais, na luta pelo fim do lento genocídio organizado pelo governo sudanês e posto em prática pelos janjaweed, as mílicias ao serviço dos propósitos pró-arábes de Cartum.
Segundo Don Cheadle e John Prendergast (Don Cheadle é um conceituado actor que viu despoletar-se em si a necessidade de acção através da participação no filme “Hotel Ruanda” e, de certa forma, simboliza o cidadão comum que até agora assistiu passivamente à tragédia no Darfur; Por seu turno, John Prendergast foi conselheiro da administração Clinton e activista de causas humanitárias sendo, como tal, um profundo conhecedor dos dois lados da barricada), a melhor forma de se conseguir uma acção diplomática concreta e com efeitos palpáveis no terreno, ou seja, consequências na vida constantemente ameaçada dos cidadãos não-árabes no Darfur, é impelir o cidadão comum a um activismo humanitário mais ou menos intenso, mas sempre tendo em consideração que é através da pressão de organizações, associações, congregações e movimentos, que os governos despertam para a urgência de aspectos da agenda política que dificilmente poderão ficar em lista de espera. Acreditam os autores que, instando os governantes por nós eleitos a assumir uma posição interventiva em questões que, pela sua gravidade em termos humanos, ultrapassam as fronteiras de um determinado país, algo pode mudar.
A obra incita-nos a fazer algo pelos darfurianos em particular, mas também nos alerta para outras causas prementes como sejam as graves situações verificadas no norte do Uganda, no Congo ou na Somália. As propostas de acção apresentadas são muito americanas, mas a verdade é que são facilmente adaptáveis a um contexto social europeu, português e até, diria eu, aplicáveis a problemas intramuros.

segunda-feira, outubro 08, 2007

"Pura Anarquia" de Woody Allen

Allen, Woody, Pura Anarquia (Mere Anarchy), Gradiva, Tradução de Jorge Lima, 2007.

A “Pura Anarquia” de Woody Allen é-nos revelada através de um punhado de contos desenvolvidos em torno do conceito de anarquia literária, ou seja, um mundo de palavras escritas onde todas as realidades e personagens que as povoam são plausíveis. O autor diverte-se com as palavras, contamina-nos com a sua pura diversão, criando existências alternativas e, sobretudo, personagens que, num exagero risível, nos conduzem, porventura, a galerias de tipos reais por nós já observados no quotidiano. Este livro é uma revisitação ao subliminar de todos os dias.
Cada conto é um universo imenso de possibilidades infinitas apimentado por um “nonsense” que teletransporta o leitor para os locais e situações mais improváveis. E é esta massa de improbabilidades perfeitamente calculadas ou anarquicamente organizadas na sua pureza literária que gera no leitor uma insaciável vontade de habitar, ainda que apenas nos momentos dedicados à leitura, esses mundos que se inserem neste nosso mundo mesmo que de forma pouco visível.
O ridículo, a combinação de tudo com tudo, a confluência de situações e personagens díspares, eis o que Woody Allen consegue realizar com mestria nesta sua obra.

Eis a minha pequena Pura Anarquia:

Woody Allen aterrou uma avioneta por si pilotada no pequeno aeródromo de Trancoso às 14:53 deste Domingo, tendo sido recebido por um grupo de jovens membros da Associação Bibliófila da Paróquia de Marialva em cujas reduzidas instalações o autor efectuará uma muito aguardada palestra sobre a sua mais recente obra “Pura Anarquia”.
Profundo admirador desta obscura região de Portugal e, em particular, da aldeia da Moura Encantada donde, confessou-nos Woody Allen, é proveniente um seu antepassado de nome Martim, sapateiro de sua ocupação, sepultado em campa rasa no antigo cemitério local, aceitou o convite que lhe foi endereçado pela ABPM de imediato. A inédita visita não foi acolhida por nenhum político já que, deliberadamente, nenhum convite lhes chegou às mãos.
Woody Allen passará a noite de hoje no complexo turístico rural da aldeia que se engalanou para o receber apesar dos já poucos habitantes permanentes de Marialva. Allen manifestou o seu profundo agradecimento às gentes simples da aldeia que tão calorosamente o receberam e revelou a sua estranheza pelo facto de Marialva não ser alvo de estímulos de variada espécie ou atenção por parte do poder político. Encontrou uma aldeia em vias de extinção, sem crianças, e prometeu não deixar cair no esquecimento a cultura e tradição milenares daquela que é uma aldeia histórica de Portugal.