sábado, março 24, 2007

"Todas as Almas" de Javier Marías

Um professor universitário espanhol passa uma temporada a leccionar num dos colégios da Universidade de Oxford e é a narração dos pequenos acontecimentos quotidianos da comunidade académica e das reflexões que os mesmos sugestionam e despoletam no narrador castelhano a que, enquanto leitores, temos acesso através do romance de Javier Marías. A cidade inglesa parece desdobrar-se em três dimensões muito concretas: a Universidade, uma estação de comboios e a memória. Estes dois últimos planos são uma espécie de elo entre o mundo relativamente fechado de uma cidade voltada para dentro de si (e para fora quando muito por meio da erudição livresca, factor libertador e inibitório em simultâneo), egocêntrica portanto, e o mundo exterior de que nos chegam algumas notícias escassas, perdidas no tempo e no espaço. Inevitável é a intercalação da vida e perspectiva pessoais do narrador estrangeiro com o universo quase inenarrável (porque tão real e acessível) que o fascina e que resulta na narrativa conseguida. As dezenas de histórias contidas dentro daquilo que, no fundo, é a história da permanência a prazo do professor madrileno e das cicatrizes que dessa estada curta lhe ficam, desvendam seres peremptórios que, no entanto, escondem por debaixo das togas académicas e dos rituais que as acompanham almas feridas, não inocentes, já que a inocência nem sequer apanágio das crianças é (veja-se o exemplo do filho de Clare Bayes). Os olhos que se cruzam na Universidade não são os mesmos olhos que se cruzam fora dos muros dela e o que pode assemelhar-se a incoerência é, na verdade, o culto da mais pura humanidade – o espírito iminentemente contraditório da nossa espécie. O acaso não existe, qualquer pose ou comentário é fruto de uma pré–determinação primária que o narrador sublinha com uma ironia profundamente espirituosa e sensível na captação dos veios existenciais mais salientes contendo tanto de palpável como de metafísico. E depois há… o lixo. Um passo da obra indicativo da subtileza de um narrador que se socorre do implausível para “provar” que todas as almas são analisáveis e que não há grandes mistérios que possam encobrir: «Quando uma pessoa está só, quando uma pessoa vive só e ainda por cima no estrangeiro, presta uma enorme atenção ao caixote do lixo, porque pode acabar por ser a única coisa com a qual mantém uma relação constante, ou, o que é ainda mais, uma relação de continuidade. Cada saco preto de plástico – novo, brilhante, liso, por estrear – produz um efeito de limpeza absoluta e de possibilidades infinitas. Quando o vamos deitar fora, à noite, é já da inauguração ou promessa de um novo dia que se trata: está tudo por acontecer. Esse saco e esse caixote são às vezes os únicos testemunhos do que acontece durante o dia de trabalho de um homem só, e é neles que vão sendo depositados os restos, os rastos desse homem ao longo do dia, a sua metade descartada, o que decidiu não ser ou guardar, o negativo do que comeu, do que bebeu, do que fumou, do que utilizou, do que comprou, do que produziu e do que lhe chegou. No fim desse dia, o saco e o caixote estão cheios e são confusos, mas foram vistos a crescer, a transformar-se, a formar uma mistura indiscriminada da qual, aliás, esse homem só conhece a explicação e a ordem, como a própria e a indiscriminada mistura é a ordem e a explicação do homem. O saco e o caixote são a prova de que esse dia existiu e se acumulou e foi ligeiramente diferente do anterior e do que se seguirá, ainda que seja igualmente uniforme e o nexo visível com ambos. É o único registo, a única constância ou fé do percurso desse homem, a única obra que esse homem realmente realizou. São o fio da vida, o seu relógio também. Sempre que uma pessoa se aproxima do caixote e deita lá qualquer coisa, volta a ver e a ter contacto com as coisas que deitou fora nas horas anteriores, e é isso que lhe dá um sentido de continuidade: o seu dia está balizado pelas visitas feitas ao caixote do lixo, e lá podem ver-se a embalagem do iogurte de fruta que foi o seu pequeno-almoço, e aquele maço de cigarros de que no começo da manhã restavam apenas dois cigarros, e os envelopes vazios e rasgados que o correio lhe trouxe, as latas de coca-cola e as lascas de um lápis que afiou antes de começar a trabalhar (embora fosse escrever com caneta), as folhas amarrotadas que considerou imperfeitas ou equivocadas, o invólucro de celofane que envolveu três sanduíches, as beatas várias esvaziadas dos cinzeiros, os algodões empapados em água–de–colónia com que refrescou a testa, a parte gorda das carnes frias que comeu distraído para não interromper o seu labor, as informações inúteis recolhidas na faculdade, uma folha de salsa, uma de alfavaca, papel de prata, os bocadinhos de pele e as unhas que cortou, a casca endurecida de uma pêra, o pacote do leite, o frasco do remédio acabado, os sacos ingleses de papel cru e áspero com que os vendedores de livros antigos os embrulham. Tudo se vai apertando e concentrando, tapando e fundindo, e assim se converte no traço perceptível – material sólido – do desenho dos dias da vida de um homem. Fechar e apertar o saco e deitá-lo fora significa comprimir e enclausurar o dia de trabalho que talvez tenha sido marcado apenas por estes actos, pelo acto de deitar fora os restos e despojos, o acto de prescindir, o acto de seleccionar, o acto de discernir o inútil. O resultado do discernimento é essa obra que impõe o seu próprio termo: quando o caixote transborda está concluída, e então, mas só então, o seu conteúdo é desperdício.». Todas as almas são demasiadas para o frágil e instável equilíbrio do mundo e o mundo é demasiado pequeno para se não afundar com o peso das almas errantes… Todas.

sexta-feira, março 16, 2007

"A Ronda da Noite" de Agustina Bessa-Luís

A inexactidão periférica, atributo ímpar de um quadro de grandes dimensões de autoria desconhecida (apesar de a família Nabasco, na pessoa de Maria Rosa, alegar que se tratava de “A Ronda da Noite” original de Rembrandt), alimenta o projecto de realidade dos Nabasco, em cuja posse a obra estaria há várias gerações.
A ambiguidade do quadro proporciona, sobretudo a Martinho Nabasco, uma possibilidade de acompanhamento do movimento da “Ronda” em concordância com as manifestações da sua vida, da família e das pessoas a ela ligadas, tudo através de um feixe de influências em que a luz e a obscuridade se interligam e deleitam com a instabilidade própria de um prematuro dia de primavera. A “Ronda” entra no “espaço” de Martinho como cenário oscilante das suas decisões, medos, aventuras, avanços, recuos, desamores (nunca amores), até se tornar, de forma definitiva, no “espaço” propriamente dito, no qual, para além da Companhia do Capitão Cocq e de Saskia, também Martinho (debilmente) se movimenta.
A duplicidade de planos na tela do Mestre Holandês, bem como o grau de importância de cada um, impele-nos a questionar o intuito verdadeiro da “Ronda” (se é que havia, de facto, uma intenção interpretativa…). A Companhia do Capitão Cocq desloca-se demoradamente na preparação de um qualquer evento não decifrável, mas tão só imaginável. Movem-se estes homens num primeiro plano enganador, um primeiro plano coberto por um manto negro de estaticidade (como que para reter o absoluto do momento), toldado por uma vaga necessidade, pretextando, anunciando apenas o não alinhamento de uma criança no contexto apresentado, uma criança que atravessa a multidão de homens de armas com desembaraço, com segurança e com um imperscrutável meio sorriso no rosto desirmanado. Ela surge num aparente segundo plano, hipótese imediatamente dissipada ante a percepção de que uma aura de luz a envolve num abraço dourado que a dilata na tela, convertendo-a no centro da mesma. Um ponto de luz móvel numa noite escura. E desta cintilação acompanhada de símbolos misteriosos (porque associados a uma figura de criança – a galinha e a pistola à cinta) emana poder, um poder estranhamente superior ao poder bélico que a rodeia; talvez seja o poder da inocência sobre o coração dos homens ou talvez seja o poder de uma memória persistente, inamovível… É uma força celestial, uma força que reside e resiste para além deste mundo mas que, ocasionalmente a ele desce como que para o recordar da sua nulidade perante o Tudo que desconhece.
Saskia flutua na “Ronda da Noite”, faz a sua ronda de Anjo no âmago do constante ímpeto guerreiro do Ser-Humano. A sua mera presença, luminosa, é uma censura não velada à cristalização daquele instante da natureza humana. É o conhecimento do Homem que o vigia na vigília de Saskia, o olho omnipresente de Deus.
A obsessão que a “Ronda da Noite” constitui para Martinho Nabasco vai para além do sentimento de posse que uma obsessão comporta. O estudo, a observação compulsiva da obra transportam-no para a explicação de uma vida, tendo por base a insidiosa obra de Rembrandt. Esquecida, mutilada, relegada para um plano secundário nos haveres dos Nabasco, Martinho e a Avó, Maria Rosa, reabilitam a “Ronda”, apresentam-na à luz do dia como a mais preciosa relíquia da família.
Tal como a pequena Saskia, as mulheres da vida de Martinho não se detiveram na tela, deslizaram para lá do fotograma em que ele as mantinha como peças de museu numa passividade de voyeur.
A obra é por fim destruída pela fúria ciumenta de uma mulher e o “mapa” da vida de Martinho Nabasco desaparece; dos veios sinuosos, das rugas, das marcas que o delimitavam e que apontavam um futuro, restam somente sombras dificilmente adivinháveis da cifra da vida de Martinho, despojo de perplexidades.
A conversão da “Ronda” em imagens desfocadas, espelha-se no desvanecer lento e apagado de Martinho (como os homens do Capitão Cocq na “Ronda”, vagarosos e sem brilho) em contraposição com as mulheres que consigo se cruzaram, estrelas que iluminavam a sua memória como Saskia a “Ronda”.
E Martinho morre na antecâmara de uma ronda nocturna sem regresso, vencido pela fragilidade que é a realidade.

domingo, março 11, 2007

"Persuasão" de Jane Austen

A fortaleza das personagens femininas dos romances de Jane Austen, desponta em toda a sua glória com a heroína de “Persuasão”, Anne Elliot. Por detrás de uma aparência de fragilidade, de submissão incondicional a um pai indiferente e narcisista que vive rodeado de espelhos na mansão da família, e a uma irmã escrava das convenções sociais em vigor, Anne não abdica da sua independência intelectual.
Contudo, a personagem Anne Elliot sofre uma evolução nos dois momentos chave da obra. Enquanto jovem requestada por um simples Capitão da Marinha Britânica sem posição social nem fortuna, ela cede ao peso do parecer familiar: Wentworth não era um partido ao nível da fidalguia que o nome Elliot comportava. Apesar do amor que por ele sentia, Anne cede às exigências familiares, deixa-se persuadir por uma ilusão imposta e termina um noivado que nunca chegara a efectivar-se. Oito anos passados desde a decisão que a mortificara, Anne reencontra o Capitão Wentworth devido ao facto de Sir Walter Elliot se ver obrigado a alugar Kellynch-Hall, a casa no Somersetshire desde sempre habitada pela família, ao Almirante Croft e esposa (irmã do Capitão Wentworth), graças a problemas financeiros. E Anne, ao revê-lo e apesar do desinteresse aparente por ele manifestado, persuade-se de que nunca deixara de o amar. E é esta cedência íntima da heroína à inevitabilidade do seu amor por Wentworth que acompanhamos ao longo da quase totalidade do livro.
Wentworth mostra-se interessado em assentar, agora que conseguira posição e fortuna consideráveis após várias comissões no estrangeiro, no entanto, o orgulho ferido pela rejeição de que fora vítima, a certeza de que a Anne faltava o carácter necessário para impor uma vontade férrea, levam-no a procurar noiva noutra casa de família onde o seu nome não estivesse manchado pela lembrança de um tão ignominioso repúdio. Assim, Wentworth deixa-se também ele persuadir mas pela convicção de que a sua presença junto de uma certa jovem, era entendida como genuíno interesse e cede à possibilidade de ter de, por uma questão de honra, pedir a mão em casamento a Louisa Musgrove.
Preparado que estava para assumir as suas responsabilidades, um incidente com Louisa obriga-a a convalescer na companhia de um amigo de Wentworth e com a ausência deste, um inesperado noivado é dado a conhecer entre ambos. Wentworth estava liberto da suposta obrigação em que se vira enredado.
E desta forma, o antigo sentimento que o unira a Anne aflora-lhe novamente ao coração e deixa-se abandonar, persuadido que finalmente estava de que nunca deixara de a amar, ao fito único de a “acompanhar” onde quer que ela se encontrasse.
Um feliz desencadear de acontecimentos, provocados por acasos duvidosos (parecendo mais “manipulados” por um braço mecânico que consolida as peças da história por forma a que Anne e Wentworth se encontrassem frente a frente desnudados de preconceitos) provocam a compreensão de ambos os envolvidos nesta história de amor, a compreensão de que é inútil fugir ao sentimento que os avassala e de que os outros são apenas isso: Outros. O tempo é dos que se amam e o amor vence sempre. Jane Austen dixit.

sexta-feira, março 02, 2007

"Este é o meu Corpo" de Filipa Melo

Não é esboçada sequer uma tentativa de procura do móbil do crime, embora por detrás de um acto de barbárie se esconda invariavelmente uma «razão», por mais absurda ou incompreensível que possa parecer. A loucura, momentânea ou continuada e declarada, esbarra no «prazer» da morte violenta e a ausência de configuração física que relacione o indivíduo acusado com o acto praticado, ou seja, a sua aparente «normalidade», acaba quase sempre abalada pela descoberta de um qualquer facto traumatizante no decorrer da vida que impele o sujeito a provocar, a infligir aos outros a dor que ele próprio experimentara.
Em «Este é o Meu Corpo» de Filipa Melo, não importa a psique do assassino, nem tão pouco as circunstâncias que o levam a disferir o «golpe mortal»; assistimos antes à «elevação» da vítima a um estádio de ainda vida latente conseguida através da reconstituição existencial do corpo sem identidade, porque irreconhecível quando encontrado.
E é a busca dessa verdade que todo o ser-humano se arroga possuir que transporta os intervenientes da história numa viagem intra-corporal e numa outra extra-corporal, apresentando como limites os seus corpos e memórias pessoais intransmissíveis, e aquele corpo sem rosto e desconhecidas recordações em cada recanto que principia, na autópsia, a sussurrar ao Médico-Legista alguns factos de uma vida breve. Encetado o diálogo, a identidade emerge.

O visível e o invisível. Penetrando no reino do que é somente adivinhável, a mão policial do Médico-Legista desvela os contornos de um «espaço» brutal porque tão real e conduz a investigação analisando os orgãos que contam histórias, vozes que empurram o Médico ao mergulho no inferno da sua solidão e do Ser abandonado à bátega da chuva. Aqui o invisível é transparência, iluminação, manifestação visceral de acontecimentos registados.
A cadeia de abandonos é irónica e sagaz envolvendo todos os participantes da intriga a começar pelo corpo resultante do delito. Um pai abandona uma filha, uma filha abandona um pai, um amigo deixa-se abandonar a uma amiga, um marido abandona uma mulher, uma amante abandona um amante, uma mãe abandona um filho. Mas o abandono nunca é total, tal como o abandono supremo, o abandono à morte, também não é, porque desemboca num encontro ou reencontro, o meio de apaziguar o sofrimento provocado por uma ausência.
Eduarda está morta há pouco mais de um dia e é dissecada pelo Médico-Legista cujo nome nunca chegamos a saber ( e é como se a não-identidade dele e a não-identidade dela os unisse nesse vácuo, e a descoberta gradual dela seja a descoberta gradual dele), contudo, os orgãos intactos, esse interior que tudo revela ( e não é só o cérebro, a «estrela» de uma autópsia, que amalgama os segredos de uma vida; tudo é útil quando um desconhecido esfolado é deitado na maca metálica, operação comparável àquela ida ao psicanalista relatada pelo Médico, simplesmente desta vez o «doente» não evitava recostar-se no divã e não hesitava em desnudar-se por completo até não restarem dúvidas a respeito de significados e implicações) unia-se num apelo pelo apuramento de um nome indiciador de um fio de personalidade confirmada e até ali apenas suspeitada.
A memória de Eduarda sobrevive, resiste à morte física. Amada quando ainda era Eduarda e amada depois de já não o ser por todas as personagens masculinas do romance: António, Miguel, Jacinto e o Médico-Legista, o único que não a havia conhecido em vida. E este homem que conversa com os «seus» mortos não se limita a dissecar mais um cadáver, disseca o porquê do amor que sente pela massa disforme, repugnantemente bela ou de uma beleza repugnante, em que se convertera Eduarda.
A veterinária não se opõe ao impulso assassino de quem a mata, talvez porque adivinhasse o desfecho provável de uma história de amor sem amor, sem muito para contar. Sobraria um corpo, o seu corpo, para testemunhar a banalidade de mais uma morte. Não teria previsto a cruel encenação post-mortem que o carrasco decidira executar.
A multiplicidade de Eduarda (amante, mãe, amiga, filha e desconhecida), comum a todo o ser-humano, é a negação da procurada identidade; a unidade não tem aqui lugar. E gorada uma identidade condensada num nome apenas, numa mexa de cabelo afagada mil vezes ou na forma como todos os dias se dão os bons dias aos outros, restam as identidades, os resíduos insuspeitados na perspectiva de uma autópsia que nunca será a nossa sobre nós próprios.
O corpo virado do avesso é resgatado do olvido porque morto uma segunda vez.