quinta-feira, maio 22, 2008

"O Caroço da Manga" de Augusto Carlos

Carlos, Augusto, O Caroço da Manga, Nova Vaga Editora, 2007.

A busca da felicidade é, porventura, de todas as peregrinações que o Ser Humano enceta no seu tempo de vida, a que mais tempo, consciente e inconsciente, ocupa no espaço último e recôndito de cada um. A alma é incitada a analisar-se, a percorrer cada caminho interior a que cada caminho exterior a conduziu.

A vida repleta de encruzilhadas, assusta e empurra o protagonista de “O Caroço da Manga” a encontrar-se.
Vivera sempre intimidado por um sentimento difícil de caracterizar mas que o impedia de fruir naturalmente das coisas simples da vida, como se nada nem ninguém o pudesse demover da rigidez espartana que o invadia. Uma tensão permanente, uma desconfiança ilimitada nos outros, um medo de se libertar das correntes inibidoras que lhe sugavam a vida paulatinamente… Toda esta inquietação o conduz a um velho homem que vê em Zé Manuel a luz que ele próprio nunca pressentira em si.

A contemplação da natureza inicia-o na arte da observação desinteressada partilhada com Ana Maria. E a descoberta da felicidade através da abnegação, da rendição a uma espiritualidade incorruptível, acolhida com singeleza despretensiosa, desencadeia a grande revolução almejada pela personagem ante o vazio que sempre o habitara.

O Homem que se rebela contra o destino, que o inverte atestando que no teatro do nosso mundo, o poder é detido por nós próprios e que bem no fundo de cada um reside o segredo para um desfecho feliz, eis o que Augusto Carlos nos mostra nesta viagem a mais um admirável mundo novo. O nosso.

domingo, maio 11, 2008

"Procurai a minha face" de John Updike

Updike, John, Procurai a minha face (Seek my face), Civilização Editora, Tradução de Carmo Romão, 2007.

Hope Chafetz, pintora já idosa e mito vivo no mundo das artes por ter sido casada com dois dos mais brilhantes e revolucionários artistas da sua geração, é entrevistada por Kathryn, uma jornalista profundamente conhecedora das circunstâncias artísticas que rodearam a vida de Hope, passada em revista num dia inteiro de perguntas e respostas e silêncios.

O autor concede-nos livre acesso aos momentos em que Hope guarda algo para si, momentos em que não verbaliza toda a torrente de pensamentos que lhe ocorrem, toda a energia vibrante que escutamos como se de algo interdito se tratasse. Hope revela inúmeros aspectos da personalidade de Zack, o seu atormentado primeiro marido, pressentido a entrevistada a cumplicidade de Kathryn face àquele homem desequilibrado que quisera viver depressa e morrera jovem, um James Dean da pintura americana, uma lenda à qual Hope estava eternamente presa.

Assim como o leitor tem conhecimento das impressões que Hope vai coligindo ao longo da entrevista sobre a sua vida que agora desfiava a uma estranha, também acedemos aos monólogos interiores da mulher idosa em relação à mulher jovem que tem diante de si.
Apesar de decidida, Kathryn aparenta resignação. Apesar de surgir como uma independente nova-iorquina, parece tactear no escuro, no reflexo da sua roupa negra, nos seus gestos tensos, pouco hábeis, parece hesitar na sua existência.

Hope aponta mentalmente todas as sensações que a jovem entrevistadora lhe transmite e toma nota das ausências patenteadas pela jovem à medida que verbaliza as suas próprias.

A vida cheia de Hope Chafetz, apesar do presente declínio, contrasta claramente com a deriva, a incerteza do mundo em que Kathryn vive. Escondida no negro, como para que a sua passagem não seja notada, mostra a sua insegurança velada revelada na necessidade de verificar permanentemente se o gravador está ligado nos momentos certos, ou seja, quando Hope faz declarações inéditas. Como se daquela entrevista dependesse a sua vida.

Hope, já trôpega e consciente do pouco tempo que para si virá, analisa, depura toda a circunstância em que se encontra naquele dia de primavera. Disseca a sua vida repleta com a ajuda de Kathryn e examina a mulher que tem diante de si. Sente irritação e comoção, distância e proximidade e, já noite, com a chuva a cair impiedosa, Hope e Kathryn despedem-se para sempre, unidas pelo laço que um dia de revelações mútuas lhes proporcionou.