Não é esboçada sequer uma tentativa de procura do móbil do crime, embora por detrás de um acto de barbárie se esconda invariavelmente uma «razão», por mais absurda ou incompreensível que possa parecer. A loucura, momentânea ou continuada e declarada, esbarra no «prazer» da morte violenta e a ausência de configuração física que relacione o indivíduo acusado com o acto praticado, ou seja, a sua aparente «normalidade», acaba quase sempre abalada pela descoberta de um qualquer facto traumatizante no decorrer da vida que impele o sujeito a provocar, a infligir aos outros a dor que ele próprio experimentara.
Em «Este é o Meu Corpo» de Filipa Melo, não importa a psique do assassino, nem tão pouco as circunstâncias que o levam a disferir o «golpe mortal»; assistimos antes à «elevação» da vítima a um estádio de ainda vida latente conseguida através da reconstituição existencial do corpo sem identidade, porque irreconhecível quando encontrado.
E é a busca dessa verdade que todo o ser-humano se arroga possuir que transporta os intervenientes da história numa viagem intra-corporal e numa outra extra-corporal, apresentando como limites os seus corpos e memórias pessoais intransmissíveis, e aquele corpo sem rosto e desconhecidas recordações em cada recanto que principia, na autópsia, a sussurrar ao Médico-Legista alguns factos de uma vida breve. Encetado o diálogo, a identidade emerge.
E é a busca dessa verdade que todo o ser-humano se arroga possuir que transporta os intervenientes da história numa viagem intra-corporal e numa outra extra-corporal, apresentando como limites os seus corpos e memórias pessoais intransmissíveis, e aquele corpo sem rosto e desconhecidas recordações em cada recanto que principia, na autópsia, a sussurrar ao Médico-Legista alguns factos de uma vida breve. Encetado o diálogo, a identidade emerge.
O visível e o invisível. Penetrando no reino do que é somente adivinhável, a mão policial do Médico-Legista desvela os contornos de um «espaço» brutal porque tão real e conduz a investigação analisando os orgãos que contam histórias, vozes que empurram o Médico ao mergulho no inferno da sua solidão e do Ser abandonado à bátega da chuva. Aqui o invisível é transparência, iluminação, manifestação visceral de acontecimentos registados.
A cadeia de abandonos é irónica e sagaz envolvendo todos os participantes da intriga a começar pelo corpo resultante do delito. Um pai abandona uma filha, uma filha abandona um pai, um amigo deixa-se abandonar a uma amiga, um marido abandona uma mulher, uma amante abandona um amante, uma mãe abandona um filho. Mas o abandono nunca é total, tal como o abandono supremo, o abandono à morte, também não é, porque desemboca num encontro ou reencontro, o meio de apaziguar o sofrimento provocado por uma ausência.
Eduarda está morta há pouco mais de um dia e é dissecada pelo Médico-Legista cujo nome nunca chegamos a saber ( e é como se a não-identidade dele e a não-identidade dela os unisse nesse vácuo, e a descoberta gradual dela seja a descoberta gradual dele), contudo, os orgãos intactos, esse interior que tudo revela ( e não é só o cérebro, a «estrela» de uma autópsia, que amalgama os segredos de uma vida; tudo é útil quando um desconhecido esfolado é deitado na maca metálica, operação comparável àquela ida ao psicanalista relatada pelo Médico, simplesmente desta vez o «doente» não evitava recostar-se no divã e não hesitava em desnudar-se por completo até não restarem dúvidas a respeito de significados e implicações) unia-se num apelo pelo apuramento de um nome indiciador de um fio de personalidade confirmada e até ali apenas suspeitada.
A memória de Eduarda sobrevive, resiste à morte física. Amada quando ainda era Eduarda e amada depois de já não o ser por todas as personagens masculinas do romance: António, Miguel, Jacinto e o Médico-Legista, o único que não a havia conhecido em vida. E este homem que conversa com os «seus» mortos não se limita a dissecar mais um cadáver, disseca o porquê do amor que sente pela massa disforme, repugnantemente bela ou de uma beleza repugnante, em que se convertera Eduarda.
A veterinária não se opõe ao impulso assassino de quem a mata, talvez porque adivinhasse o desfecho provável de uma história de amor sem amor, sem muito para contar. Sobraria um corpo, o seu corpo, para testemunhar a banalidade de mais uma morte. Não teria previsto a cruel encenação post-mortem que o carrasco decidira executar.
A multiplicidade de Eduarda (amante, mãe, amiga, filha e desconhecida), comum a todo o ser-humano, é a negação da procurada identidade; a unidade não tem aqui lugar. E gorada uma identidade condensada num nome apenas, numa mexa de cabelo afagada mil vezes ou na forma como todos os dias se dão os bons dias aos outros, restam as identidades, os resíduos insuspeitados na perspectiva de uma autópsia que nunca será a nossa sobre nós próprios.
O corpo virado do avesso é resgatado do olvido porque morto uma segunda vez.
A cadeia de abandonos é irónica e sagaz envolvendo todos os participantes da intriga a começar pelo corpo resultante do delito. Um pai abandona uma filha, uma filha abandona um pai, um amigo deixa-se abandonar a uma amiga, um marido abandona uma mulher, uma amante abandona um amante, uma mãe abandona um filho. Mas o abandono nunca é total, tal como o abandono supremo, o abandono à morte, também não é, porque desemboca num encontro ou reencontro, o meio de apaziguar o sofrimento provocado por uma ausência.
Eduarda está morta há pouco mais de um dia e é dissecada pelo Médico-Legista cujo nome nunca chegamos a saber ( e é como se a não-identidade dele e a não-identidade dela os unisse nesse vácuo, e a descoberta gradual dela seja a descoberta gradual dele), contudo, os orgãos intactos, esse interior que tudo revela ( e não é só o cérebro, a «estrela» de uma autópsia, que amalgama os segredos de uma vida; tudo é útil quando um desconhecido esfolado é deitado na maca metálica, operação comparável àquela ida ao psicanalista relatada pelo Médico, simplesmente desta vez o «doente» não evitava recostar-se no divã e não hesitava em desnudar-se por completo até não restarem dúvidas a respeito de significados e implicações) unia-se num apelo pelo apuramento de um nome indiciador de um fio de personalidade confirmada e até ali apenas suspeitada.
A memória de Eduarda sobrevive, resiste à morte física. Amada quando ainda era Eduarda e amada depois de já não o ser por todas as personagens masculinas do romance: António, Miguel, Jacinto e o Médico-Legista, o único que não a havia conhecido em vida. E este homem que conversa com os «seus» mortos não se limita a dissecar mais um cadáver, disseca o porquê do amor que sente pela massa disforme, repugnantemente bela ou de uma beleza repugnante, em que se convertera Eduarda.
A veterinária não se opõe ao impulso assassino de quem a mata, talvez porque adivinhasse o desfecho provável de uma história de amor sem amor, sem muito para contar. Sobraria um corpo, o seu corpo, para testemunhar a banalidade de mais uma morte. Não teria previsto a cruel encenação post-mortem que o carrasco decidira executar.
A multiplicidade de Eduarda (amante, mãe, amiga, filha e desconhecida), comum a todo o ser-humano, é a negação da procurada identidade; a unidade não tem aqui lugar. E gorada uma identidade condensada num nome apenas, numa mexa de cabelo afagada mil vezes ou na forma como todos os dias se dão os bons dias aos outros, restam as identidades, os resíduos insuspeitados na perspectiva de uma autópsia que nunca será a nossa sobre nós próprios.
O corpo virado do avesso é resgatado do olvido porque morto uma segunda vez.
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