sábado, novembro 03, 2007

"Tive de o Matar" de Romana Petri

Petri, Romana, Tive de o Matar (Esecuzzione), Cavalo de Ferro, Tradução de Sandra Escobar, 2007.

Lulu, professora numa prisão de mulheres, lutara para resgatar o marido do mundo de inadaptações em que se achava mergulhado desde ainfância e às quais dava forma através da escultura. O estúdio era um santuário ao qual nem a mulher tinha acesso e quando a curiosidade suplantou a submissão obediente, Lulu depara-se com uma amálgama de desusadas perversões esculpidas pelo homem que tentara salvar. Os fantasmas que o atormentavam, eram exorcizados através daquele conjunto de peças sem vida e Lulu compreende a dimensão do seu fracasso, o fim de um honesto intento de o devolver à vida. A predilecção pelo monstruoso, confirma a sua inaptidão para a “vulgaridade” de uma vida em família.
O presente descreve-nos uma mulher perturbada, atormentada por um passado recente angustiante, esquiva face à realidade palpável de uma vida quotidiana normal e que, num dado momento, começa a ver, a ouvir e a dialogar com Alexandre Magno, Lawrence da Arábia e Ricardo Coração de Leão. A fuga em direcção a uma irrealidade, a uma ficção instigadora dos mais primitivos instintos, afigura-se como a única saída para uma alma em busca de libertação.
Os recuos no tempo, aludem a toda a história pessoal de um casamento cujos pilares Lulu susteve até claudicar ante o peso do perdão impossível. As recordações de uma infância feliz povoada pela presença de uma governanta que tinha tanto de anjo como de bruxa, remetem-na para o feitiço da vontade. Aos dezassete anos Lulu invoca a governanta já morta (como ela fazia em vida, soltando os cabelos e atraindo os anjos vingadores) e pede-lhe que a mulher que tentava, sem sucesso, seduzir o pai, morra, e o seu desejo é cumprido. O impossível não existe. Só o perdão é inalcançável porque a justiça não o permite.
A sua vontade é representada pelas três figuras históricas que lhe aparecem, espectros que incitam a tomar a decisão certa, a praticar o acto de libertação, a resolver-se pela tão ansiada paz.
Os crimes passionais são os mais comuns numa prisão de mulheres e Lulu descobre que as motivações das assassinas têm, quase sempre, um pendor justiceiro. O que as impele a matar quem amam é o seu profundo sentido de justiça.
O medo desaparece. As ruas desertificam-se subitamente como que a dar-lhe passagem para cometer o crime imperfeito. Entra no estúdio do ex-marido adormecido e mata-o com uma sarissa. Agora é o momento da fuga definitiva. As coisas terrenas distanciam-se, Lulu evade-se para o infinito.
E lá, em Babilónia, espera-a o dentista, amigo de infância e verdadeiro Amor.

6 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Carla, muito obrigada! :):)
Fiquei com uma ideia mais próxima do livro, a partir da tua sinopse.
Considero o trabalho que fazes um óptimo contributo para elevar a qualidade da nossa blogosfera.
Aproveito para te dar os meus sinceros parabéns por isso! Sobretudo porque procuras sempre cativar, sem impor nada.

A questão que a Romana Petri aborda neste livro, de forma evidentemente ficcional e algo lúdica, parece-me muito interessante mas também importante.
Por sinal, está aí um filme em exibição, e que ainda não vi, mas que coloca a mesma questão. Embora num outro contexto. "A estranha em mim". É com a Jodie Foster.

A questão pode resumir-se no seguinte: é legítimo, em algum caso, fazer justiça pelas próprias mãos? Até que ponto a justiça é matéria individual? Ou remete sempre para o social e, consequentemente, para outras instâncias superiores à simples avaliação individualizada?
É, de facto, tema muito actual nesta nossa era de individualismo.

Beijinhos amigos e bom fim-de-semana! :):)

Carla Gomes disse...

Obrigada pelas tuas palavras elogiosas:)

Nesta nossa era de individualismo, como referes e bem, a busca da paz interior e sobretudo o alcande da mesma é, cada vez mais, um luxo raro, e cada qual tenta alcançá-la das mais diversas formas. E é a punição pela morte o meio mais eficaz de atingir a paz? Fica a sensação de uma justiça cumprida segundo velhos costumes milenares (olho por olho, dente por dente) mas o desassossego porventura crescerá...

Tens razão, são questões importantes e eu, confesso, tendo por vezes e a quente, a adoptar uma postura mais radical, acicatada pela revolta que algumas situações extremas produzem em mim... Mas a frio nada me parece definitivo e muito menos o meu anterior "radicalismo", é complicado;)

Beijinhos amigos:)

Anónimo disse...

Há muito que não te visitava amiga Carla.

Este pedaço do livro demonstra como muitas das convicções por nós tidas como certas podem vacilar... e é verdade, tantas vezes questionamos as nossas verdades e limites, e nunca sabemos ao certo, em alturas extremas, até onde podemos chegar!

Desculpa estar afastado, olha é a vida, tenho de estar mais atento a este teu sítio tão enriquecedor!

Beijinhos

Carla Gomes disse...

És sempre bem-vindo a este espaço!
Este livro tem, de facto, o condão de nos confrontar com os limites dos nossos limites. Perante uma situação extrema de injustiça, até onde chegariamos?

Eu, pessoalmente, não quero saber, não quero chegar ao ponto de ter que o descobrir. Delicio-me antes com estas minhas ficções:)

Obrigado pela tua visita!
Bjs

Anónimo disse...

Excelente resenha... Não conhecia o sítio, mas fiquei com muito boa impressão.

Desejo-te boas leituras.

Fico à espera do próximo post.

Bj

Duarte

Carla Gomes disse...

Obrigado pela visita Duarte:)

Terei muito gosto em que continues a "frequentar" este espaço:)


Bjs