Um professor universitário espanhol passa uma temporada a leccionar num dos colégios da Universidade de Oxford e é a narração dos pequenos acontecimentos quotidianos da comunidade académica e das reflexões que os mesmos sugestionam e despoletam no narrador castelhano a que, enquanto leitores, temos acesso através do romance de Javier Marías. A cidade inglesa parece desdobrar-se em três dimensões muito concretas: a Universidade, uma estação de comboios e a memória. Estes dois últimos planos são uma espécie de elo entre o mundo relativamente fechado de uma cidade voltada para dentro de si (e para fora quando muito por meio da erudição livresca, factor libertador e inibitório em simultâneo), egocêntrica portanto, e o mundo exterior de que nos chegam algumas notícias escassas, perdidas no tempo e no espaço. Inevitável é a intercalação da vida e perspectiva pessoais do narrador estrangeiro com o universo quase inenarrável (porque tão real e acessível) que o fascina e que resulta na narrativa conseguida. As dezenas de histórias contidas dentro daquilo que, no fundo, é a história da permanência a prazo do professor madrileno e das cicatrizes que dessa estada curta lhe ficam, desvendam seres peremptórios que, no entanto, escondem por debaixo das togas académicas e dos rituais que as acompanham almas feridas, não inocentes, já que a inocência nem sequer apanágio das crianças é (veja-se o exemplo do filho de Clare Bayes). Os olhos que se cruzam na Universidade não são os mesmos olhos que se cruzam fora dos muros dela e o que pode assemelhar-se a incoerência é, na verdade, o culto da mais pura humanidade – o espírito iminentemente contraditório da nossa espécie. O acaso não existe, qualquer pose ou comentário é fruto de uma pré–determinação primária que o narrador sublinha com uma ironia profundamente espirituosa e sensível na captação dos veios existenciais mais salientes contendo tanto de palpável como de metafísico. E depois há… o lixo. Um passo da obra indicativo da subtileza de um narrador que se socorre do implausível para “provar” que todas as almas são analisáveis e que não há grandes mistérios que possam encobrir: «Quando uma pessoa está só, quando uma pessoa vive só e ainda por cima no estrangeiro, presta uma enorme atenção ao caixote do lixo, porque pode acabar por ser a única coisa com a qual mantém uma relação constante, ou, o que é ainda mais, uma relação de continuidade. Cada saco preto de plástico – novo, brilhante, liso, por estrear – produz um efeito de limpeza absoluta e de possibilidades infinitas. Quando o vamos deitar fora, à noite, é já da inauguração ou promessa de um novo dia que se trata: está tudo por acontecer. Esse saco e esse caixote são às vezes os únicos testemunhos do que acontece durante o dia de trabalho de um homem só, e é neles que vão sendo depositados os restos, os rastos desse homem ao longo do dia, a sua metade descartada, o que decidiu não ser ou guardar, o negativo do que comeu, do que bebeu, do que fumou, do que utilizou, do que comprou, do que produziu e do que lhe chegou. No fim desse dia, o saco e o caixote estão cheios e são confusos, mas foram vistos a crescer, a transformar-se, a formar uma mistura indiscriminada da qual, aliás, esse homem só conhece a explicação e a ordem, como a própria e a indiscriminada mistura é a ordem e a explicação do homem. O saco e o caixote são a prova de que esse dia existiu e se acumulou e foi ligeiramente diferente do anterior e do que se seguirá, ainda que seja igualmente uniforme e o nexo visível com ambos. É o único registo, a única constância ou fé do percurso desse homem, a única obra que esse homem realmente realizou. São o fio da vida, o seu relógio também. Sempre que uma pessoa se aproxima do caixote e deita lá qualquer coisa, volta a ver e a ter contacto com as coisas que deitou fora nas horas anteriores, e é isso que lhe dá um sentido de continuidade: o seu dia está balizado pelas visitas feitas ao caixote do lixo, e lá podem ver-se a embalagem do iogurte de fruta que foi o seu pequeno-almoço, e aquele maço de cigarros de que no começo da manhã restavam apenas dois cigarros, e os envelopes vazios e rasgados que o correio lhe trouxe, as latas de coca-cola e as lascas de um lápis que afiou antes de começar a trabalhar (embora fosse escrever com caneta), as folhas amarrotadas que considerou imperfeitas ou equivocadas, o invólucro de celofane que envolveu três sanduíches, as beatas várias esvaziadas dos cinzeiros, os algodões empapados em água–de–colónia com que refrescou a testa, a parte gorda das carnes frias que comeu distraído para não interromper o seu labor, as informações inúteis recolhidas na faculdade, uma folha de salsa, uma de alfavaca, papel de prata, os bocadinhos de pele e as unhas que cortou, a casca endurecida de uma pêra, o pacote do leite, o frasco do remédio acabado, os sacos ingleses de papel cru e áspero com que os vendedores de livros antigos os embrulham. Tudo se vai apertando e concentrando, tapando e fundindo, e assim se converte no traço perceptível – material sólido – do desenho dos dias da vida de um homem. Fechar e apertar o saco e deitá-lo fora significa comprimir e enclausurar o dia de trabalho que talvez tenha sido marcado apenas por estes actos, pelo acto de deitar fora os restos e despojos, o acto de prescindir, o acto de seleccionar, o acto de discernir o inútil. O resultado do discernimento é essa obra que impõe o seu próprio termo: quando o caixote transborda está concluída, e então, mas só então, o seu conteúdo é desperdício.». Todas as almas são demasiadas para o frágil e instável equilíbrio do mundo e o mundo é demasiado pequeno para se não afundar com o peso das almas errantes… Todas.
"Quando Portugal Ardeu - Histórias e segredos da violência Política no
pós-25 de Abril" de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)
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Já li e comentei vários livros do Miguel Carvalho neste blogue - *Dentada
em Orelha de Cão* (Campo das Letras), *Aqui na Terra* (Deriva), *Lúcio
Feteira: ...
Há 6 meses
1 comentário:
Sou um brasileiro, adicto a livros. Descobri seu blog ao procurar o texto de Javier Marias "No más amores', que tenho em livro e em uma gravaçào lida por ele. Como queria rever uma passagem, vim ao meu Mac e encontrei seu sítio, que muito me agradou. Permito-me perguntar à ilustre Escritora quem são os autores portugueses mais importantes do momento, à exceção de Saramago e Lobo Antunes, que são os mais encontrados por cá. Meu nome é Gil Vicente Bezerra de Menezes e meu e-mail "gvmenezes@gmail.com . Grato por uma eventual resposta.
Gil Vicente
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