domingo, abril 06, 2008

"Os Milagres do Anticristo" de Selma Lagerlöf

Lagerlöf, Selma, Os Milagres do Anticristo (Antikrists Mirakler), Cavalo de Ferro, Tradução de Liliete Martins, 2008.

“Os Milagres do Anticristo” de Selma Lagerlöf principia com a menção a uma lenda siciliana que profetiza o seguinte: Quando aparecer o anticristo, ele terá exactamente a mesma aparência que Cristo. Nessa época, haverá muita fome e o anticristo irá de terra em terra, dando pão aos pobres e ganhará, assim, muitos simpatizantes.
Baseando-se neste antigo auspício siciliano, Lagerlöf erige uma história em que a troca de uma imagem religiosa sagrada por uma cópia desde então adorada como se da original se tratasse, e o advento do socialismo na pobre e cinzenta Sicília, se confundem num único propósito: A salvação da pequena cidade de Diamante.

Os milagres sucedem-se quando Donna Micaela verbaliza a sua intenção de construir um caminho-de-ferro que abra a minúscula e escondida Diamante ao mundo. Acontecimentos estranhos e extraordinários, sem explicação racional decorrem na acanhada Diamante e o povo atribui a sobrenaturalidade dos eventos perturbadores a que assistem ao Menino Jesus representado na Igreja de San Pasquale, pronto a receber as contribuições dos crentes para o caminho-de-ferro de Donna Micaela.

E o povo pede o fim dos seus males. Pede pela prosperidade da Diamante abandonada pelos poderosos de Roma. Cada um pede pelo seu sucesso pessoal. Pela sua sobrevivência. Pede a terra ao céu.

Entretanto, uma inovadora corrente política, o socialismo, cujos ideais se aproximam dos defendidos pelo cristianismo puro, espalha uma boa nova por toda a desventurada Sicília colhendo alguns apoios mas sendo esmagado pelo poder instituído ao qual estava ligado um cristianismo distante da imaculabilidade inicial.
O socialismo promete a salvação do sofrimento através da luta, da revolução. Só por meio do esmagamento das classes superiores, de um novo começo pela raiz seria possível a construção de uma sociedade igualitária.

E o ambíguo Etna observa, quieto na sua mudez cónica, sempre vigilante ante a imensidão daquela terra árida que se espraiava em todo o seu redor. Entre a terra e o céu.

A convicção na genuinidade da imagem do Menino Jesus e do seu poder milagreiro incrementa a fé da população de Diamante no seu ideal de comunhão com o divino. O Menino Jesus demonstrava o seu domínio todos os dias e o povo sentia as suas necessidades supridas pelo seu redentor. A alternativa não era acolhida com agrado pois agradados já os habitantes de Diamante se encontravam.

Quando acidentalmente se descobre que a imagem adorada possuía uma inscrição que dizia: O meu Reino pertence apenas a este mundo, o povo desperta para a fraude que alimentara. É o momento da revelação. Tudo se justificava com a coincidência, o poder de sugestão, a vontade humana.

Diamante pedira sempre pela concretização material de algum sucesso colectivo ou pessoal, nunca suplicara pela conservação da pureza das almas, pela sua incorruptibilidade. E o verdadeiro cristianismo pressupõe o pensamento direccionado para o diáfano, o etéreo, o invisível, para as coisas do céu. A adoração daquela falsa imagem significou apenas a manutenção de bens e sonhos deste mundo.

A confiança num ícone no qual se deposita toda a fé e que nos pede paciência, perseverança na espera de um milagre ou o seguimento de uma doutrina política, guiado por líderes dominadores de palavra acesa (como uma padre no púlpito), incendiando multidões e instando-as a tomarem o futuro nas suas mãos, eis a possibilidade de escolha que Lagerlöf nos apresenta.

O anticristo não é o anjo caído subversor da crença original, mas sobretudo a alternativa à ordem instituída, o incentivador do livre-pensamento, o libertador das amarras que prendiam o povo ao pré-determinado. O anticristo é a novidade seja ela qual for.
O lirismo dos primeiros tempos do socialismo está presente nesta obra mas com uma subtileza ímpar de quem não pretende impor, mas expor a ideia de que era possível ao ser-humano escolher um caminho próprio. Um caminho terreno. O céu podia esperar.

8 comentários:

Miguel Garcia disse...

Boa noite Carla! =)
Mui sugestivo este post... desconheço totalmente a autora, mas fiquei com vantade de conhecer.
Dois temas que involvem as massas e fanatismo
gostei!
Beijinho

Carla Gomes disse...

Olá Miguel, de Selma Lagerlöf conhecia apenas as histórias infantis mas senti-me impelida a conhecer melhor a obra desta que foi a primeira mulher a ser galardoada com o prémio nobel da Literatura... Lagerlöf escreveu esta obra após uma viagem a Itália que a terá feito reflectir nas questões tão pertinentemente tratadas no livro.

Beijinhos!

Pedro disse...

Conhecia a autora através de um livro fabuloso, "A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia". Gostei muito dessa aventura, e este livro que indicas parece ser também muito original. Fiquei imediatamente interessado.

Um grande abraço

Ana Paula Sena disse...

Uma escritora absolutamente maravilhosa, é o caso desta!!

Não li este livro dela, mas parece-me, pelo que dizes, super interessante!

Bjs!

Carla Gomes disse...

Pedro: Selma Lagerlöf é genial e prova a sua versatilidade ao pular da literatura infanto-juvenil para o romance-romance... É brilhante nas suas várias incursões literárias:)

Abraço:)

Carla Gomes disse...

Ana: Ainda bem que concordas comigo e me acompanhas no entusiasmo por Lagerlöf, é uma escritora fantástica e este livro é um dos muitos milagres literários que nos deixou:)

Beijinhos:)

NLivros disse...

Interessante a tua descrição deste livro.

Conheço Selma Lagerlöf de nome mas nunca li nada. Há muito que está na minha agenda, mas... enfim, com tanta coisa para ler acaba, entre outros, por ir ficando para segundas núpcias.

Carla Gomes disse...

Compreendo-te perfeitamente... Quantos autores e obras adiamos porque temos que optar?

Abraço:)