A degustação do tempo. A sua recusa como passagem transversal de vacuidade. A sua aceitação enquanto usufruto de uma totalidade hedonística. Aqui a vida é composta por generosas movimentações xadrezísticas, cerebrais e emocionais, abstractas e concretas, e é nesse tabuleiro pleno de ressaltos espaciais e temporais que as personagens díspares, incoerentes e profundamente humanas de Kundera se deslocam sem nunca na verdade se deslocarem. Existências longínquas entrecruzam-se sem nunca se cruzarem numa real conjugação de experiências menores ou maiores. E é nesta estaticidade que também é uma circularidade que reside a génese da obra... os tempos e os espaços apenas se tocam, apenas se reconhecem e saúdam graças à lentidão, esse conceito abstracto que parece um rotundo nada, mas que se prolonga em reticências múltiplas até desembocar no concretismo absoluto e talvez por isso mesmo, absurdo. As “peças” humanas estão dispostas numa ordem imperceptível, aleatória, mas lógica e apenas os sentidos desbaratados pelos desafios emotivos proporcionados pelo jogo constante, calculado ou instintivo, que as personagens entre si ou dentro de si e contra si próprias disputam, as fará compreender e assimilar, ainda que casual e inconscientemente, a “matemática existencial”, feita de rectas e curvas e equações e adições e subtrações e muita, muita incerteza. Vejamos o que o narrador nos diz a este respeito: «..., esta experiência assume a forma de duas equações elementares: o grau da lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento.». E é a memória de um acontecimento com dois séculos que reúne dois homens marcados por um rendez-vous único, irrepetível, logo seguido de desencontro amoroso, da amargura do dia seguinte. O inverosímil encontro dos dois homens pertencentes a épocas distintas, levanta o véu do significado da enigmática lentidão que mais não é, afinal, do que a permanência dos afectos no seu imortal cultivo. A lentidão é plural e solidifica-se em raízes inquebrantáveis de velhas árvores seculares.
"Quando Portugal Ardeu - Histórias e segredos da violência Política no
pós-25 de Abril" de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)
-
Já li e comentei vários livros do Miguel Carvalho neste blogue - *Dentada
em Orelha de Cão* (Campo das Letras), *Aqui na Terra* (Deriva), *Lúcio
Feteira: ...
Há 6 meses
Sem comentários:
Enviar um comentário