domingo, janeiro 20, 2008

"Antologia Indispensável" de Flannery O'Connor

O'Connor, Flannery, Antologia Indispensável, Dom Quixote, Tradução de Clara Pinto Correia, 1996.

Trata-se de uma obra de compilação de alguns dos melhores contos da autora americana sendo que, destaco e aqui vos deixo as minhas impressões sobre "A Gente Sã do Campo".
Quem é esta Gente Sã do Campo? Mrs. Hopewell, a personagem do conto de Flannery O'Connor que repetidamente utiliza esta expressão num nítido esforço de exaltação das pessoas aparentemente não conspurcadas pelo "lixo" urbano que distorce a humanidade pura e a que implicitamente alude, dá o exemplo da família Freeman, a família de caseiros que havia quatro anos trabalhava na sua propriedade. De Mr. Freeman apenas sabemos tratar-se de um "bom agricultor", a única personagem ignorada e a única que verdadeiramente se aproxima dos padrões comportamentais próprios das gentes do campo. Contudo, as duas filhas e, sobretudo, Mrs. Freeman são ironicamente retratadas pelo narrador por meio de um premeditado jogo de equívocos em que, naturalmente, o que parece não é. Enquanto Mrs. Hopewell vê em Mrs. Freeman (e também em Manley Pointer) o protótipo da fórmula em torno da qual o conto gira, o leitor atento não poderá deixar de sorrir ante a ingeniosa construção empreendida por Flannery O'Connor: Cada palavra da mulher do caseiro atraiçoa a noção de simplicidade que Mrs. Hopewell pretende conferir a essa espécie de epitáfio inscrito em numerosas páginas do texto. O "monumeno final" é erguido a partir do erro da premissa, uma premissa a que não podemos deixar de atribuir laivos de lugar-comum, atendendo ao contexto de banalidade no qual, outros "clichés" utilizados por Mrs. Hopewell pululam assumindo a funcionalidade específica de frisar a vulgaridade desta mulher: nada é perfeito, é a vida! ou as outras pessoas também têm as suas opiniões. Atentemos agora na reacção da filha de Mrs. Hopewell, doutorada em filosofia, à filosofia barata a que a mãe abusivamente recorria: e a espessa Joy, cuja constante indignação acabara por obliterar todas as expressões da sua face, olhava ligeiramente para o lado, um olhar azul gelado, com a atitude de alguém que atingira a cegueira através da força de vontade e que tinha suficiente determinação para se manter permanentemente nesse estado. Joy, que ao completar 21 anos modificara o seu nome para Hulga numa provocação por meio do "feio" semelhante ao barulho evitável que produzia ao arrastar a perna artificial, insistindo neste "ritual" apenas pela consciência que tem da terrível fealdade do som e consequente incómodo que cria nos "outros". Joy assumidamente se demarca do círculo de gente sã do campo de que Mrs. Hopewell fazia questão de se ver rodeada. No entanto, não será a "pureza vivencial" de Hulga, indo ao extremo de a mãe ainda a considerar uma criança (apesar dos 32 anos e dos vários graus académicos) - Continuava a considerá-la uma criança porque lhe apertava o coração ter que pensar numa rapariga desengonçada que nunca dançara ou tivera qualquer outro divertimento normal. - um dado suficiente para a elevarmos a real representante desta gente sã do campo? Talvez fosse possível assentir nesta hipótese no que diz respeito ao lado criança de Joy mas, na verdade, esta é uma "criança" mutilada com uma perna amputada, um nome amputado, sendo pertinente notar que tanto a prótese da perna como o nome substituto são encarados da mesma forma pela jovem: quando Mrs. Freeman principia a chamá-la Hulga, ela pensa no facto como uma enorme intromissão na sua privacidade; e, mais tarde, quando Manley Pointer, o vendedor de Bíblias, lhe pede para mostrar o local onde a perna artificial se junta ao corpo, Hulga hesita porque tinha a mesma sensibilidade em relação à perna artificial que os pavões têm em relação à cauda. Nunca ninguém lhe tocava a não ser ela. Cuidava da perna como outros cuidariam da alma, em privado e quase que desviando o seu próprio olhar. A perna e o nome... camuflados, escondidos porque reveladores de algo íntimo e inviolável, a privacidade (talvez a única posse de que Joy se podia gabar). A perna e o nome decifrados pela gente sã do campo por excelência (permitam-me acompanhar a ironia da autora...): Mrs. Freeman e Manley Pointer (o duplo engano de Mrs. Hopewell). Ambos nos surgem obcecados pela perna de Hulga: Havia qualquer coisa nela que parecia fascinar Mrs. Freeman e depois um dia Hulga percebeu que era a perna artificial. Mrs. Freeman tinha uma predilecção especial pelos detalhes de infecções secretas, deformidades escondidas, assaltos a crianças. Das doenças, preferia as intermináveis e incuráveis; Manley Pointer, por sua vez, olha para Joy como se estivesse a observar um novo animal fantástico no jardim zoológico. A perna e o nome destacam-se como as únicas características distintivas de Joy porque invulgares, e Mrs. Freeman e o vendedor de Bíblias não passam de dois caçadores de raridades. A mulher do caseiro colecciona através da mera retenção na memória, Manley Pointer apenas se contenta com a posse real, material, e segue um estratagema comum pelo país fora, seduzindo mulheres com deformidades físicas para a prova de amor, a dádiva, se revelar, por fim, uma irremediável perda. A certa altura o narrador afirma que Joy passara por tudo sem dar por nada e, de facto, a relativa independência e absoluta altivez que cultiva, desfazem-se em nada perante a compreensão de que aquele rapaz que se diria pertencer à estirpe dos "eleitos" - a gente sã do campo, o sal da terra - era somente uma encantação demoníaca em código. Hulga julgara cheirar a estupidez dele na maleta onde transportava as Bíblias, como no passado julgara cheirar a estupidez de todos os jovens simpáticos que olhara. Mas dentro das Bíblias estava "Whisky" e o rapazola devoto é um charlatão que se despede de Hulga afirmando o seu total cepticismo face ao humano e ao divino, manifestando crer apenas no despojamento das suas vítimas por amor, o amor ao bizarro. A bizarria de Joy é física, a bizarria dos "outros" dir-se-ia psíquica. Nenhum elemento da galeria de personagens poderá incorporar o quadro da gente sã do campo.O título do conto e o conceito nele presente, servem apenas de simulacro a um universo onde a existência da gente sã do campo é simplesmente impossível.

Terá alguma vez existido uma idade da inocência?

6 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Sei que é uma grande escritora, esta que nos trazes aqui com esta "Antologia Indispensável". O conto a que aludes parece imensamente profundo e interessante. Muito cativante, toda a dimensão de análise psicológica e de crítica social patentes! Cativou-me mesmo!

Deixo ficar beijinhos para ti, Carla! :):)

Carla Gomes disse...

A Flannery O'Connor é uma personalidade única no panorama literário mundial; o conto a que aqui dei este destaque, é de um alcance inimaginável, sou uma grande apreciadora de contos... Sempre me fascinou a concentração de tanto conteúdo em tão poucas páginas:)

Beijinhos Ana:)

Claudia Sousa Dias disse...

Se calhar, não...

É o mais provável.

Voltarei.

Para passar a pente fino o teu blog.

:-)


CSD

Carla Gomes disse...

Obrigada pela tua visita Cláudia:)

Bjs.

Miguel Garcia disse...

Ola Carla!
Tem muito bom aspecto, gostei das imagens que transmitiste!
Tenho de espreitar, numa próxima visita à fnac, essa coleção
um abraço!

Carla Gomes disse...

Recomendo vivamente Miguel, é uma escrita diferente e que retrata situações também elas diversas de tudo aquilo a que estamos habituados.

Abraço:)