A distância desagua no mistério.
E no século XV europeu, as alianças políticas consolidadas através do casamento, socorriam-se da habilidade dos mestres da pintura como Jan Van Eyck para traçarem as formas e feições das mulheres a desposar por um qualquer herdeiro de casa real. E à bruma sucedia-se o palpável e dava-se início à douta avaliação dos homens. E as futuras esposas, moeda de troca dos desígnios maiores dos omnipotentes homens, reduziam-se à sua pequenez, submetiam-se à interpretação variável do pintor, por sua vez dependente do seu mecenas. O seu gesto, a sua disposição, a dureza ou leveza que os traços da sua face declarassem, o olhar frio ou terno que da tela emanasse, tudo dependia do exame do intérprete fiel à sua missão de relato da verdade.
O Duque Filipe de Borgonha, viúvo e afamado pelo seu espírito libertino, incumbe Mestre Johannes de viajar até Lisboa com dois legados por si nomeados afim de se impor o interesse do Duque em desposar a Infanta D. Isabel, filha de D. João I, Mestre de Avis. É evidente que do sucesso de tal empresa, dependia o retrato que Van Eyck pintasse da Princesa.
A Infanta é um enigma para Filipe. Tem trinta e dois anos e permanece solteira. Interessa ao Duque saber porque nunca se casou D. Isabel e o estado em que se encontra decorridos trinta e dois anos de existência. Quer que da obra de Van Eyck transpareçam todas as respostas às suas muitas interrogações. Será bela ou destituída de beleza? Será de carácter submisso ou rebelde? Será ainda donzela? O retrato terá de possuir a transparência que permita, de um relance, desvendar a verdade acerca da Infanta de Portugal, mas o Duque quer apoderar-se igualmente das impressões que o pintor lhe irá transmitir e que possam não estar expressas no quadro.
Acompanhamos a viagem de Mestre Johannes ladeado pelos dois enviados diplomáticos do Duque Filipe, Messire André e Messire Baudoin, bem como do pajem Makhiel que Van Eyck julga tratar-se de um espião instruído por Monsenhor Filipe para controlar a conduta do pintor.
A atribulada jornada prolongou-se por mais de dois meses e quando, finalmente, entraram em Lisboa, após privações de toda a ordem, a Infanta encontrava-se longe da capital.
Os emissários de Filipe entreviram nesta ausência alguma indiferença de D. Isabel à pretensão de Monsenhor, uma espécie de desafio que se sabe breve, mas saboroso pelas ondas de cólera que provocaria.
Van Eyck instala-se no Palácio Real de Sintra, exortado por D. Duarte, o herdeiro do trono português, enquanto a filha do Rei não regressasse do Palácio de Faro, sua residência de Inverno, o que só sucederia por altura da Festa de S. Lázaro.
E eis que a Infanta retorna coberta por um denso véu que lhe esconde a face, entrevendo-se apenas as mãos alvas e jovens que fascinam, desde logo, o pintor.
D. Isabel oculta-se quase em absoluto e deseja fazê-lo durante tanto tempo quanto for possível. Inicia-se o duelo entre o dever e a rejeição momentânea em ceder à obrigação. Ela recusa ser tratada como uma peça de comércio entre nações. Opina, mostra-se arguta e profundamente consciente do seu destino incontornável enquanto mulher. Envia uma aia trajando o seu mais belo vestido para que Van Eyck pinte primeiro o corpo e só depois o rosto que desnudará quando assim o deliberar perante si própria.
Desaparece durante semanas, deixando o pintor entregue a um corpo sem rosto, adivinhando, no entanto, no mesmo, a inscrição de uma personalidade indomável. A Infanta de Portugal é alma e coração muito antes se materializar na tão ansiada fronte que Borgonha espera desvendar os labirintos obscuros da vida de uma mulher diferente.
Quando finalmente descobre o rosto e Van Eyck o pinta, aprovado por toda a baronia portuguesa publicamente, D. Isabel, em privado, pede-lhe um retrato mais sincero, sem omissões da passagem do tempo e roga-lhe que possa olhar Monsenhor Filipe nos olhos mesmo antes de ser sua esposa. O desafio último. Poder encarar o pretendente de igual para igual, aquele que dizia que existia Deus e depois existia ele, subjugado perante o olhar honesto e íntegro daquela que parecia querer dizer que também ela existia.
E Johannes Van Eyck ilumina ainda mais a beleza da Infanta por meio da verdade absoluta. A luz de coragem que sobre ela recai, arreda as sombras do dever a cumprir.
E no século XV europeu, as alianças políticas consolidadas através do casamento, socorriam-se da habilidade dos mestres da pintura como Jan Van Eyck para traçarem as formas e feições das mulheres a desposar por um qualquer herdeiro de casa real. E à bruma sucedia-se o palpável e dava-se início à douta avaliação dos homens. E as futuras esposas, moeda de troca dos desígnios maiores dos omnipotentes homens, reduziam-se à sua pequenez, submetiam-se à interpretação variável do pintor, por sua vez dependente do seu mecenas. O seu gesto, a sua disposição, a dureza ou leveza que os traços da sua face declarassem, o olhar frio ou terno que da tela emanasse, tudo dependia do exame do intérprete fiel à sua missão de relato da verdade.
O Duque Filipe de Borgonha, viúvo e afamado pelo seu espírito libertino, incumbe Mestre Johannes de viajar até Lisboa com dois legados por si nomeados afim de se impor o interesse do Duque em desposar a Infanta D. Isabel, filha de D. João I, Mestre de Avis. É evidente que do sucesso de tal empresa, dependia o retrato que Van Eyck pintasse da Princesa.
A Infanta é um enigma para Filipe. Tem trinta e dois anos e permanece solteira. Interessa ao Duque saber porque nunca se casou D. Isabel e o estado em que se encontra decorridos trinta e dois anos de existência. Quer que da obra de Van Eyck transpareçam todas as respostas às suas muitas interrogações. Será bela ou destituída de beleza? Será de carácter submisso ou rebelde? Será ainda donzela? O retrato terá de possuir a transparência que permita, de um relance, desvendar a verdade acerca da Infanta de Portugal, mas o Duque quer apoderar-se igualmente das impressões que o pintor lhe irá transmitir e que possam não estar expressas no quadro.
Acompanhamos a viagem de Mestre Johannes ladeado pelos dois enviados diplomáticos do Duque Filipe, Messire André e Messire Baudoin, bem como do pajem Makhiel que Van Eyck julga tratar-se de um espião instruído por Monsenhor Filipe para controlar a conduta do pintor.
A atribulada jornada prolongou-se por mais de dois meses e quando, finalmente, entraram em Lisboa, após privações de toda a ordem, a Infanta encontrava-se longe da capital.
Os emissários de Filipe entreviram nesta ausência alguma indiferença de D. Isabel à pretensão de Monsenhor, uma espécie de desafio que se sabe breve, mas saboroso pelas ondas de cólera que provocaria.
Van Eyck instala-se no Palácio Real de Sintra, exortado por D. Duarte, o herdeiro do trono português, enquanto a filha do Rei não regressasse do Palácio de Faro, sua residência de Inverno, o que só sucederia por altura da Festa de S. Lázaro.
E eis que a Infanta retorna coberta por um denso véu que lhe esconde a face, entrevendo-se apenas as mãos alvas e jovens que fascinam, desde logo, o pintor.
D. Isabel oculta-se quase em absoluto e deseja fazê-lo durante tanto tempo quanto for possível. Inicia-se o duelo entre o dever e a rejeição momentânea em ceder à obrigação. Ela recusa ser tratada como uma peça de comércio entre nações. Opina, mostra-se arguta e profundamente consciente do seu destino incontornável enquanto mulher. Envia uma aia trajando o seu mais belo vestido para que Van Eyck pinte primeiro o corpo e só depois o rosto que desnudará quando assim o deliberar perante si própria.
Desaparece durante semanas, deixando o pintor entregue a um corpo sem rosto, adivinhando, no entanto, no mesmo, a inscrição de uma personalidade indomável. A Infanta de Portugal é alma e coração muito antes se materializar na tão ansiada fronte que Borgonha espera desvendar os labirintos obscuros da vida de uma mulher diferente.
Quando finalmente descobre o rosto e Van Eyck o pinta, aprovado por toda a baronia portuguesa publicamente, D. Isabel, em privado, pede-lhe um retrato mais sincero, sem omissões da passagem do tempo e roga-lhe que possa olhar Monsenhor Filipe nos olhos mesmo antes de ser sua esposa. O desafio último. Poder encarar o pretendente de igual para igual, aquele que dizia que existia Deus e depois existia ele, subjugado perante o olhar honesto e íntegro daquela que parecia querer dizer que também ela existia.
E Johannes Van Eyck ilumina ainda mais a beleza da Infanta por meio da verdade absoluta. A luz de coragem que sobre ela recai, arreda as sombras do dever a cumprir.
6 comentários:
Será de certeza um livro muito interessante.há já algum tempo que não leio romances deste género, com um cenário histórico...
CSD
Olá Carla!
Não tenho vindo comentar, mas não deixei de acompanhar este belo espaço!
Este texto lembrou-me uma cena do filme sobre Francisco Goya, quando está a pintar a Rainha...
de facto é uma posição um tanto horrivel, "não posso favorecer muito se não ofendo a pessoa... não posso ser demasiado realista se não culpam-me do insucesso." , lembrou-me também, um pouco mais afastado, o pobre Basil com o dificil cargo de pintar Dorian Gray...
Fui investigar esse retrato da Infanta... não sei se era fidigno da figura da infanta..mas uma coisa é certa não favorece a sua pessoa.
Um beijo**
Gostarei sempre de passar por aqui, Carla!
Aproveito para te desejar uma Boa Páscoa! Bom descanso e melhor convívio com quem mais desejares!
Beijinhos! :)
Cláudia: O enquadramento histórico é muito interessante e é sempre curioso ler autores estrangeiros que escrevem sobre Portugal... Perspectivamos a nossa própria noção do país de uma forma diversa... É mais um quadro a juntar aos muitos que reunimos a propósito de Portugal.
Beijinhos!
Miguel: Pintar retratos dos poderosos nunca terá sido tarefa pacifíca, mas suspeito que a tendência para o favorecimento dos dotes físicos dos mesmos terá sido uma constante ainda que a natureza não lhes tivesse sido favorável... No caso da Infanta, também analisei o retrato que Van Eyck dela pintou e parece não sobressair aquela beleza que o livro gaba... É claro que a imitação do real não é o real pelo que, partimos do princípio que a nossa Infanta seria mais bela do que o retrato demonstra.
E a noção de beleza no século XIV era nitidamente diferente da que possuímos actualmente... E se o Duque Filipe se casou com ela, é porque algo viu naquele rosto, parece que Mosenhor era particularmente exigente...
Beijinhos!
Ana: Uma Feliz Páscoa também para ti e para os teus e obrigado pela tua presença amiga:)
Beijinhos!
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