domingo, junho 15, 2008

"As Velas ardem até ao fim" de Sándor Márai

Márai, Sándor, As Velas ardem até ao fim (A Gyertiák Csonkig Égnek), Dom Quixote, Tradução de Maria Magdolna Demeter, 2007.

Dois amigos com sensibilidades diferentes reencontram-se na etapa final das suas vidas no castelo de um deles, local onde se concentram todas as memórias comuns, todos os quadros de união e clivagem entre ambos.

Não se viam há quarenta e um anos e, no entanto, essa ausência, esse espaço que se criara entre eles e que fora preenchido por anos de inquietude e por uma paciência rendilhada de íntimas certezas, era uma quase garantia de que se voltariam a encontrar, de que tudo o que fora dito apenas com a argúcia do olhar seria, no momento do reencontro, proferido por meio de palavras audíveis, com a objectividade que a espera de décadas tornara possível.

Konrád era proveniente de uma família que vivia com dificuldades e que se sacrificara para o enviar para a Academia militar, já ao General era-lhe proporcionada uma vida de abastança e a escolha da carreira militar tinha tanto de natural como de genuína inclinação do garboso jovem sem génio artístico, prático e racional nas suas preferências.

O amigo rico torna-se “protector” do amigo pobre complementando-se como companheiros inseparáveis. A amizade que os une é pura e inequívoca mas à medida que as suas personalidades se vincam pendendo a índole de um para a música e a de outro para as coisas da guerra, demonstrando até incompreensão e desprezo pela “utilidade” da música, a sua amizade dilui-se na perplexidade, na descoberta de que o outro é, afinal, diferente, fraco por se entregar à arte em detrimento da entrega à pátria, incapaz por não reconhecer a improficuidade do solo que escolhera pisar, a infertilidade da semente que ousara lançar.

A amizade cedia terreno à ruptura definitiva.

O General casa-se com Krisztina e também ela é diferente.

Numa caçada Kónrad aponta a arma ao amigo e este, apesar de se encontrar de costas, pressente a tentação e principia uma reflexão sobre o que motivara aquele momento e essa meditação dura quarenta e um anos porque Kónrad parte, desaparece sem deixar rasto.

Quarenta e um anos dura a espera do General para confrontar o amigo com a traição que fora cometida por ele e por Krisztina, a que também diverge da normalidade e ordem incorporadas pelo General.

A reconciliação ou pelo menos uma espécie de paz que lhe permitam terminar os seus dias com a tranquilidade dos que procuram a verdade é o que os dois homens perscrutam à luz das velas que ardem até ao fim na longa noite de confidências.

9 comentários:

Pedro disse...

Estou com esperanças de adquirir este livro. Parece-me muito bom, o único problema é mesmo saber quando é que terei esta oportunidade... *suspiro*

Carla Gomes disse...

Este é, definitivamente, um livro a adquirir Pedro, uma obra que frustra os incautos que julgam saber escrever;)

Anónimo disse...

Li este livro há relativamente pouco tempo e simplesmente adorei a escrita de Sándor Márai: tão leve, tão fluída.
Contudo, no final do livro fiquei um pouco desapontada, porque esperava mais esclarecimentos, um contacto mais íntimo, uma despedida mais solene... :P
Agradeço o link para o meu blog - foi assim que conheci o "À Margem" - e coloquei o seu no meu. Gostei muito deste espaço, voltarei!

emedeamar disse...

Também li este livro apenas há cerca de 2 meses e congratulei-me com este seu texto. De facto, quer pela destreza/mestria técnica da escrita de "as velas", quer pela provocação diversificada nos leitores (o 1/3 final do livro é uma pérola de densidade! ui!) merece ser lido e, creio, conhecermos o seu autor. Quanto ao final, confesso que achei "brutal" a "solução-sem solução" ou o Grande Silêncio a que narrador e personages são remetidos :-) adorei. Creio, aliás, que pela grandeza da solução, vale a pena reler-se essa parte. ( Talvez - e dirijo-me a quem comentou aqui como djamb - talvez seja essa novidade tão bem construída que tenha provocado a sua sensção de desapontamento. Ora releia!)
:-)
Ah! tomei a liberdade de "linkar" este e os outros seus blogues, Carla, aos meus... :-)
Cordialmente, maria toscano

Carla Gomes disse...

Djamb: Qual o endereço do seu blog para o poder linkar ao meu? Obrigado pelo testemunho aqui deixado:)

Carla Gomes disse...

Maria: É uma obra de beleza perturbadora de facto... Obrigado pela passagem no À Margem, o seu blog já se encontra nos meus links também:)

Teresa Santos disse...

Este livro - este "mais que livro" por ser uma obra prima da escrita -é um hino à Amizade, aos sentimentos mais nobres vivenciados pelo Homem, configurados aqui nas personagens dos dois amigos.
Faz parte dos meus livros de cabeceira, dado o prazer intelectual e espiritual que proporciona.
Faz-nos acreditar no Homem, ainda!...
A ler e reler, sempre.

P.S. Se quiser visitar o meu recém nascido Blog, terei muito prazer...

Carla Gomes disse...

Teresa: Obrigado pela visita ao À Margem e pelo comentário aqui deixado; de facto, "As Velas Ardem até ao Fim" é daquelas obras que não se limitam a permanecer na nossa memória, eternizam-se num lugar especial que reservamos às coisas mais inesquecíveis e esta é uma leitura, por tudo e mais alguma coisa, que guardo religiosamente nesse espaço:) Este ano espero ler mais obras de Sandor Marai, anseio por isso...
Já visitei o seu blog, já inseri o link no meu e acompanhá-lo-ei daqui por diante:)

Teresa Santos disse...

Carla. Obrigada pela sua visita. Espero que continue, que vá gostando,que diga coisas.

Ainda sobre o nosso amigo Sándor, neste momento estou a ler os "Rebeldes". Quem lê e relê este Homem, compreende que o seu fim só poderia ter sido o suícidio. Sensibilidades destas têm uma imensa dificuldade em se adaptar ao nosso mundo "pequenino".

Abraço.