Varsóvia é libertada em 1945. Nesse mesmo ano, nessa mesma cidade palco da sua história, Wladyslaw Szpilman escreve a primeira versão de «O Pianista». É dos escombros de um mundo perdido que a sua voz se eleva. Qual o som da solidão?
Wladyslaw Szpilman é pianista na Rádio Polaca em Varsóvia quando, em finais de Agosto de 1939, as tropas nazis sitiam e, por último, ocupam a cidade, ocupação essa que se prolongará até ao final da guerra. Afixada a progressiva supressão de liberdades cívicas e humanas, numa fase inicial, em proclamações com parágrafos especialmente dedicados a judeus (nos quais era garantida a segurança de pessoas e bens) e, mais tarde, assumindo a forma de decretos crescentemente repressivos dirigidos à comunidade judaica em exclusivo, assim estava a ser preparado o terreno para a criação do ghetto de Varsóvia que chegaria a albergar cerca de meio milhão de judeus e que os alemães, num comentário oficial, designaram por «bairro judaico» já que, segundo um jornal do regime, «os alemães eram uma raça demasiado culta e magnânima (…) para confinar até mesmo parasitas como os judeus em ghettos, um remanescente medieval indigno da nova ordem da Europa. Em vez disso, haveria na cidade um bairro judaico onde só viveriam judeus, no qual desfrutariam de total liberdade e poderiam continuar a praticar os seus costumes e a sua cultura raciais. Por razões puramente higiénicas, esse bairro seria cercado por um muro, para que o tifo e outras doenças dos judeus não se propagassem a outras partes da cidade.». Szpilman e a família encontram-se entre os «escolhidos» que são encarcerados no ghetto – o absurdo dessa realidade com aparência de liberdade é sublinhada pelo narrador ao declarar: «Eu saía muitas vezes, para caminhar ao acaso, e encontrava inesperadamente um desses muros. Barravam-me o caminho quando queria continuar a andar e não havia nenhuma razão lógica para me deter» – e é o relato dessa vivência gradativamente precária em conformidade com o plano alemão de eliminação (que macabramente apelidaram de «educação social apropriada») dos «parasitas do organismo saudável dos povos arianos» que o protagonista nos revela, recorrendo à descrição crua de factos sem, no entanto, manifestar ódio face aos usurpadores da sua e de tantas outras vidas. Prefere ironizar como quando lhe é sugerido tocar no casino do comando de extermínio alemão «…, onde oficiais da Gestapo e das SS se distraíam, à noite, depois de um dia cansativo a assassinar judeus.».
O pianista nunca cessa de o ser. Instado por um amigo ou protector a sentar-se frente a um qualquer piano miraculosamente poupado aos efeitos do abandono ou à simples pilhagem, sente os dedos rígidos a «moverem-se com relutância sobre as teclas» e o som parece-lhe «irritantemente estranho» como se também a música, à semelhança daquele mundo em ruínas, se aproximasse do fim. A vinda de cada Inverno, anunciado pela mudança de cor das folhas das árvores da Aleje Ujazdowskie e pelo «vento que soprava mais frio de dia para dia», aliado ao duro trabalho braçal (é um dos escravos que trabalha na demolição dos muros do ghetto), provoca-lhe a ansiedade de quem depende dos dedos para poder pensar numa futura carreira como pianista. Sim, mesmo vivendo na permanente dúvida de quando chegaria a sua vez de entrar nos vagões de gado desinfectados da Umschlagplatz onde partilhara a última refeição com a família, mesmo assim Szpilman pensa num futuro baseado no único bem que lhe resta do período anterior à guerra.
Esta é também uma história de fantasmas, ausências e solidão, e de como dessa absoluta solidão dependia a sobrevivência de Szpilman, dolorosamente consciente da subserviência que deve ao silêncio. E do inverosímil encontro entre a presa e o caçador que, afinal, nada mais era do que um homem deslocado, um homem que corou quando teve que admitir, perante a pergunta do polaco, que era alemão.
Como afirma Andrzej Szpilman no prefácio, o seu pai não é escritor. Mas é a este não-escritor que devemos um retrato desapaixonado, mas não desgarrado, poético a espaços (eis um exemplo: «As penas das almofadas rasgadas entupiam as valetas e encontravam-se por todo o lado: cada sopro de vento levantava grandes nuvens delas, que turbilhonavam no ar como uma densa queda de neve em sentido inverso, da terra para o céu»), da criação e destruição do ghetto de Varsóvia e de como as almas que nele habitavam se tornaram parte da solução final nazi desde o início.
O som da solidão é um comboio que se afasta.
Wladyslaw Szpilman é pianista na Rádio Polaca em Varsóvia quando, em finais de Agosto de 1939, as tropas nazis sitiam e, por último, ocupam a cidade, ocupação essa que se prolongará até ao final da guerra. Afixada a progressiva supressão de liberdades cívicas e humanas, numa fase inicial, em proclamações com parágrafos especialmente dedicados a judeus (nos quais era garantida a segurança de pessoas e bens) e, mais tarde, assumindo a forma de decretos crescentemente repressivos dirigidos à comunidade judaica em exclusivo, assim estava a ser preparado o terreno para a criação do ghetto de Varsóvia que chegaria a albergar cerca de meio milhão de judeus e que os alemães, num comentário oficial, designaram por «bairro judaico» já que, segundo um jornal do regime, «os alemães eram uma raça demasiado culta e magnânima (…) para confinar até mesmo parasitas como os judeus em ghettos, um remanescente medieval indigno da nova ordem da Europa. Em vez disso, haveria na cidade um bairro judaico onde só viveriam judeus, no qual desfrutariam de total liberdade e poderiam continuar a praticar os seus costumes e a sua cultura raciais. Por razões puramente higiénicas, esse bairro seria cercado por um muro, para que o tifo e outras doenças dos judeus não se propagassem a outras partes da cidade.». Szpilman e a família encontram-se entre os «escolhidos» que são encarcerados no ghetto – o absurdo dessa realidade com aparência de liberdade é sublinhada pelo narrador ao declarar: «Eu saía muitas vezes, para caminhar ao acaso, e encontrava inesperadamente um desses muros. Barravam-me o caminho quando queria continuar a andar e não havia nenhuma razão lógica para me deter» – e é o relato dessa vivência gradativamente precária em conformidade com o plano alemão de eliminação (que macabramente apelidaram de «educação social apropriada») dos «parasitas do organismo saudável dos povos arianos» que o protagonista nos revela, recorrendo à descrição crua de factos sem, no entanto, manifestar ódio face aos usurpadores da sua e de tantas outras vidas. Prefere ironizar como quando lhe é sugerido tocar no casino do comando de extermínio alemão «…, onde oficiais da Gestapo e das SS se distraíam, à noite, depois de um dia cansativo a assassinar judeus.».
O pianista nunca cessa de o ser. Instado por um amigo ou protector a sentar-se frente a um qualquer piano miraculosamente poupado aos efeitos do abandono ou à simples pilhagem, sente os dedos rígidos a «moverem-se com relutância sobre as teclas» e o som parece-lhe «irritantemente estranho» como se também a música, à semelhança daquele mundo em ruínas, se aproximasse do fim. A vinda de cada Inverno, anunciado pela mudança de cor das folhas das árvores da Aleje Ujazdowskie e pelo «vento que soprava mais frio de dia para dia», aliado ao duro trabalho braçal (é um dos escravos que trabalha na demolição dos muros do ghetto), provoca-lhe a ansiedade de quem depende dos dedos para poder pensar numa futura carreira como pianista. Sim, mesmo vivendo na permanente dúvida de quando chegaria a sua vez de entrar nos vagões de gado desinfectados da Umschlagplatz onde partilhara a última refeição com a família, mesmo assim Szpilman pensa num futuro baseado no único bem que lhe resta do período anterior à guerra.
Esta é também uma história de fantasmas, ausências e solidão, e de como dessa absoluta solidão dependia a sobrevivência de Szpilman, dolorosamente consciente da subserviência que deve ao silêncio. E do inverosímil encontro entre a presa e o caçador que, afinal, nada mais era do que um homem deslocado, um homem que corou quando teve que admitir, perante a pergunta do polaco, que era alemão.
Como afirma Andrzej Szpilman no prefácio, o seu pai não é escritor. Mas é a este não-escritor que devemos um retrato desapaixonado, mas não desgarrado, poético a espaços (eis um exemplo: «As penas das almofadas rasgadas entupiam as valetas e encontravam-se por todo o lado: cada sopro de vento levantava grandes nuvens delas, que turbilhonavam no ar como uma densa queda de neve em sentido inverso, da terra para o céu»), da criação e destruição do ghetto de Varsóvia e de como as almas que nele habitavam se tornaram parte da solução final nazi desde o início.
O som da solidão é um comboio que se afasta.
3 comentários:
li o livro e vi o filme... mas o livro é muito melhor pq é mais profundo... boa escolha
Obrigado pelo comentário; também vi o filme e o livro é realmente mais completo no que abarca, não desmerecendo a película de Polanski que é fabulosa...
Ainda há poucos dias escrevi sobre este "O Pianista". Gostei muito e penso este livro se torna muito importante no relato de acontecimentos durante este período. Também vi o filme e penso que a adaptação está muito bem conseguida embora o livro - naturalmente - seja mais pormenorizado e envolvente.
Boas leituras!
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