sábado, fevereiro 17, 2007

"A Senhora dos Açores" de Romana Petri

O aquém do além azul. Mundos paralelos amalgamados, um pacto de união na aprendizagem, um percurso a céu aberto para abrir um trilho interior.
O título do livro desconcerta pelo que contém de dádiva e de egoísmo, pela fusão conseguida e de cujo conseguimento não estava certa, um meio para atingir um fim, a surpreendente forma de construção de uma identidade inconsistente, impalpável e invisível como os segredos segredados pelas figuras fantasmais da ilha e em flagrante contraste com os nomes dos cúmplices da travessia em quase todos os capítulos desfiados.
Tal duplicidade no nome atribuído à obra, não poderia deixar de estar em sintonia com o próprio conteúdo de «A Senhora dos Açores» já que é, em simultâneo, um panegírico às mulheres açoreanas, divinizadas na sua simplicidade redentora e à italiana, narradora e protagonista da história, elevada por ela mesma a um patamar se não divino, pelo menos semidivino, na espécie de martírio da sua Via Sacra.
O nome desmascara sempre uma franja de personalidade, liberta, permite resvalar da página uma sugestão de pessoa, ainda que incorrecta ou precipitada, um indício de Ser que, enquanto leitores, pretendemos (re)conhecer. E é deste (re)conhecimento que nos socorremos, é dele que partimos, é ele que nos orienta nos meandros do enredo, na psicologia específica da personagem. Simplesmente, esta personagem sem nome, narradora da sua própria aventura de descoberta de si e de descoberta dos outros como veículo para chegar a si, não se apresenta, cai na página somente como uma mulher de uma terra distante que surgiu distante, numa fase inicial, ao meu olhar de leitora.
Começo por não a compreender, falta-lhe força vital, um não sei quê que habilita a personagem de romance a andar pelo seu pé, a discorrer uma existência independente e não orfã. Se ela “morre” antes de concluída a leitura, ou algo não está bem ou estamos perante uma estratégia literária a deslindar. E assim vislumbrei-lhe uma motivação crescente que foi assim como um brilhozinho nos olhos da personagem, brilhozinho esse que, naturalmente, não vi, mas bem senti. A motivação advém dos outros, dos que têm nome e identidade com fibra, dos que a contaminam com aquilo que procura: o conhecimento das coisas simples. Busca o molde de si nas gentes da terra, na própria terra, é gradativamente talhada pelos que se cruzam no seu caminho num processo pessoal equiparável ao fenómeno mais lato da própria ilha que decidiu habitar: no esvaziamento adivinha-se o ressurgimento. É uma esperança que resiste. Os Açores são uma concha, oca, como a mulher perdida nessa inquietude serena que, não obstante, a avassala, oca pela indefinição eternamente flutuante de quem a povoa, é a gente de fora que vem de dentro e os fantasmas vivos ou mortos, que são a essência da ilha. Os vivos proporcionam excursos aos reinos impalpáveis da morte com contornos de fantástico, uma quase não-morte pelo que detém de festivo, de real, de subsistente. E parece esse mundo ter-se tecido em torno da fragilidade sedenta do sobressalto interior que um encontro indesejado ou improvável consigo traz que a estrangeira possui, competindo-lhe avaliar do grau de pureza das realidades extremas que com ela esbarram como que recomendadas pelos amigos, mentores do seu ritual de (re)iniciação à vida. Tudo é uma imensa segunda oportunidade, uma viagem ao centro daquela terra e ao centro da mulher extraviada da sua rota. A não-revelação inicial prende-se com a ausência de auto-conhecimento.
Há uma negação do Ser porque há um desconhecimento do Ser.
Desembarca nos Açores com o fito único de se instalar numa casa com vista para o mar, como se no mar se pudesse reencontrar, mulher perdida de si. É no mar, mas também nos sabores e cheiros e silhuetas, na restauração do primarismo esquecido algures na frequência das urbes onde as velhas tradições e as velhas sensações a custo sobrevivem que repousa a verdade essencial por isso a ruralidade ainda palpitante dos Açores começa por colidir com a nebulosidade das ideias pré-concebidas de alguém dominado pelo medo do outro. A estrangeira receia o nativo, mas o nativo recebe-a em sua casa, acolhe-a sem perguntas e ensina-a a viver do que existe aqui e agora.
A pureza dos bons envergonha quem não acredita.
Da dádiva renasce o ego, da multiplicidade emerge a unidade, o paraíso perdido, agora reencontrado através dos outros. É desta relação de dependência que germina um conceito de personagem a cujo crescimento assistimos. E é tão bom crer na possibilidade de reforma do Ser.

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