domingo, setembro 28, 2008

"O Hóspede" de Marie Belloc Lowndes

Lowndes, Marie Belloc, O Hóspede (The Lodger), Quidnovi, Tradução de Mário Dias Correia, 2008.

O pano de fundo deste policial intenso é a nevoenta Londres de fim de século de onde emerge um novo tipo de criminoso, uma nova forma de fazer jornalismo e novas técnicas policiais que pudessem desvendar a identidade do homem que espalhava o terror nas madrugadas londrinas e que se auto-denominava como “O Vingador”.

Um casal de serviçais de meia-idade retirados da vida activa, Mr. e Mrs. Bunting, levam uma vida tranquila mas de muitas dificuldades e, apesar de terem um anúncio a indicar que possuem um quarto para alugar, passa muito tempo até surgir alguém interessado nos aposentos propostos. Só quando já haviam atingido um estado de quase desespero é que aparece um inquilino interessado e aparentando uma generosidade que deixa os Bunting aliviados perante a perspectiva de abismo sem retorno que haviam entrevisto apenas algumas horas antes.

Mr. Sleuth, o hóspede, é um homem estranho, possuidor de hábitos fora do comum, mas para o casal ele transforma-se no seu anjo salvador e relegam as suas rotinas pouco usuais para um plano secundário, interessando-lhes unicamente o facto de Sleuth ser educado, cumprir as suas obrigações como inquilino e contribuir para a harmonia da casa com a sua postura plácida, embora excêntrica.

A avidez com que toda a cidade acolhe as notícias diárias da imprensa acerca de desenvolvimentos no caso do Vingador, torna Mrs. Bunting mais esclarecida e atenta, e sendo uma profunda conhecedora dos passos de Mr. Sleuth, apesar de o hóspede a repelir quando se verifica uma maior aproximação, Ellen Bunting começa a pressentir que na estranheza de Sleuth reside algo mais do que pura extravagância de um solitário… Talvez o homenzinho que tão determinantemente entrara nas suas vidas para os salvar da miséria certa, não fosse tão cândido quanto aparentava, talvez a sua inocência não fosse tão absoluta.

Ellen Bunting aguçou os seus sentidos. As saídas nocturnas do hóspede já não lhe pareciam tão inócuas, os seus movimentos no andar de cima, no quarto alugado, causavam-lhe preocupação e a própria indumentária do inquilino passou a ser atentamente inspeccionada com discrição por Mrs. Bunting.
Procurava não se perder em pensamentos que a aterravam e que não partilhava com o marido mas, invariavelmente, o seu sono cada vez mais intranquilo transportava-a para a relação entre o simulado pacifismo de Sleuth e os crimes hediondos que quase todos os dias eram anunciados na imprensa sensacionalista.

Vivia no terror permanente de que alguma pista conduzisse a Scotland Yard a sua casa, à sua perigosa fonte de sustento e cada batida insuspeita na sua porta era motivo de sobressalto e inquietação, cúmplice que agora se sentia de acções imputadas a um louco.

Baseado nos acontecimentos que absorveram Londres no final da década de 80 do século XIX, nomeadamente o aparecimento de um assassino que matava prostitutas e se auto-intitulava “Jack, o estripador”, este é um policial refinado, muito bem conduzido pela autora, esplendidamente escrito e recheado de personagens com uma densidade psicológica rica e não desnecessariamente complexa.
Hitchcock baseou-se nesta obra de Marie Belloc Lowndes para realizar o seu “The Lodger, a story of the London Fog” de 1927, reconhecendo o potencial extraordinário de uma obra caída no esquecimento e cujo ressurgimento agradecemos à Quidnovi.

domingo, setembro 21, 2008

"Pânico" de Jeff Abbott

Abbott, Jeff, Pânico (Panic), Civilização Editora, Tradução de Cristina Gomes e Susana Paulino, 2006.

Um jovem e bem sucedido realizador de documentários vê-se envolvido numa intrincada história de morte e espionagem, perseguido por um homem cuja motivação dúbia parece implicar a sua própria agora questionável identidade.

O cosmos pessoal de Evan Casher começa por ser seriamente abalado quando recebe um telefonema ansioso da mãe pedindo-lhe que vá ter com ela e acaba por desabar no momento em que a encontra morta na casa da família em Houston em circunstâncias brutais.
Este acontecimento arremessa-o para um mundo irregular, imprevisível no qual surgem personagens que o pretendem guiar na descoberta da sua verdadeira identidade e outras que boicotam a sua determinação em desvendar a identidade do assassino da mãe e em simultâneo descobrir o paradeiro do pai.

A busca de Evan resume-se a uma cruzada particular cuja principal motivação é a descoberta do responsável pela morte da mãe, no entanto, pelo caminho, depara-se com factos que o obrigam a questionar toda a realidade familiar vivenciada ao longo dos anos e que se lhe apresenta agora como difusa, uma existência paralela mantida na penumbra e que agora lhe surge como um conjunto de imagens desfocadas da vida que conhecera até então.

As origens comuns dos pais e do assassino da mãe, o sequestro consentido do pai, a relação de improvável parentesco entre eles, a conspiração e a espionagem/ contra-espionagem que pautam a vida de crianças agora homens e mulheres educadas para o fim único de seguirem cegamente as ordens de um governo assim que ultimados, tornam esta obra de Jeff Abbott apelativa a um universo de leitores particularmente interessados em questões relacionadas com teorias da conspiração e em construções narrativas de proeminência dialogal.

O ruir do mundo de certezas em que crescera, manifesta-se a Evan sob a forma do pânico que empresta o nome ao livro.
A segurança, a impressão de protecção, limitavam-se a ser uma ilusão alimentada por um governo manipulador, pouco consciente de que a mente humana não é totalmente controlável e que basta um membro perturbado num grupo para que a engrenagem vacile.

Mas é também este pânico inicialmente paralisante que acaba afinal por emprestar a Evan a força por vezes sobre-humana com que enfrenta os seus inimigos.

domingo, setembro 14, 2008

"Expiação" de Ian McEwan

McEwan, Ian, Expiação (Atonement), Gradiva, Tradução de Maria do Carmo Figueira, 2008.

O dia da revelação do amor entre Cecília e Robbie coincide com o dia de perda de inocência de Briony. Assistimos a essa libertação repentina do mundo de bonecas e peças de teatro infantis em que vivia, a esse “crescimento” súbito da criança dotada que Briony dava mostras de ser e, estarrecidos, compreendemos que um último resquício da imaginação fértil da criança ainda reside na jovem, domina-a como se da última travessura pueril se tratasse.

Um simples acontecimento visto aos olhos distantes de Briony e aos olhos próximos de Robbie, assume proporções diferentes e é interpretado de formas distintas por ambos.
Cecília mergulha na fonte. A imagem da irmã encharcada, semi-nua em frente a Robbie, denota uma fragilidade inexistente mas que para Briony, se torna motivo suficiente para intimamente olhar para Robbie como uma ameaça à delicadeza da irmã e ela, Briony, como adulta responsável, sente como seu dever proteger a irmã do olhar demasiado perscrutador de Robbie.
Robbie encarava Cecília desconcertado. Era uma figura familiar e estranha em simultâneo saída da água, que entrara na água com intrepidez, com a determinação corajosa de mostrar que nada a perturbava. E frente a ele, com a pouca roupa colada ao corpo, revelando-se ao homem que já amava e não sabia com a consciência dos despertos, deixando-o estático e balbuciante junto à recordação mais palpável que dela ficara, uma poça da água que jorrara do seu corpo.

Após este episódio, Robbie toma a decisão de se prostrar aos pés de Cecília: escreve duas versões de uma mesma carta, uma reveladora mas bem comportada, formal até, na qual declarava o seu amor a Cecília, e uma outra com o mesmo conteúdo de confidência mas demasiado explícita em que figurava a descrição do seu desejo e a sua vontade em consumá-lo.

Demasiado inquieto com a descoberta do amor, Robbie engana-se na versão que entrega a Briony para dar a Cecília.

A naturalidade do desejo de cariz sexual entre dois adultos que se amam, aos olhos de Briony é a exteriorização do carácter duvidoso e mesmo perigoso de Robbie. A irmã tem de ser protegida a todo o custo da influência perniciosa do tarado em que Robbie se convertera em poucas horas.
A mudança em Briony espelha-se na forma como ela vê os outros. Julga ser sua obrigação zelar pela harmonia em perigo que pensa detectar nos desequilíbrios que vislumbra.

Ao receber a carta, Cecília compreende, por um lado, a sua cegueira face ao que sentia por Robbie, por outro lado, que Briony lera a carta. E pressente o profundo efeito que o teor da mensagem comportava para si, porque nada seria como dantes ao ter acordado para a realidade do amor, como para a mente especulativa de Briony que não se deteria na mera leitura inocente de uma carta que não lhe era dirigida.

Briony acusa Robbie do crime cometido naquela noite. Afirma tê-lo visto. Vira sim, as sombras difusas dos acontecimentos a que assistira nesse dia, os vultos do que pensara ter lido correctamente e transpusera-os para a gravidade de uma acusação que perseguiria as três personagens para o resto da vida.

Briony Tallis vive uma vida inteira a tentar expiar o seu crime, o pior que se possa imaginar: Ter sido a responsável pelo afastamento irremediável de duas pessoas que se amavam.

E escreve um livro com um final feliz.

domingo, setembro 07, 2008

"Teresa, a Santa apaixonada" de Rosa Amanda Strausz

Strausz, Rosa Amanda, Teresa a Santa Apaixonada, Casa das Letras, 2006.

“Teresa, a Santa apaixonada” é uma cativante narrativa da autoria de Rosa Amanda Srausz sobre o percurso de vida de Teresa Ahumada Sanchez y Cepeda, mais conhecida como Santa Teresa de Ávila. Acompanhamo-la desde os primeiros anos em que a sua beleza ímpar atraía os olhares de inúmeros pretendentes, em que a leitura ocupava os seus dias e em que a sua imaginação indómita a transportava para os mais diversos lugares, literalmente.

Talvez por lhe parecer demasiado insubmissa e sem a referência moral da mãe recentemente falecida, o pai de Teresa, D. Alonso, encaminha-a para o convento das Agostinianas de Nossa Senhora das Graças onde se deu o primeiro encontro de Teresa com Deus, mas “não com o amoroso Deus cristão, tal como o concebemos no século XXI, mas com a entidade terrível que regia a vida espiritual do século XVI.”. Teresa estava, pela primeira vez na vida sozinha, na presença de um “…Pai severíssimo [que] não se podia enganar. E, para ser admitida na sua família, eram necessárias provas tão duras quanto as que formariam qualquer cavaleiro. Falhar nas demonstrações de virtude e obediência era caminho certo para o Inferno, com letra maiúscula. Qualquer desvio era atribuído à força do Demónio – também com maiúscula. E quem determinava o que levaria ao céu ou ao Inferno era a Igreja, com as suas regras implacáveis.”.
Despojada de tudo o que a caracterizava como Ser único, individual, Teresa ouvia ecoar as palavras “Para sempre” em cada recanto daquele sinistro convento, como se uma eternidade de perda e dor a aguardasse numa qualquer pedra inexplorada do espaço de clausura em que se refugiava.

As primeiras provações, experimenta-as nesse período terrível passado no convento das Agostinianas. À bela jovem por todos admirada sucede-se uma pálida réplica que luta por não se sentir culpada ante a rejeição do seu corpo ao silêncio frio que as paredes do convento lhe devolviam. Teresa adoece. Tudo é controlado, vigiado no convento e a alma inquieta, ávida de vida de Teresa, decai lentamente até lhe restar apenas um imenso cansaço, lágrimas abundantes e a ausência de apetite.

D. Alonso toma conhecimento da doença da filha e leva-a para casa julgando ser esse o remédio para uma rápida recuperação. Mas Teresa continua a “desaparecer”, aquela Teresa alegre e bela de que o pai se recordava, teima em voar para um refúgio distante e desconhecido onde já nem a família tem acesso.
Envia-a para o campo, para junto da irmã mais velha, e é lá que Teresa melhora, pressentindo a presença não do Deus vingador e terrível que lhe impunham no convento e a empurrava para o Inferno, mas do Deus criador e caridoso que a aproximava do Céu.

Restabelecida, foge para onde Deus a conduz: o mosteiro carmelita de Nossa Senhora da Encarnação onde os muros não estão fechados à vida.
A determinação de Teresa torna-se verdadeiramente feroz e é tomada de estranhos arroubos de êxtase traduzidos na mortificação do jejum levado ao limite, da exposição a temperaturas demasiado baixas ou elevadas e da auto-flagelação com urtigas. Teresa fica, mais uma vez, muito doente. É o empenho de quem quer celebrar a sua devoção a Deus com núpcias de sangue oferecendo-lhe a sua veneração perpétua e ilimitada.

Mais uma vez junto da família, desta vez em casa do tio Pedro, este oferece-lhe uma obra que mudaria a vida de Teresa, o “Tercer Abecedário” de Francisco de Osuna.
Teresa coloca-se na situação de ser sugada para “… dentro do livro. As letras desaparecem, as páginas somem-se, o mundo à volta desvanece-se e o texto passa do papel para a nossa mente como uma transfusão. Nessas horas, não parece que estamos a ler, mas a pensar. As ideias formam-se com muita nitidez, e traduzem exactamente o que sentimos – só faltavam aquelas palavras para organizar o que borbulhava informe dentro de nós.”.

E o problema da orientação religiosa inconsistente de Teresa terminou.

Através da constante prática da oração mental, prodigalizada no livro de Osuna, Teresa encontrou o equilíbrio que há tanto buscava apesar do momento em Espanha ser de censura e ódio com o recurso a perseguições e autos-de-fé em que a presença feminina cada vez mais se fazia notar.

Teresa foi uma mulher que abdicou de si, que se entregou à obra de Deus incondicionalmente mas não sem antes perscrutar qual o melhor rumo a seguir dentro das várias “tendências” existentes na Igreja de então.
A severidade nunca lhe assentou bem e era na prática do bem com alegria que Teresa de Jesus, a Santa apaixonada que conversava com Cristo e foi acusada de louca, se sentia realmente pertença de um universo de amor que ajudou a propalar.

domingo, agosto 31, 2008

"O Pavilhão das Peónias" de Lisa See

See, Lisa, O Pavilhão das Peónias (Peony in Love), Bizâncio, Tradução de Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito, 2008.

Peónia, filha de um destacado funcionário da Corte do imperador Kangxi, tem dezasseis anos e prepara-se para casar com o filho do melhor amigo do pai. Nunca o vira, conforme, aliás, ditava a tradição. Os noivos só se vislumbrariam quando já fossem marido e mulher, no leito conjugal, no momento em que o denso véu carmesim que cobria a face da nubente fosse retirado pelo esposo.

O seu aniversário, nesse derradeiro ano como mulher solteira, é assinalado com a representação de uma ópera muito apreciada por Peónia, precisamente “O Pavilhão das Peónias” de Tang Xianzu, o cântico de uma mulher que morre de amor e que provocara nas jovens donzelas enclausuradas nos imensos complexos luxuosos das suas famílias, o desencadear de emoções nunca vividas, de um mal de amor por vezes abstracto, uma febre que tornara a obra, aos olhos dos pais zelosos de raparigas casadoiras, objecto proibido.
As jovens eram mantidas dentro dos altos muros distantes do mundo exterior, longe de olhares indiscretos que as pudessem cativar e, no entanto, aquela obra diabólica, quando lida por donzelas de imaginação fértil com o destino traçado pela família, provocava o pior dos desfechos.

Apesar das tragédias ocorridas, o pai de Peónia não resiste a proporcionar à filha que ele julgava imune a tais assomos, o prazer último de lhe trazer a ópera a casa, inserida nos festejos prévios do casamento que se realizaria dali a escassos meses. A despedida perfeita para a filha única.

A resignação de Peónia à deliberação da família em casá-la com um desconhecido, altera-se no decorrer da apresentação de “O Pavilhão das Peónias”. As mulheres da casa, assistem à ópera encenada pelo pai, por detrás de um biombo, no entanto, por entre as frestas, Peónia observa um jovem de cabelo muito negro e liso que a faz reflectir na sua condição de mulher que não pode amar quem quer, mas quem lhe é imposto.
Perturbada pela ideia insuportável de se ver casada com alguém que lhe causa repulsa, Peónia dirige-se ao jardim onde o jovem que vira na assistência masculina da ópera aparece. É o primeiro de alguns encontros transgressivos entre duas pessoas que compreendem a infeliz condição de ambos estarem prometidos e da impossibilidade de concretização do amor que nascera naquele jardim.

Peónia é castigada ao serem detectadas as suas fugas para o jardim. São-lhe retirados os livros que tanto amava, sobretudo “O Pavilhão das Peónias” cuja influência negativa, segundo a amarga mãe, já se abatia sobre a jovem. Por fim, sem o seu amor, sem a companhia de um livro, sem o seu nome de baptismo, retirados todos os elementos constitutivos da sua identidade, encerrada no quarto, condenada a casar com alguém que não conhecia, Peónia deixa de comer. A sua pele torna-se translúcida à medida que o momento do seu desaparecimento se aproxima.

O fim é o começo de uma peregrinação que durará longos anos durante os quais Peónia descobre insondáveis segredos de família e protege o seu bem-amado da influência perversa de uma rival obcecada com a posse do destinatário do amor de Peónia.

Ela converte-se num anjo que vela pelo seu amor até encontrar o caminho para a sua eterna morada.

sábado, agosto 23, 2008

"O Terceiro Passo" de Christopher Priest

Priest, Christopher, O Terceiro Passo (The Prestige), Saída de Emergência, Tradução de Isabel C. Penteado, 2006.

“O Terceiro Passo” é muito mais do que uma história de dois mágicos rivais que se perseguem e que vivem obcecados com a evolução artística de cada um.

É uma narrativa de duplicidade, de desdobramento, de tragédia, de vingança, de cumplicidade e de divergência.
É um canto de amor às artes mágicas tendo como protagonistas dois sôfregos seguidores do ilusionismo, dispostos a dedicarem todos os recursos físicos e morais ao objectivo dual de evoluírem artisticamente e de se sobreporem e esmagarem mutuamente.

A introdução no espectáculo de um dos mágicos de um truque impossível provoca a admiração do rival que procura encontrar uma explicação racional para o que acabara de assistir. É compelido a investigar a vida pessoal do inimigo e conclui que o artifício que presenciara era resultado de verdadeira magia ou ciência.
Atravessa um oceano para encomendar uma máquina que o rival de Edison, Tesla, exilado e derrotado pela fama daquele outro, poderia construir, uma máquina que o teletransportaria para um local previamente escolhido, tornando-se no novo Homem transportado.

A simplicidade do truque de Borden, converte-se em Angier numa culpa sem remorso, numa eternidade retalhada e construída com base no permanente nascimento, morte e renascimento do mágico. Ele passa a dispor da vida humana que cria todas as noites com omnipotência desafiadora e perde noção de humanidade.

A moralidade, a amoralidade, a dualidade bem/ mal, a revelação de que a verdadeira magia está na preparação do espectador e na aparição do elemento ausente, tudo se conjuga para que os dois homens sejam confrontados com decisões determinantes para a sua salvação ou perdição. Eles são responsáveis pelo seu destino. Eles são o resultado das suas escolhas.

E um deles é um anjo caído.

Obra inigualável pela inteligência do enredo, profundidade e subtis variações na psique das personagens, recriação do ambiente nas salas de espectáculo da Londres vitoriana e escrita absolutamente cativante. A combinação de todos os factores atrás enumerados traduziu-se numa leitura relâmpago que mesmo na última linha, mesmo depois do ponto final derradeiro, deixou a leitora abandonada a uma perplexidade atribuível à imensidão literária que este livro alcança.

domingo, julho 13, 2008

"A Vingança de Joana D'Arc" de María Elena Cruz Varela

Varela, Maria Elena Cruz, A Vingança de Joana D’Arc (Juana de Arco – El corazón del verdugo), Saída de Emergência, Tradução de António Marques Pacheco, 2007.

Alguns anos após o percurso mártir de Joana D’Arc, a donzela nascida em Domrémy-la-Pucelle em 1412 e assolada por visões que apontavam o caminho da absoluta soberania de uma França abalada pela guerra dos cem anos, convertendo-se Jeanne no instrumento divino dessa vontade sobrenatural e inabalável de apoio aos Armagnacs, descobrem-se documentos que provam a santidade da sacrificada na fogueira na cidade de Rouen em 1431.

A descoberta de documentos provenientes de um interveniente no processo, assassinado para não revelar a verdade que já não podia ocultar, acaba por envolver pessoas próximas do homem que desejou expor o erro do cumprimento da sentença perante os milagres a que havia assistido após terem queimado viva a donzela de Orleães.

Um grupo de homens reúne-se numa cruzada com o objectivo único de provar em definitivo o equívoco em que se baseou a condenação de Joana e seguimos todos os seus esforços, rodeados de perigos vários provenientes daqueles que sentem a ameaça da verdade no seu encalço.

Em paralelo, partilhamos momentos do julgamento de Joana e os instantes que antecedem a sua morte pelas chamas proferindo palavras de perdão direccionadas aos seus carrascos: Pai, eu Te suplico que acolhas a alma desta aflita criatura, e que tenhas por bem não ter em conta os seus momentos de debilidade e dúvida. Que o Teu amor generoso, oh Pai, se derrame sobre os meus irmãos, presentes e ausentes, e os abençoe, protegendo-os de todos os males. Rogo-Te, Rei do Céu, que não sejam castigados pelo pecado que, no meu corpo, podem estar a cometer contra Ti. Senhor, tem piedade dos cordeiros extraviados, que não se encontram no caminho recto para o regresso a casa.
Peço também que todo o tipo de pessoas aqui presentes, quer sejam armanhaques, borgonheses ou ingleses, tenham piedade de mim. Rezem a Nosso Senhor pela salvação da minha alma, que é a vossa, não importa o partido a que pertencem, nem a que mortal tenham jurado lealdade.

A comoção invade as hostes presentes e mesmo aqueles que, momentos antes, desejavam a morte de Joana D’Arc, não suportam a aspereza do confronto com uma alma pura que apesar de amarrada a um poste e preparada para morrer pela sua Fé, perdoa os homens que a capturaram e que se preparam para assistir ao seu último suspiro.
A multidão emudece e todos compreendem, numa unanimidade rara em tempos de guerra, que estão a sacrificar uma Santa, que é uma Santa a mulher de cabelo curto exposta no palanque de madeira.

Joana D’Arc foi canonizada em 1920, mais de cinco séculos depois da sua morte.

Ter-se-á cumprido a sua vingança?

Acredito que a santidade dispensa tal sentimento.

domingo, julho 06, 2008

"Tchaikovski: Vida e Obra" de Jeremy Siepmann

Siepmann, Jeremy, Tchaikovski: Vida e Obra (Tchaikovsky: His Life & Music), Bizâncio, Tradução de Francisco Agarez, 2008.

Ler a biografia de Piotr Ilich Tchaikovski escrita por Jeremy Siepmann é percorrer as páginas de uma vida atribulada, repleta de sucessos, de desilusões, de ansiedades e, acima de tudo, é mergulhar na delicada e surpreendente psique de um dos mais brilhantes compositores de sempre.

A obra tem inúmeras ilustrações que permitem ao leitor acompanhar os locais e pessoas que, de uma forma ou de outra, deixaram a sua marca na vida do músico e apresenta, igualmente, dois CD de música de Piotr Ilich que complementa as palavras escritas e ainda um número considerável de excertos de cartas escritas por Tchaikovski que clarificam quase todo o seu percurso enquanto Homem e Compositor, deixando, mesmo assim, algum espaço à especulação…

O traço mais marcante da personalidade de Tchaikovski parece-me ser a sua susceptibilidade à opinião alheia que, de certa forma, sempre o perseguiu e o impeliu a tomar a decisão porventura mais desacertada da sua vida: Casar.
Tchaikovski nunca assumiu abertamente a sua orientação sexual, contudo, as suas paixões, apesar de platónicas tanto quanto sabemos, são direccionadas a homens, nutrindo pelas mulheres que surgem na sua vida ou ódio (no caso da mulher com quem se casa, Antonina Ivanovna) ou apenas uma ternura e carinho próprios de um Homem que se considerava anti-social mas que encantava todos (ou quase todos…) que o rodeavam.

As linhas que Tchaikovski escreve ao irmão Modest, também homossexual, são elucidativas quanto à urgência que sente em se casar: Estou agora a passar por um período muito crítico da minha vida. Não vou agora entrar em detalhes, mas dir-te-ei simplesmente que decidi casar. É inevitável. Uma coisa que tenho mesmo que fazer – não apenas por mim mas também por ti, Modest, pelo Tolia, pela Sasha, enfim, por todas as pessoas que amo. Durante este período a visão que tenho de mim próprio alterou-se significativamente, com o resultado de que de agora em diante vou fazer preparativos sérios para o matrimónio – independentemente da identidade da outra parte. Acredito agora firmemente que, para nós dois (tu e eu), os nossos temperamentos são o maior e mais insolúvel impedimento à nossa felicidade e que temos de combater as nossas maneiras de ser com todas as nossas forças.
Algo o empurra para esta decisão e acaba por levar avante os seus intentos quando aparece na sua vida uma mulher que o ama em segredo e obsessivamente há muitos anos, Antonina.

No entanto, uma semana após o casamento, Tchaikovski escreve ao irmão Anatoli dizendo o seguinte: Quando acordei, na manhã seguinte, vi a minha vida diante de mim, estilhaçada. E caí no desespero. Hoje, a crise parece ter passado. Mas, Deus meu, foi horrível, horrível, horrível! Se não fosse o grande amor que sinto por ti e pelos meus outros entes queridos, que estiveram ao meu lado enquanto eu suportava o insuportável, podia ter acabado mal – na doença, ou mesmo na loucura. Mas hoje – hoje estou a começar a recompor-me.

Mas não se recompôs e teve que engendrar uma forma de se afastar em definitivo da indesejada esposa.

Durante muitos anos, Tchaikovski troca correspondência com Nadezheda Von Meck, uma abastada viúva cultíssima e profunda conhecedora e admiradora da música de Piotr Ilich.
As suas cartas revelam muito mais do que uma amizade entre duas pessoas que nunca se conheceram pessoalmente mas que conheciam cada recanto da alma uma da outra. Nadezheda quer tomar conta de Tchaikovski e torna-se seu mecenas, a única forma possível de aproximação entre ambos.

Talvez o maior desgosto da vida do compositor a seguir à morte da mãe, tenha sido a cessação, sem qualquer justificação, da renda que Nadezheda lhe pagava. E não era só o corte dessa fonte aparentemente inesgotável de rendimentos que o assombrava, era o corte da sua duradoura e inabalável amizade. É um mistério que perdura até hoje.

Tchaikovski foi indubitavelmente um génio e como muitos que o antecederam e precederam foi um génio atormentado por uma sensibilidade nem sempre compreendida.

A banalidade aterrorizava-o, daí que as suas aparições em público fossem muitas vezes confundidas com ataques de timidez, histeria ou loucura.

Ele desejava fugir da vulgaridade, afastar-se o mais possível da contaminação dessa doença que flagelava a sociedade de então e, apesar da dificuldade da travessia, transpôs o umbral da trivialidade e passou à eternidade como “Único”.

domingo, junho 29, 2008

"A Especiaria" de António Oliveira e Castro

Castro, António Oliveira e, A Especiaria, Guerra e Paz Editores, 2008.

Duas épocas, duas vidas. A História de uma família, a Gesta de dois países unidos pelo acaso calculado de um achamento e pela obstinada preservação de um território indomável.

A acção de “A Especiaria” decorre entre os anos 70 do Século XX em plena Guerra Colonial, tendo Angola como cenário e Benguela, um Alferes ao serviço do Exército português, como protagonista, e o ano de 1540, tendo Portugal e um mar revolto por cenários, e Mancini, um mercador Veneziano de passagem por Lisboa, como herói.

Flávio Mancini, chega a Lisboa com o intento de apresentar uma proposta de negócio à coroa portuguesa: Detentor de um indómito espírito aventureiro, apresenta ao representante do Rei uma oportunidade de aceder, com o apoio e bênção de Sua Majestade D. João III, a um inigualável tesouro, uma especiaria apenas existente em território colonial português que possuiria propriedades regenerativas únicas, uma espécie de elixir da eterna juventude que o Veneziano lograva alcançar a fim de a comercializar.
A sua estada na capital do Reino envolve um conhecimento forçado das “tradições” e noções de divertimento em voga naquele tempo, nomeadamente, o “pão e circo” à portuguesa: O auto de fé. O povo andrajoso e inculto segue o caminho traçado pelos líderes religiosos e políticos, crendo na falácia em que o aparato imenso das fogueiras dispostas à mercê dos seus olhos sedentos é baseado, uma urdidura bem tecida para que não haja a mínima dúvida sobre a culpa dos hereges queimados.
Mancini e Ângelo, o seu fiel servidor, contemplam, aterrados, o cenário de horror que os circunda e retiram-se deixando a praça apinhada de gente a viver um dia de feriado.
Entretanto, Ester, a serviçal da estalagem onde os dois italianos se encontram hospedados, e entusiasta dos castigos infligidos aos hereges, é arrastada por Mancini na busca do elixir que o Rei português decidira patrocinar e partem na missão que os impele à aventura da descoberta da especiaria que os portugueses, nas suas imensas viagens por terras exóticas e de todos desconhecidas, não haviam descoberto.

Os relatos concernentes ao século XVI e a Mancini, são entremeados com a narração referente a Benguela, nascido em Angola, de família angolana de várias gerações, a lutar do lado de uma metrópole distante no espaço e alojada algures num recanto obscuro e pouco explorado do seu coração.
Benguela não esconde a sua revolta ante o tratamento de que alguns angolanos são vítimas em fazendas geridas por portugueses e, no caso concreto de Miragaia, um português a quem haviam morto selvaticamente a mulher e a filha, o Alferes não esconde o seu desagrado face à total falta de escrúpulos daquele. A morte de um trabalhador ao serviço de Miragaia, despoleta uma revolta à qual Benguela e Marcelino, irmão do falecido, não eram alheios.
Em todos os momentos em que acompanhamos o percurso do Alferes Benguela, está presente a sua hesitação em abrir uma arca guardada na família há inúmeras gerações que encerraria um qualquer sagrado tesouro de família não profanado desde que fora encerrado nessa misteriosa arca por um remoto antepassado.
Finalmente, a derrocada do mundo que Benguela conhecera, impele-o a abrir o cofre, como se fosse urgente o contacto com um pedaço de mundo imaculado.

Nunca fora tão claro o contraste entre o desabar de um mundo construído ao longo de séculos e o seu fim em poucos anos.

Benguela abre o baú e encontra um relato manuscrito do seu antepassado, da sua travessia do deserto após o ruir do seu próprio mundo, da reconstrução, do reerguer de uma identidade julgada perdida.

O elixir da eterna juventude é a busca incessante da felicidade.

domingo, junho 15, 2008

"As Velas ardem até ao fim" de Sándor Márai

Márai, Sándor, As Velas ardem até ao fim (A Gyertiák Csonkig Égnek), Dom Quixote, Tradução de Maria Magdolna Demeter, 2007.

Dois amigos com sensibilidades diferentes reencontram-se na etapa final das suas vidas no castelo de um deles, local onde se concentram todas as memórias comuns, todos os quadros de união e clivagem entre ambos.

Não se viam há quarenta e um anos e, no entanto, essa ausência, esse espaço que se criara entre eles e que fora preenchido por anos de inquietude e por uma paciência rendilhada de íntimas certezas, era uma quase garantia de que se voltariam a encontrar, de que tudo o que fora dito apenas com a argúcia do olhar seria, no momento do reencontro, proferido por meio de palavras audíveis, com a objectividade que a espera de décadas tornara possível.

Konrád era proveniente de uma família que vivia com dificuldades e que se sacrificara para o enviar para a Academia militar, já ao General era-lhe proporcionada uma vida de abastança e a escolha da carreira militar tinha tanto de natural como de genuína inclinação do garboso jovem sem génio artístico, prático e racional nas suas preferências.

O amigo rico torna-se “protector” do amigo pobre complementando-se como companheiros inseparáveis. A amizade que os une é pura e inequívoca mas à medida que as suas personalidades se vincam pendendo a índole de um para a música e a de outro para as coisas da guerra, demonstrando até incompreensão e desprezo pela “utilidade” da música, a sua amizade dilui-se na perplexidade, na descoberta de que o outro é, afinal, diferente, fraco por se entregar à arte em detrimento da entrega à pátria, incapaz por não reconhecer a improficuidade do solo que escolhera pisar, a infertilidade da semente que ousara lançar.

A amizade cedia terreno à ruptura definitiva.

O General casa-se com Krisztina e também ela é diferente.

Numa caçada Kónrad aponta a arma ao amigo e este, apesar de se encontrar de costas, pressente a tentação e principia uma reflexão sobre o que motivara aquele momento e essa meditação dura quarenta e um anos porque Kónrad parte, desaparece sem deixar rasto.

Quarenta e um anos dura a espera do General para confrontar o amigo com a traição que fora cometida por ele e por Krisztina, a que também diverge da normalidade e ordem incorporadas pelo General.

A reconciliação ou pelo menos uma espécie de paz que lhe permitam terminar os seus dias com a tranquilidade dos que procuram a verdade é o que os dois homens perscrutam à luz das velas que ardem até ao fim na longa noite de confidências.

domingo, junho 01, 2008

"Uma Janela para o Infinito" de Denis Guedj

Guedj, Denis, Uma Janela para o Infinito (Villa des Hommes), Bizâncio, Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira, 2008.

Hans Singer, eminente matemático alemão, é acolhido no Hospital psiquiátrico de uma pequena cidade alemã após mais um colapso mental. Responsável por trabalhos sobre o Infinito e mentor da Teoria dos Conjuntos, Singer é invadido pelas palavras duras e ressonantes de uma carta que o pai lhe enviara aquando do seu décimo sexto aniversário e que ecoam quase em permanência no seu frágil juízo como uma maldição, um presságio negro que o perseguisse nos momentos mais críticos: “Quantas vezes os indivíduos mais prometedores são vencidos por uma pequeníssima dificuldade ao praticarem o seu ofício. Então, desanimados, atrofiam-se completamente e, mesmo na melhor das hipóteses, não serão mais do que «génios arruinados» ”.

E é assim que Singer se vê. Como um génio em declínio, preterido, menosprezado.

Matthias Dutour, soldado francês vindo da frente de combate e antigo maquinista de caminhos-de-ferro, é internado devido a um agudo estado de stress pós-traumático motivado pelas barbaridades de guerra a que assistira e que o haviam transformado num Ser abstraído, alheado, afastado de si próprio, da sua História de vida, do mundo em ruínas que o circundava. A indiferença dominava-o.

É encaminhado para o quarto 14. Herr Hans Singer já habitava o compartimento.

E assim começa uma amizade improvável entre dois homens de proveniências sociais e culturais díspares.

Para todos os efeitos, Matthias era um desertor. Salvara um soldado alemão de morte certa e a recompensa fora o cuidado com que o “inimigo” o tratara levando-o para o mundo distante e campestre do sanatório, longe das minas e das bombas e dos mortos. Matthias não reagia a qualquer estímulo verbal, a qualquer contacto humano e Hans Singer falava com o soldado francês em francês num monólogo incessante que o matemático tentava converter em diálogo lançando inocentes provocações ao espírito angustiado de Matthias Dutour.

O maquinista começou a reagir aos incentivos de Singer, aos desafios constantes que este lhe lançava, à sua paciência em tentá-lo ao regresso ao universo dos seres pensantes e falantes, ao cosmos da expressão. Matthias inspirava-lhe uma ternura inexplicável, talvez porque irradiasse uma luz imensa com os seus cabelos amarelos como o sol, uma esperança de recuperação da sua própria sanidade mental. Revelou-se o amigo mais perene e sincero que Herr Singer jamais tivera, o aluno mais brilhante e atento às suas soluções matemáticas e filosóficas, o companheiro mais compreensivo e indulgente que percorrera aquela etapa da sua vida lado a lado, como um camarada de guerra que não se abandona.

Matthias era curioso, inteligente, detentor de um espírito vivaz e surpreendente e o mestre expunha teorias e discorria sobre a sua vida, as suas vitórias e derrotas, as crises que frustraram a sua elevação ao nível dos ilustres matemáticos do seu tempo. E o aluno abria o livro da sua vida em Paris, desde a vivência sã e feliz com os pais adoptivos, até à paixão pelos caminhos-de-ferro nascida graças à oferta do livro “A Besta Humana” de Zola por parte da mãe, analfabeta mas ciente da importância do saber, e à sede de conhecimento (mais do que sede de revolução) que o levara a frequentar a Universidade Popular.

A temática da amizade inabalável entre dois homens mesmo que celebrada num espaço-limite em que a fronteira entre sanidade e loucura desfoca um possível enquadramento linear, torna esta obra uma janela para as infinitas probabilidades da vida mesmo quando tecida de improváveis.

O improvável é sempre provável.

quinta-feira, maio 22, 2008

"O Caroço da Manga" de Augusto Carlos

Carlos, Augusto, O Caroço da Manga, Nova Vaga Editora, 2007.

A busca da felicidade é, porventura, de todas as peregrinações que o Ser Humano enceta no seu tempo de vida, a que mais tempo, consciente e inconsciente, ocupa no espaço último e recôndito de cada um. A alma é incitada a analisar-se, a percorrer cada caminho interior a que cada caminho exterior a conduziu.

A vida repleta de encruzilhadas, assusta e empurra o protagonista de “O Caroço da Manga” a encontrar-se.
Vivera sempre intimidado por um sentimento difícil de caracterizar mas que o impedia de fruir naturalmente das coisas simples da vida, como se nada nem ninguém o pudesse demover da rigidez espartana que o invadia. Uma tensão permanente, uma desconfiança ilimitada nos outros, um medo de se libertar das correntes inibidoras que lhe sugavam a vida paulatinamente… Toda esta inquietação o conduz a um velho homem que vê em Zé Manuel a luz que ele próprio nunca pressentira em si.

A contemplação da natureza inicia-o na arte da observação desinteressada partilhada com Ana Maria. E a descoberta da felicidade através da abnegação, da rendição a uma espiritualidade incorruptível, acolhida com singeleza despretensiosa, desencadeia a grande revolução almejada pela personagem ante o vazio que sempre o habitara.

O Homem que se rebela contra o destino, que o inverte atestando que no teatro do nosso mundo, o poder é detido por nós próprios e que bem no fundo de cada um reside o segredo para um desfecho feliz, eis o que Augusto Carlos nos mostra nesta viagem a mais um admirável mundo novo. O nosso.

domingo, maio 11, 2008

"Procurai a minha face" de John Updike

Updike, John, Procurai a minha face (Seek my face), Civilização Editora, Tradução de Carmo Romão, 2007.

Hope Chafetz, pintora já idosa e mito vivo no mundo das artes por ter sido casada com dois dos mais brilhantes e revolucionários artistas da sua geração, é entrevistada por Kathryn, uma jornalista profundamente conhecedora das circunstâncias artísticas que rodearam a vida de Hope, passada em revista num dia inteiro de perguntas e respostas e silêncios.

O autor concede-nos livre acesso aos momentos em que Hope guarda algo para si, momentos em que não verbaliza toda a torrente de pensamentos que lhe ocorrem, toda a energia vibrante que escutamos como se de algo interdito se tratasse. Hope revela inúmeros aspectos da personalidade de Zack, o seu atormentado primeiro marido, pressentido a entrevistada a cumplicidade de Kathryn face àquele homem desequilibrado que quisera viver depressa e morrera jovem, um James Dean da pintura americana, uma lenda à qual Hope estava eternamente presa.

Assim como o leitor tem conhecimento das impressões que Hope vai coligindo ao longo da entrevista sobre a sua vida que agora desfiava a uma estranha, também acedemos aos monólogos interiores da mulher idosa em relação à mulher jovem que tem diante de si.
Apesar de decidida, Kathryn aparenta resignação. Apesar de surgir como uma independente nova-iorquina, parece tactear no escuro, no reflexo da sua roupa negra, nos seus gestos tensos, pouco hábeis, parece hesitar na sua existência.

Hope aponta mentalmente todas as sensações que a jovem entrevistadora lhe transmite e toma nota das ausências patenteadas pela jovem à medida que verbaliza as suas próprias.

A vida cheia de Hope Chafetz, apesar do presente declínio, contrasta claramente com a deriva, a incerteza do mundo em que Kathryn vive. Escondida no negro, como para que a sua passagem não seja notada, mostra a sua insegurança velada revelada na necessidade de verificar permanentemente se o gravador está ligado nos momentos certos, ou seja, quando Hope faz declarações inéditas. Como se daquela entrevista dependesse a sua vida.

Hope, já trôpega e consciente do pouco tempo que para si virá, analisa, depura toda a circunstância em que se encontra naquele dia de primavera. Disseca a sua vida repleta com a ajuda de Kathryn e examina a mulher que tem diante de si. Sente irritação e comoção, distância e proximidade e, já noite, com a chuva a cair impiedosa, Hope e Kathryn despedem-se para sempre, unidas pelo laço que um dia de revelações mútuas lhes proporcionou.

domingo, abril 20, 2008

"O Maçon de Viena" de José Braga Gonçalves

Gonçalves, José Braga, O Maçon de Viena, Prime Books, 2005.

José Braga Gonçalves socorre-se de documentos julgados para sempre perdidos após a repressão nazi e reencontrados por acaso nos Arquivos Centrais da antiga República Democrática Alemã para escrever este romance que revela uma faceta menos pública do Marquês de Pombal: A sua ligação à maçonaria.
Dois amigos vivem épocas conturbadas nos países onde vivem, Otto numa Aústria acossada pela crescente vontade imperialista alemã que, através da figura emergente de Adolf Hitler, se pressente em perigo, e Cid num Portugal atormentado pela ditadura, vê-se preso no Limoeiro trocando correspondência tanto com Otto como com a Maçonaria Brasileira que teria em sua posse um maior número de documentos reveladores do papel assumido por Sebastião José de Carvalho Mello no seio da Maçonaria Portuguesa e Austríaca do que a Lisboa que albergara inúmeros documentos preciosos destruídos para sempre pelo terramoto de 1755.
A investigação em três frentes diferentes com o objectivo de desvelar os segredos do Ministro de D. José I, acompanha as dificuldades e aventuras pessoais dos protagonistas tão próximos do abismo da descoberta como do abismo da perdição a que as circunstâncias políticas dos seus países os parecem conduzir indelevelmente.
Tudo converge para a importância assumida pelo Marquês de Pombal na engrenagem maçónica a que a sua permanência como enviado português em Viena não terá sido estranha e a vertigem do conhecimento a que acedem os investigadores é apenas comparável à vertigem de aniquilação que a Europa experimenta.
Algumas revelações interessantes sobre a expulsão dos Jesuítas e a execução dos Távoras, em correlação com o simbolismo e génese maçónicas, tornam a obra duplamente aliciante e, de certa forma, obrigatória para quem pretenda alargar os seus horizontes históricos face a uma das figuras de maior destaque da História Portuguesa do Século XVIII. Uma face de um poliedro.

domingo, abril 13, 2008

"A Sabedoria dos Mortos" de Rodolfo Martinez

Martinez, Rodolfo, A Sabedoria dos Mortos (Sherlock Holmes y la Sabiduria de los muertos), Saída de Emergência, Tradução de José Manuel Lopes, 2006.

Na introdução à primeira edição, Rodolfo Martinez revela ao leitor como um amigo professor em Londres lhe oferecera um conjunto de manuscritos inéditos escritos pelo Dr. Watson adquiridos numa loja de antiguidades perto do Soho e de como, movido por um incontido entusiasmo holmesiano se dedicara à tarefa de os traduzir para castelhano.
A concepção original da obra é-nos imediatamente dada a conhecer através do revestimento de autenticidade da história apresentada a dois níveis diversos: Rodolfo Martinez surge como “mero” tradutor dos três manuscritos a que temos acesso quando, na realidade, é autor das várias ficções sobrepostas com que nos deparamos; e Artur Conan Doyle é-nos descrito como o Agente de Watson, verdadeiro autor de todas as Aventuras de Sherlock Holmes impressas e em grande medida responsáveis pela notoriedade do grande detective.
Dispõem-se, então, perante o leitor, várias ficções encetadas por Rodolfo Martinez com o intuito de soarem a realidade, tanto a ficção de que ele é o tradutor de textos inéditos (quando é o autor), como a de que os casos em que Holmes se envolveu são reais e contados pelo seu velho amigo Watson, o autêntico autor confundido com Conan Doyle.
Enquanto leitores somos igualmente confrontados, por exemplo, com a curiosa revelação de alguns pormenores desconhecidos dos anos em que Holmes fora dado como morto após a queda nas cataratas de Reichenbach.
A obra é composta, conforme já referi, por três histórias distintas, três casos em que Holmes, Watson e o Inspector Lestrade entram em cena.

Na primeira, denominada “A Sabedoria dos Mortos”, Holmes e Watson descobrem que a personagem criada pelo detective aquando da sua “morte”, Sigurd Sigerson, está a ser usada por um impostor afim de colocar em prática o intento de roubar Necronomicon ou Livro dos Mortos à Irmandade “Aurora Dourada”, legítima guardiã do perigoso volume que, segundo rezava a lenda, provocava a abdicação de príncipes e consequente usurpação do respectivo trono.
Deste texto sobressai a extrema capacidade de Sherlock em incomodar os menos aptos intelectualmente (neste caso, Arthur Conan Doyle, o afectado agente de Watson cujo incómodo ante a presença de Holmes denotava o seu sentimento de inferioridade face ao mestre), a amizade e lealdade comoventes entre Watson e Holmes, a equivalência intelectual do oponente de Sherlock que demonstra ser tão hábil na técnica do disfarce como o nosso detective, a figura já subversiva e influente de Aleister Crowley nos círculos esotéricos londrinos e a tibieza intelectual de Lestrade em relação a um jovem colega da Scotland Yard, merecedor da admiração do próprio Sherlock.

O segundo texto “traduzido” por Rodolfo Martinez é “Desde a Terra mais além do Bosque”, um duelo entre duas das personagens mais fascinantes da literatura de língua inglesa do século XIX: Sherlock Holmes e Drácula.
O inesperado regresso do Conde Vlad Dracul a Londres, previsto pelo Dr. John Seward que, de visita à Transilvânia, reconhecera dois olhos que o encararam como sendo os do Conde num corpo diferente, desencadeia uma série de acontecimentos que colocam no encalço do Conde Seward e Van Helsing, surpreendido em Amsterdão com este novo despertar.
Já em Londres, Sherlock Holmes, o Inspector Lestrade, o Dr. Watson, Van Helsing e o Dr. John Seward encontram-se no Mausoléu da família Saville onde Lord Robert Saville ainda não repousava em paz, escravo da vontade dominadora de Drácula sequioso de vingança.
Considerei interessante este encontro de personagens brilhantes como é o caso de Van Helsing e de Holmes que num primeiro relance se reconhecem sem se conhecerem.

“A Aventura do Assassino Fingido” é o mais curto dos três contos e explora o sentimento de posse de um irmão face a uma irmã, noiva de um jovem que procura Watson na ausência, julgava-se definitiva de Holmes.
A aptidão de Holmes para a utilização do disfarce perfeito é bem evidente nesta narrativa, provocando a desconfiança de Watson e Lestrade que encaram o homem gorducho em que Holmes se convertera como o principal suspeito da morte de Rose Constable. Watson escrevera ao amigo relatando os contornos do caso que Copper lhe expusera e Sherlock Holmes, embora retirado do ofício que o celebrizara, surge disfarçado para melhor apurar os factos nebulosos descritos por Watson.
Este último escrito com que a obra de Rodolfo Martinez finda, transmite-nos a agradável sensação de Holmes nunca deixará de investigar os casos mais difíceis e que Watson e Lestrade continuarão a acompanhá-lo no deslindar dos mais complexos enigmas, tão imortais como Sherlock Holmes.

domingo, abril 06, 2008

"Os Milagres do Anticristo" de Selma Lagerlöf

Lagerlöf, Selma, Os Milagres do Anticristo (Antikrists Mirakler), Cavalo de Ferro, Tradução de Liliete Martins, 2008.

“Os Milagres do Anticristo” de Selma Lagerlöf principia com a menção a uma lenda siciliana que profetiza o seguinte: Quando aparecer o anticristo, ele terá exactamente a mesma aparência que Cristo. Nessa época, haverá muita fome e o anticristo irá de terra em terra, dando pão aos pobres e ganhará, assim, muitos simpatizantes.
Baseando-se neste antigo auspício siciliano, Lagerlöf erige uma história em que a troca de uma imagem religiosa sagrada por uma cópia desde então adorada como se da original se tratasse, e o advento do socialismo na pobre e cinzenta Sicília, se confundem num único propósito: A salvação da pequena cidade de Diamante.

Os milagres sucedem-se quando Donna Micaela verbaliza a sua intenção de construir um caminho-de-ferro que abra a minúscula e escondida Diamante ao mundo. Acontecimentos estranhos e extraordinários, sem explicação racional decorrem na acanhada Diamante e o povo atribui a sobrenaturalidade dos eventos perturbadores a que assistem ao Menino Jesus representado na Igreja de San Pasquale, pronto a receber as contribuições dos crentes para o caminho-de-ferro de Donna Micaela.

E o povo pede o fim dos seus males. Pede pela prosperidade da Diamante abandonada pelos poderosos de Roma. Cada um pede pelo seu sucesso pessoal. Pela sua sobrevivência. Pede a terra ao céu.

Entretanto, uma inovadora corrente política, o socialismo, cujos ideais se aproximam dos defendidos pelo cristianismo puro, espalha uma boa nova por toda a desventurada Sicília colhendo alguns apoios mas sendo esmagado pelo poder instituído ao qual estava ligado um cristianismo distante da imaculabilidade inicial.
O socialismo promete a salvação do sofrimento através da luta, da revolução. Só por meio do esmagamento das classes superiores, de um novo começo pela raiz seria possível a construção de uma sociedade igualitária.

E o ambíguo Etna observa, quieto na sua mudez cónica, sempre vigilante ante a imensidão daquela terra árida que se espraiava em todo o seu redor. Entre a terra e o céu.

A convicção na genuinidade da imagem do Menino Jesus e do seu poder milagreiro incrementa a fé da população de Diamante no seu ideal de comunhão com o divino. O Menino Jesus demonstrava o seu domínio todos os dias e o povo sentia as suas necessidades supridas pelo seu redentor. A alternativa não era acolhida com agrado pois agradados já os habitantes de Diamante se encontravam.

Quando acidentalmente se descobre que a imagem adorada possuía uma inscrição que dizia: O meu Reino pertence apenas a este mundo, o povo desperta para a fraude que alimentara. É o momento da revelação. Tudo se justificava com a coincidência, o poder de sugestão, a vontade humana.

Diamante pedira sempre pela concretização material de algum sucesso colectivo ou pessoal, nunca suplicara pela conservação da pureza das almas, pela sua incorruptibilidade. E o verdadeiro cristianismo pressupõe o pensamento direccionado para o diáfano, o etéreo, o invisível, para as coisas do céu. A adoração daquela falsa imagem significou apenas a manutenção de bens e sonhos deste mundo.

A confiança num ícone no qual se deposita toda a fé e que nos pede paciência, perseverança na espera de um milagre ou o seguimento de uma doutrina política, guiado por líderes dominadores de palavra acesa (como uma padre no púlpito), incendiando multidões e instando-as a tomarem o futuro nas suas mãos, eis a possibilidade de escolha que Lagerlöf nos apresenta.

O anticristo não é o anjo caído subversor da crença original, mas sobretudo a alternativa à ordem instituída, o incentivador do livre-pensamento, o libertador das amarras que prendiam o povo ao pré-determinado. O anticristo é a novidade seja ela qual for.
O lirismo dos primeiros tempos do socialismo está presente nesta obra mas com uma subtileza ímpar de quem não pretende impor, mas expor a ideia de que era possível ao ser-humano escolher um caminho próprio. Um caminho terreno. O céu podia esperar.

domingo, março 30, 2008

"O Mistério da Estrada de Sintra" de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão

Queiroz, Eça de, Ortigão, Ramalho, O Mistério da Estrada de Sintra, Livros do Brasil, 2007.

É através de um conjunto de cartas enviadas a um Redactor do Diário de Notícias escritas pelos intervenientes nos acontecimentos ocorridos em vários palcos (sendo que um deles, e o primeiro a ser-nos apresentado é, justamente, a estrada de Sintra) que o leitor se vê enredado numa história policial densa que culmina com a morte de um homem.
Dois amigos regressavam a Lisboa pela estrada de Sintra quando são abordados por um grupo de homens mascarados que os retêm, vendam-nos e conduzem-nos a uma casa onde jaz numa poltrona um homem morto. Um dos raptados é médico e os homens pretendiam apenas a confirmação do óbito, no entanto, a primeira reacção dos homens interceptados é de estarem perante um bando de malfeitores. Contudo, à medida que a noite decorre, os dois amigos conversam com os homens que os mantêm presos, sobretudo com o mascarado alto, e concluem que se trata de pessoas sem qualquer envolvimento naquela morte.

O início da obra é o desfecho da história (ou quase…), mas a carta do mascarado alto, leva-nos a uma viagem a Malta na companhia do Conde e Condessa de W. sua prima. Sabemos pelo seu relato que a Condessa, apesar da sua delicada beleza e espírito, sofrer de uma imensa solidão, alheia às aventuras extraconjugais do Conde mas sentindo essa distância imposta pelo marido.
Em Malta, o mascarado alto e primo da Condessa trava conhecimento com o Capitão Rytmel, inglês de passagem em Malta e que é apresentado à Condessa com o intuito de colmatar a sua solidão e tédio, por ser alguém passível de suscitar o interesse da infeliz Condessa.
E o interesse suscitado excede as expectativas, encontrando o amor crescente da portuguesa e do inglês, vários obstáculos à sua concretização. O facto de ela ser casada mas também o aparecimento de uma personagem verdadeiramente trágica: Cármen Puebla. Uma espanhola que havia sido amante de Rytmel e que se faz acompanhar de seu marido D. Nicazio. Cármen é o oposto da Condessa, tipicamente mediterrânica na aparência, uma mulher extrovertida com suficiente à vontade para estar só na companhia de um punhado de soldados ingleses. Ao perceber o interesse de Rytmel na Condessa de W., Cármen demonstra que não havia esquecido o inglês, pondo em prática um plano movido pelo ciúme para impedir a concretização do intento de ambos: A fuga.

Cármen é destruída pelo amor a Rytmel e a Condessa de W., arrebatada pelo ciúme, pela desconfiança que a distância origina, termina o que Cármen começara e acaba retirada num Convento Carmelita, morta para o mundo.

Esta é a história de dois homens que encenaram um crime e os seus contornos, apaixonando Lisboa com os desenvolvimentos publicados pelo Diário de Notícias e fazendo crer os leitores que acompanharam avidamente o desenrolar da mesma, de que se tratava de um crime real.
O tom confessional com que as cartas são escritas, facilitou, com toda a certeza, a crença na veracidade dos eventos descritos.


domingo, março 23, 2008

"O Livro do Deslumbramento" de Lord Dunsany

Dunsany, Lord, O Livro do Deslumbramento (The Book of Wonder), Saída de Emergência, Tradução de Marta Oliveira, Ana Margarida Canelas, Susana Clara, José Manuel Lopes, 2007.

A editora Saída de Emergência reuniu num só volume “O Livro do Deslumbramento” e “O Novo Livro do Deslumbramento” materializando, assim, a própria vontade de interligação e continuidade do autor expressa no epílogo de “O Livro do Deslumbramento”: Aqui acaba o décimo quarto episódio do Livro do Deslumbramento e o relato das Crónicas das Pequenas Aventuras na Orla do Mundo. Despeço-me dos meus leitores. Mas talvez nos encontremos outra vez, pois ainda ficou por contar como os duendes roubaram as fadas, a vingança das mesmas, e até como tudo isso perturbou o sono dos deuses. Ficou também por contar como o Rei de Ool insultou os trovadores, julgando que estaria a salvo, no meio dos seus muitos arqueiros e centenas de alabardeiros; como os trovadores se instalaram, pela calada da noite, nas torres do rei e, por debaixo das suas ameias, à luz da Lua, e o ridicularizaram para todo o sempre com os seus cantares. Mas para isso, terei primeiro de regressar à Orla do Mundo. Atenção, as caravanas partem.

Lord Dunsany criou um mundo paralelo que situa numa região designada de Orla do Mundo e as histórias narradas, ocorridas nesse espaço distante e desconhecido, são quase sempre transmitidas por via oral através do relato sonhador ou ébrio de viajantes e marinheiros em alguma taberna à beira mar, contadas como se de uma realidade com roupagem de lenda se tratasse. E o nosso narrador, sempre pronto para ouvir as façanha fantásticas de homens comuns transmutados em figuras temíveis e respeitadas ou os feitos assombrosos de piratas terríveis e ameaçadores convertidos em homens passíveis de suscitar a admiração do leitor, conta-nos as aventuras dos que ousaram quebrar com a normalidade de uma vida banal, que partiram em busca de transformar o irreal em algo concreto.

Destaco a inabalável vontade do Capitão Shard, personagem que nos é apresentada no “Livro do Deslumbramento” e que é retomada no “Novo Livro do Deslumbramento” a bordo do seu navio pirata, o Desperate Lark, perseguido, acossado, navegando por mar e terra, resistindo à instabilidade que a sua posição de comando lhe conferia mediante o sucesso ou insucesso da fuga que empreendera.

O deslumbramento aqui significa não só o espanto perante as inúmeras possibilidades da vontade humana ou sobre-humana, mas também o propósito último de todos estes seres. Conquistar esse estado de esplendor, de ofuscação ante a beleza do fim domado, eis o objectivo da grande viagem delineada pelas personagens de Lord Dunsany.

domingo, março 16, 2008

"A Infanta e o Pintor" de Jean-Daniel Baltassat

Baltassat, Jean-Daniel, A Infanta e o Pintor (Le Valet de Peinture), Quetzal Editores, Tradução de Inês Castro, 2005.

A distância desagua no mistério.
E no século XV europeu, as alianças políticas consolidadas através do casamento, socorriam-se da habilidade dos mestres da pintura como Jan Van Eyck para traçarem as formas e feições das mulheres a desposar por um qualquer herdeiro de casa real. E à bruma sucedia-se o palpável e dava-se início à douta avaliação dos homens. E as futuras esposas, moeda de troca dos desígnios maiores dos omnipotentes homens, reduziam-se à sua pequenez, submetiam-se à interpretação variável do pintor, por sua vez dependente do seu mecenas. O seu gesto, a sua disposição, a dureza ou leveza que os traços da sua face declarassem, o olhar frio ou terno que da tela emanasse, tudo dependia do exame do intérprete fiel à sua missão de relato da verdade.

O Duque Filipe de Borgonha, viúvo e afamado pelo seu espírito libertino, incumbe Mestre Johannes de viajar até Lisboa com dois legados por si nomeados afim de se impor o interesse do Duque em desposar a Infanta D. Isabel, filha de D. João I, Mestre de Avis. É evidente que do sucesso de tal empresa, dependia o retrato que Van Eyck pintasse da Princesa.
A Infanta é um enigma para Filipe. Tem trinta e dois anos e permanece solteira. Interessa ao Duque saber porque nunca se casou D. Isabel e o estado em que se encontra decorridos trinta e dois anos de existência. Quer que da obra de Van Eyck transpareçam todas as respostas às suas muitas interrogações. Será bela ou destituída de beleza? Será de carácter submisso ou rebelde? Será ainda donzela? O retrato terá de possuir a transparência que permita, de um relance, desvendar a verdade acerca da Infanta de Portugal, mas o Duque quer apoderar-se igualmente das impressões que o pintor lhe irá transmitir e que possam não estar expressas no quadro.

Acompanhamos a viagem de Mestre Johannes ladeado pelos dois enviados diplomáticos do Duque Filipe, Messire André e Messire Baudoin, bem como do pajem Makhiel que Van Eyck julga tratar-se de um espião instruído por Monsenhor Filipe para controlar a conduta do pintor.
A atribulada jornada prolongou-se por mais de dois meses e quando, finalmente, entraram em Lisboa, após privações de toda a ordem, a Infanta encontrava-se longe da capital.
Os emissários de Filipe entreviram nesta ausência alguma indiferença de D. Isabel à pretensão de Monsenhor, uma espécie de desafio que se sabe breve, mas saboroso pelas ondas de cólera que provocaria.

Van Eyck instala-se no Palácio Real de Sintra, exortado por D. Duarte, o herdeiro do trono português, enquanto a filha do Rei não regressasse do Palácio de Faro, sua residência de Inverno, o que só sucederia por altura da Festa de S. Lázaro.

E eis que a Infanta retorna coberta por um denso véu que lhe esconde a face, entrevendo-se apenas as mãos alvas e jovens que fascinam, desde logo, o pintor.
D. Isabel oculta-se quase em absoluto e deseja fazê-lo durante tanto tempo quanto for possível. Inicia-se o duelo entre o dever e a rejeição momentânea em ceder à obrigação. Ela recusa ser tratada como uma peça de comércio entre nações. Opina, mostra-se arguta e profundamente consciente do seu destino incontornável enquanto mulher. Envia uma aia trajando o seu mais belo vestido para que Van Eyck pinte primeiro o corpo e só depois o rosto que desnudará quando assim o deliberar perante si própria.
Desaparece durante semanas, deixando o pintor entregue a um corpo sem rosto, adivinhando, no entanto, no mesmo, a inscrição de uma personalidade indomável. A Infanta de Portugal é alma e coração muito antes se materializar na tão ansiada fronte que Borgonha espera desvendar os labirintos obscuros da vida de uma mulher diferente.

Quando finalmente descobre o rosto e Van Eyck o pinta, aprovado por toda a baronia portuguesa publicamente, D. Isabel, em privado, pede-lhe um retrato mais sincero, sem omissões da passagem do tempo e roga-lhe que possa olhar Monsenhor Filipe nos olhos mesmo antes de ser sua esposa. O desafio último. Poder encarar o pretendente de igual para igual, aquele que dizia que existia Deus e depois existia ele, subjugado perante o olhar honesto e íntegro daquela que parecia querer dizer que também ela existia.
E Johannes Van Eyck ilumina ainda mais a beleza da Infanta por meio da verdade absoluta. A luz de coragem que sobre ela recai, arreda as sombras do dever a cumprir.

domingo, março 09, 2008

"O Remorso de Baltazar Serapião" de Valter Hugo Mãe

Mãe, Valter Hugo, O Remorso de Baltazar Serapião, Círculo de Leitores, 2007.

A história do Amor ferino entre Ermesinda e Baltazar decorre na Idade Média portuguesa, no reinado de D. Dinis, numa obscura terra sem nome dominada por um senhor feudal todo-poderoso, D. Afonso, reclamante da presença das mais jovens e belas mulheres do feudo na casa grande.
A família Serapião, à qual Baltazar pertence, tinha como única posse uma vaca, a Sarga, elemento indissociável do núcleo familiar dos Serapião. Tendo o pai de Baltazar o nome cristão de Afonso, à semelhança do seu senhor, equivalência esta insustentável, havia sido rebaptizado de O Sarga naquela que se tornara uma durável ligação estabelecida entre os Serapião e o animal, quase como se a diferença entre uns e outra fosse remota ou mesmo inexistente. Apesar de já depreciados desta forma, juntava-se ainda a convicção popular de que Baltazar e aldegundes eram produto da relação bestial entre o pai e a Sarga, naquilo que era uma forma pouco subtil de colocar repetidamente os Serapião ao nível de um animal de curral.
Perante a animosidade crescente das gentes em relação aos Sarga, a proximidade com o animal assume contornos reais tendo como base a rejeição, o preconceito, a superstição populares que votam aquela família à condição de proscritos do povoado.
Banidos pelos do seu próprio meio, desterrados da terra que também era a sua, intentam, em vão, um recomeço algures onde não tenha chegado notícia da sua existência e do que a condicionava mas, a crendice das pessoas com que se cruzam e deles em relação a eles próprios, força-os a renderem-se à sua condição de bestas e, sobretudo, à condição de amaldiçoados por atraírem tudo o que era nefasto para onde quer que se dirigissem.

Ermesinda é repetidamente chamada à casa grande e o marido interroga-a do que D. Afonso lhe queria. A comovente submissão de Ermesinda (comovente porque a protecção de Baltazar é tudo o que a move) revela-se no seu silêncio que trespassa o coração de Baltazar não de dúvidas, mas de certezas. E cada momento mudo da mulher corresponde a uma agressão física do marido. Ermesinda é progressivamente privada da sua honra extra-muros e da sua integridade física intra-muros. E o seu silêncio não é mais do que a conservação da honra de Baltazar. Ela sabe que a sua já não pode ser resgatada. A não verbalização do interdito, torna-o dúbio e mesmo irreal para uma mulher encurralada que ama o marido até ao fim.

O sofrimento das personagens femininas nesta obra de Valter Hugo Mãe é inclassificável pela violência psicológica e física de que são vítimas. A ausência física ou mental (como no caso da Teresa Diaba) é a única salvação possível para estas mulheres à mercê do paternalismo doentio destes homens, do seu saber tudo, da sua convicção nos benefícios de uma “educação” pela força.

À força de a querer só para si, Baltazar deforma a mulher faseadamente, transformando-a num corpo irregular marcado pela sua ira, incapaz de aplicar a sua raiva na origem do mal que o assola. O seu egotismo é aviltante, preocupado que está na ofensa à sua pessoa, olvida o eclipse gradual da mulher com quem casara. A outrora bela Ermesinda.
Baltazar abdica da sua humanidade por não a vislumbrar em si nem nos outros. Parece não se reconhecer como Homem, despojado de alma, ferido de ciúme. Ermesinda cai, vítima da sua inércia e Baltazar, aos olhos de quem o vê/lê, é bem o retrato do Homem-besta. E tudo o que lhe resta no fim do seu percurso é a vaca com que desde sempre a família fora associada. Lado a lado. O paralelo que o povo ignorante criara entre o animal e a família Serapião, materializara-se numa realidade de violência em que a redenção não tem lugar e em que o remorso desponta com a morte, com o sacrifício dos inocentes e a queda impiedosa dos culpados. O acto mais irreflectido de Baltazar é o momento da justiça possível. O castigo divino recai sobre ele na forma do vazio absoluto. A solidão.

domingo, março 02, 2008

"Porque Adoecemos?" de Darian Leader e David Corfield

Leader, Darian, Corfield, David, Porque Adoecemos? (Why do People Get Ill?), Bizâncio, Tradução de Maria Carvalho, 2007.

A doença. Eis o tema central da obra “Porque Adoecemos?” de Darian Leader e David Corfield. Contudo, apesar da seriedade que o assunto analisado abarca, este é um livro escrito de forma acessível, sem recorrer a linguagem apenas compreensível por profissionais da área da saúde, tornando-se, como tal, numa leitura suficientemente inteligível para todos.
Trata-se de um estudo ou, melhor dizendo, uma amálgama de reflexões cientificamente fundamentadas que apontam, não tanto para conclusões peremptórias unilaterais, mas para considerações de elevado interesse sobre as várias causas que se escondem por trás das mais diversas doenças, sempre apresentando exemplos de casos reais. Os autores insistem sobretudo nas motivações psicológicas que originam inúmeros tipos de doenças, ou seja, para além das questões genéticas e ambientais e da predisposição natural, existem factores psicológicos, muitas vezes inconscientes, enterrados no lugar mais escuro e profundo do nosso Ser que, mediante algumas técnicas da psicanálise, são passíveis de ser descobertos, contribuindo para uma leitura mais abrangente e sólida do problema físico que aflige um determinado sujeito.
A impessoalidade que muitos doentes pressentem por parte da medicina convencional, tem arrastado grandes massas a experimentar medicinas alternativas. O distanciamento crescente da relação médico/doente, a par dos frios excessos burocráticos, conduzem os pacientes a buscar opções mais humanizadas, sobretudo, buscam não só a cura como procuram ser ouvidos.
A desumanização da classe médica é focada nesta obra que salienta, acima de tudo, os traumas, pressões e estilos de vida presentes no subconsciente de todos, revelando-se apenas em alguns e despoletando a doença, ocasionalmente, em outros.
Um livro de interesse para todos os que procuram perceber as complexas e misteriosas relações entre corpo e mente.

domingo, fevereiro 24, 2008

"O Segredo de Shakespeare" de Jennifer Lee Carrell

Carrell, Jennifer Lee, O Segredo de Shakespeare (Interred with their Bones), Círculo de Leitores, Tradução de Ana Duarte, 2007.

Para além das sempre controversas questões relacionadas com a identidade de William Shakespeare discutidas nesta obra, “O Segredo de Shakespeare” de Jennifer Lee Carrell trata também a possibilidade de existência de uma obra perdida do dramaturgo inglês, “Cardennio”, implicando a sua busca no que é uma autêntica caça a um tesouro literário cobiçado por uma rede de personagens cujas motivações variam entre a recriação das mortes das personagens de Shakespeare com o intuito de tornar a ficção realidade para elevação máxima do génio do dramaturgo (e meio de derrubar os que se opõem a esse propósito), e a simples investigação que almeja a descoberta de uma peça há muito desaparecida de forma a incluí-la como relíquia no espólio existente do autor.
Kate é Directora de Produção do Globe em Londres e investigadora do lado obscuro das obras de Shakespeare. Quando é procurada por Roz, uma amiga que não via há muito e com quem tivera uma amizade turbulenta, tudo se altera na sua vida até então tranquila. Roz tem em sua posse uma série de pistas que indiciam a descoberta de um segredo enterrado há séculos e que colocam em causa a identidade de Shakespeare assim como podem trazer à luz do dia uma obra oculta do autor.
A morte de Roz e o incêndio inesperado do Globe são os acontecimentos que despoletam a caça ao tesouro desencadeada por Kate coadjuvada por Sir Henry primeiro, um actor britânico em fim de carreira consagrado e expedito, e por Ben mais tarde, suposto sobrinho de Roz munido dos meios necessários para concretizar os intentos de Kate.
De Londres a Washington e a Valladolid, este é um livro com cenas em vários palcos auscultados de perto pelo Inspector Sinclair, figura omnipresente sempre no encalço de Kate, a principal suspeita dos assassinatos que vão ocorrendo. Simultaneamente frenético e erudito, revela-nos todas as dúvidas que pairam sobre a comunidade académica no que respeita à verdadeira identidade de um dos génios maiores da literatura mundial (seria Shakespeare um reputado membro da nobreza com acesso fácil a uma educação completa ou o Shakespeare de Strattford de origens humildes?) e guia-nos numa aventura em que ninguém é o que verdadeiramente parece e em que fidelidades e traições emergem nos momentos mais inesperados culminando no fantástico achado numa mina de Tombstone.

domingo, fevereiro 10, 2008

"O Amor Infinito de Pedro e Inês" de Luís Rosa

Rosa, Luís, O Amor Infinito de Pedro e Inês, Editorial Presença, 2005.

O reinado de D. Pedro I foi inegavelmente marcado pelos acontecimentos que precederam a sua subida ao trono e o autor de “O Amor Infinito de Pedro e Inês”, Luís Rosa, demonstra-o ao contar a história do amor impossível que D. Pedro vivera enquanto Infante de Portugal e que ultrapassara as fronteiras do tempo e da morte, cimentado, fortalecido com a justiça que Pedro, já Rei de Portugal, levava a todos os cantos do reino, eternamente sedento do sangue já derramado dos sequazes de Inês de Castro.
Pedro sempre se submetera sem contestação às razões de estado que o obrigavam a contrair matrimónio com donas da mais alta nobreza castelhana, era o instinto de preservação de um país encolhido ante o poderio de Castela que o ditava e Pedro acolhia as decisões do distante pai, D. Afonso IV, com a resignação necessária e o sentido do dever.
D. Constança Manuel, a enjeitada de Castela, chega a Portugal trazendo na sua comitiva uma jovem aia de dezasseis anos e sua grande amiga, D. Inês de Castro. Pedro trá-la no coração desde o primeiro momento e Inês confessa a sua preocupação ante as investidas do olhar do Infante à confidente Constança que morreria pouco depois de dar à luz o herdeiro tão aguardado, o débil D. Fernando. Inês havia sido afastada da corte entretanto como forma de conter o ímpeto do Infante, no entanto, após a morte da mulher, Pedro cavalga para Castela em busca do seu amor nunca esquecido e estabelece-se com Inês no Paço da Atouguia. O Rei Afonso IV não controla já as decisões do filho e influenciado pelos conselheiros mais próximos, assina a sentença de morte de D. Inês de Castro, suposta ameaça à paz que Portugal cultivava com o vizinho sempre ameaçador, Castela.
A morte de Inês desencadeia uma revolta armada de um Infante contra o Rei, acontecimento sem precedentes na História de Portugal. Alguns meses após o seu início, assina-se um acordo de paz, mas no seu leito de morte, D. Afonso IV, conhecedor da índole do filho, aconselha os responsáveis pela morte de Inês a fugirem para Castela porque Pedro vingar-se-ia assim que surgisse a oportunidade. Fogem mas, Pedro de Portugal chega a acordo com Pedro de Castela, seu primo, e fazem uma troca de procurados em ambos os países sendo que é desta forma que dois dos três carrascos de Inês são trazidos para Portugal e lhes é aplicada a mais dura das penas que valeu a D. Pedro fama de justiceiro, mas também de louco e cruel.
Acompanhamos na parte final da obra o principal objectivo do Rei após a morte de Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves: a construção do túmulo de Inês, coroada Rainha de Portugal. E esse é o grande mistério que perdura até hoje, ter-se-á consumado o casamento de Pedro e Inês como ele tão resolutamente afirmava? A verdade é que os túmulos magnificamente esculpidos por Bartolomeu de Molianos em Alcobaça são os de Pedro e Inês, juntos para a eternidade.

Uma personagem fabulosa que Luís Rosa introduz no livro é a do Bobo Clarimundo. Ele é o Sábio que aconselha o Príncipe, que lhe indica o caminho, que lhe transmite com o olhar que Inês não mais existe. Nenhum “notável” ou nobre da corte é o braço direito de Pedro, apenas o simples Bobo Clarimundo sempre o acompanha e é o único capaz de conter o incontido D. Pedro, de iluminar o seu pensamento. O próprio nome do Bobo é indiciador da sua sabedoria, da sua abertura de espírito, da sua alma grande.

Fazem falta Bobos Clarimundos neste desfalecido Reino de Portugal.

domingo, fevereiro 03, 2008

“Akhenaton, o Rei Herege” de Naguib Mahfouz

Mahfouz, Naguib, Akhenaton, o Rei Herege (Al-A’ish Fi-L-Haqiqa), O Quinto Selo Edições, Tradução de Adel A. Jabbar Mohammed Daroga, 2007.

Miriamon visita, na companhia de seu pai, a decrépita cidade de Akhetaton, fundada pelo Faraó que se atrevera a desafiar a tradição milenar politeísta implementada no Egipto, Akhenaton. A visão de abandono que a ainda recentemente esplendorosa urbe agora transmite, impressiona vivamente o jovem Miriamon, sobretudo porque algures nos escombros da antiga glória ao deus único, edificada pelo que ficou conhecido como O Herege, vive uma mulher atormentada pela solidão num palácio dourado de recordações dolorosas, prisioneira da nova ordem egípcia protagonizada pelos tutores de Tutankhamon e cativa do seu próprio desespero privado. Ela é Nefertiri e Miriamon busca a verdade da sua História conjunta com Akhenaton através de 14 audiências a que temos pleno acesso com as figuras que mais próximas foram do Rei sendo que, a última das conversas é tida com Nefertiri.
Akhenaton é descrito por todos os entrevistados como uma figura fisicamente débil, disforme até, e este é um ponto em relação ao qual todas as opiniões convergem. No entanto, os seus detractores vão mais longe e “transformam-no” num monstro indigno de segurar o ceptro dos faraós, ora porque não acorre ao harém herdado de seu pai, Amenhotep III, gerando rumores de uma estranha relação além maternal com sua mãe, a rainha Tiy, ora porque adoptara uma prática religiosa diversa da dos seus antepassados, fazendo emergir a figura enigmática do deus único, defensor da paz, do amor, da não punição, da tolerância.
Dir-se-ia que o ponto de viragem na vida de Akhenaton foi a morte do seu irmão Tutmés. A partir do momento em que se apercebeu da inevitabilidade da morte, Akhenaton começa a crer na possibilidade de, praticando o bem, amando o próximo, perdoando o incauto, torná-la uma miragem distante, porque um individuo ou um povo que seguissem os ensinamentos que o Herege ouvira do seu deus numa noite de revelação, tornar-se-ia imortal. Muito depois da partida dos nossos corpos, converter-nos-íamos numa brisa de sussurros, quiçá reveladora para um outro ser com sede de verdade como Akhenaton na noite em que viu a luz.
Nefertiri é retratada por alguns dos intervenientes do périplo realizado por Miriamon como uma oportunista que fingira crer no deus único do Rei para criar um falso laço de ligação profunda entre ambos. A verdade que nos conta na primeira pessoa, contudo, é indicadora de uma inexplicável mas real crença na crença de Akhenaton, de um desejo de conhecimento e aproximação do ainda herdeiro do trono na altura, de um casamento inicialmente de atracção espiritual e com o decorrer do tempo, metamorfoseado em Amor absoluto. As palavras finais são de Nefertiri, Miriamon termina o seu percurso de descoberta no local em que o iniciara, em Akhetaton, o túmulo em que permanecia emparedada viva a rainha pela qual o Rei Herege abdicara do harém porque, segundo o próprio, era monogâmico nas relações como na religião.
Fica-me a imagem de um Rei desafiador porque perturbado pela ideia da morte de um irmão muito querido, mas também corajoso porque manteve o seu ideal quando todos o abandonaram. E morreu só, só o seu deus velou por si.